Por GILBERTO LOPES
Comentários sobre acontecimentos recentes na política internacional
Quase 65 milhões de casos, 1,5 milhão de mortos em todo o mundo como consequência da Covid-19. Quase 275 mil mortes só nos Estados Unidos. O Brasil, com mais de 173 mil, e a Índia, com quase 140 mil, continuam liderando esta macabra contagem. Os Estados Unidos registraram mais de 100 mil casos diários durante quase um mês, e por três semanas viram crescer o número de pessoas hospitalizadas por causado vírus até chegar, no Dia de Ação de Graças, na última quinta-feira, a quase 9.500 pessoas. Com mais de um milhão de viagens aéreas nas vésperas da celebração, os especialistas advertem que o número de doentes e mortos aumentará nos próximos dias. Na Europa, a pandemia diminuiu um pouco na semana passada. Mas o número de mortes continua aumentando em todos os lugares, especialmente na Itália, Espanha e Inglaterra. A Alemanha ultrapassou um milhão de casos. O México também, mas com quase 105 mil mortos, bem acima dos 16 mil da Alemanha.
Todos estão se preparando para o Natal. A Europa está discutindo o que fazer com seus campos de esqui prontos para a estação de inverno. Macron está otimista, afirmando que a França superou o pior desta segunda onda da pandemia e que começará a reabrir lojas, teatros e cinemas, mas os cafés e restaurantes terão que esperar até 20 de janeiro. Ele garante que as pessoas poderão passar as férias com o resto de suas famílias. Mas, ele adverte, uma terceira onda deve ser evitada. Merkel enfrenta uma tendência mais negativa, com novos recordes diários de contágio. Depois da onda inicial em meados de abril, a curva caiu drasticamente, até começar a subir de novo em outubro e a superar as médias semanais anteriores. Mas as restrições serão regulamentadas, para que as pessoas possam passar as festas sem família, disse a chanceler alemã. Na Rússia, o inverno torna a situação mais complicada, com mais de 25 mil casos diários.
Na Inglaterra, o ministro chefe do gabinete, Michael Gove, advertiu no sábado que os hospitais corriam o risco de saturação se as restrições não fossem renovadas em todo o país. Com cerca de 16 mil pessoas internadas, o ministro pediu aos parlamentares que renovassem as restrições para evitar a situação vivida em abril, quando 20 mil pessoas doentes colocaram à prova o sistema de saúde do país. A decisão da Inglaterra de permitir o reencontro de até três grupos familiares atraiu as críticas dos especialistas: haverá um aumento inevitável dos casos, dizem eles. As viagens internas serão facilitadas entre os dias 23 e 27 de dezembro. Depois disso, as restrições voltam.
“Kochtopus” ou as bases da democracia
Em meio à pandemia e a uma transição tensa, os Estados Unidos estão discutindo seu sistema político. O debate sobre o financiamento de campanhas lança luz sobre esse sistema. Sheldon Adelson pode ter contribuído com 250 milhões de dólares para a campanha de Trump e de candidatos conservadores ao congresso e ao senado. Proprietário de uma das maiores redes de cassinos do mundo e fervoroso defensor do Estado de Israel, ele saudou a mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém, a ruptura do acordo nuclear com o Irã e o papel do governo estadunidense no reconhecimento de Israel pelos Emirados Árabes Unidos e outros estados árabes, disse Peter Stone, correspondente em Washington do The Guardian. Com uma fortuna estimada em 32 bilhões de dólares, Adelson preside a Coalizão Judaica pró-israelense.
Na recente campanha eleitoral, seu papel foi ajudar a garantir que os candidatos conservadores, especialmente aqueles que pareciam estar em risco de perder seus cargos, tivessem recursos suficientes para sua campanha. Para isso, ele direcionou 50 milhões de dólares ao Fundo da Liderança do Senado, um fundo administrado pelos aliados do líder ultraconservador republicano no Senado, Mitch McConnell. Por trás dele, disse Stone, está o bilionário nova-iorquino Michael Bloomberg, que gastou 107 milhões de dólares, mas para apoiar a campanha democrata na Flórida, estado considerado chave para a eventual vitória de Trump. Finalmente, a Flórida foi para os republicanos, com uma vitória mais confortável do que o esperado, mas insuficiente para compensar as perdas dos republicanos no resto do país.
Outros bilionários particularmente relevantes no cenário político conservador norte-americano eram os irmãos Koch. Com uma fortuna avaliada em cerca de 45 bilhões de dólares, Charles e David Koch herdaram de seu pai o negócio de refinarias e indústria fóssil, que desde então se expandiram para outros setores. Eles sempre se opuseram a iniciativas para enfrentar a mudança climática. Eles têm financiado grupos conservadores ligados aos republicanos, incluindo o Tea Party. David, que morreu em agosto do ano passado, foi candidato a vice-presidente em 1980 pelo Partido Libertário, rejeitando as limitações de contribuições corporativas às campanhas eleitorais que estavam em vigor na época, e as leis que criminalizavam o uso de drogas ou a homossexualidade. Juntos eles fundaram, em 2004, a organização American for Prosperity, hoje uma das mais influentes organizações políticas conservadoras do país, segundo o jornalista econômico Joseph Zeballos-Roig, num artigo publicado no Business Insider. Hoje tem mais de 700 doadores ricos e representação em 36 estados, com uma influência cujo único rival e o próprio Partido Republicano, afirma.
Os Koch “criaram uma rede importante de doadores alinhados com seus ideais liberais, impostos baixos e redução do governo federal. Como eles aplicaram dinheiro na recente campanha eleitoral, os críticos os chamaram de ‘Kochtopus’”, disse Zeballos-Roig. Charles anunciou na semana passada, numa entrevista com o Wall St. Journal,a publicação de um livro em que lamenta as profundas divisões políticas que eles promoveram ao financiar esses grupos. “Boy, did we screw up!” “What a mess!”(“Caramba, estragamos tudo!” “Que bagunça!”), disse Charles. Ele afirma que eles nãocriaram o Tea Party. Compartilhavam sua preocupação com os gastos públicos insustentáveis, mas “parece que, a longo prazo, o Tea Party fracassou totalmente porque estamos terminando uma administração republicana com os maiores gastos públicos da história”, disse ele.
De acordo com sua proposta de mudança de tom, ele parabenizou Biden e sua vice-presidente, Kamala Harris, pela vitória, sugerindo a possibilidade de trabalharem juntos em questões como economia, justiça criminal ou migração. Outras empresas petrolíferas, lideradas pela Energy Transfer Equity, Chevron, mas também a Koch Industries, destinaram cerca de 80% de suas doações políticas aos republicanos e candidatos conservadores, lembrou o editor ambiental do The Guardian, Jonathan Watts. O maior beneficiário foi Trump, com mais de dois milhões de dólares, sem contar o dinheiro canalizado por comitês secretos de ação política. Também foram particularmente financiados aqueles que apoiaram os esforços de Trump para reverter o resultado das eleições nos tribunais. Entre eles estava o senador Mitch McConnell, para quem, segundo Watts, foram doados 490 mil dólares.
Mas Biden também recebeu recursos da indústria petrolífera: um milhão de dólares. “Menos da metade do que foi doado a Trump, mas uma clara indicação de que a indústria pensa que é possível trabalhar com ele, como fez com Obama”, acrescentou. Watts observa que, nos últimos anos, milhões de vidas têm sido ameaçadas ou destruídas pela crise climática, enquanto as campanhas para combatê-la estão cada vez mais ligadas à demanda por justiça social. Quanto mais ligadas, mais poderosas elas são, e esta foi, em sua opinião, a aliança que levou Biden à vitória.
“Eu o farei, certamente o farei”.
É assim que a democracia funciona na prática, embora, naturalmente, esse seja um tema de debate interminável. Como ela não coincide com a definição que cada um tem de sua própria “democracia”, muitos acreditam que isso não é “democrático”. Como Noam Chomsky, para quem o sucesso da estratégia política de Trump e de suas propostas são exemplos da “extrema fragilidade da democracia americana”. Vendo as enormes somas que os grandes milionários estão dispostos a investir nela, pode-se pensar o contrário: que o sistema goza de boa saúde. Para Chomsky, é surpreendente que alguém cujas decisões perversas sobre o tratamento da pandemia causaram a morte de dezenas de milhares de pessoas ainda possa aspirar à presidência, que muitas pessoas ainda o apoiem, e que “um partido que virtualmente limpa seus sapatos possa alcançar uma vitória retumbante em todos os níveis, exceto na Casa Branca”. O certo é que, de acordo com pesquisas divulgadas nos Estados Unidos, mais de três quartos dos apoiadores de Trump acreditam que a vitória de Biden foi resultado de fraude, e sua raiva é alimentada pela noção de que a eleição foi um roubo.
Não reconhecer o triunfo de seu oponente até hoje não é, em todo caso, uma tolice de Trump. É apenas uma forma de manter seus partidários enraivecidos e enfileirados atrás de alguém que não perdeu, mas foi roubado. É por isso que ele continua insistindo que “a eleição foi uma fraude”. Apesar disso, Trump já estabeleceu uma data para a aceitação da derrota: 14 de dezembro, quando o colégio eleitoral decidirá oficialmente sobre os resultados e sobre o vencedor. “Certamente o farei. Sem dúvida o farei. E vocês sabem disso”, afirmou. Mas – advertiu – “acho que muita coisa vai acontecer até 20 de janeiro”, data da transferência de poder. “Muitas coisas”, acrescentou.
Venezuela ou Irã
A Venezuela, que em algum momento parecia oferecer um cenário pronto para uma intervenção, irá às urnas no próximo domingo para eleger uma nova assembleia legislativa. Uma eleição que Trump e seus aliados não reconhecem. A Venezuela vai às urnas submetida a sanções econômicas dos Estados Unidos que reduziram sua economia a condições dramáticas. A economia poderia encolher mais 30% este ano e chegar a 20% do que era há sete anos, quando sua recessão começou, disse France 24numa nota sobre as eleições.
Os efeitos das sanções não podem ser subestimados. Em maio de 2019, Mark Weisbrot e Jeffrey Sachs publicaram um estudo intitulado “Sanções econômicas como punição coletiva: o caso da Venezuela”: “as sanções reduziram a ingestão calórica da população, aumentaram as doenças e a mortalidade (tanto para adultos quanto para crianças) e deslocaram milhões de venezuelanos que saíram do país como resultado do agravamento da depressão econômica e da hiperinflação. As sanções exacerbaram a crise econômica da Venezuela e tornaram quase impossível estabilizar a economia, contribuindo ainda mais para um maior número de mortes. Todos esses impactos afetaram desproporcionalmente os venezuelanos mais pobres e mais vulneráveis”. Mas outro cenário no qual poderia haver intervenção é o Irã. Um cenário que é mais explosivo e oferece maiores riscos políticos internacionais do que um ataque à Venezuela. Na sexta-feira passada, o iraniano “arquiteto do programa nuclear”, Mohsen Fakhrizadeh, foi assassinado nos arredores de Teerã.
O assassinato parece ser uma tentativa de implodir a possível renegociação do acordo nuclear que a administração Obama havia assinado com o governo iraniano, disse o correspondente do The Guardian em Washington, Julian Borger. Trump denunciou o acordo e renovou as sanções contra Teerã, apesar da opinião contrária de seus aliados europeus e da certificação da Agência Internacional de Energia Atômica de que o Irã estava cumprindo o acordo. Com a vitória de Biden, há especulações de que Washington poderia voltar ao acordo.
Há uma opinião generalizada de que Israel é responsável pelo assassinato, disse Borger. Também circulam informações na mídia internacional de que as forças armadas israelenses estão preparadas para um virtual ataque norte-americano contra o Irã. Em janeiro passado, Washington ordenou o assassinato do general Qassem Soleimani, comandante do Corpo de Guarda Revolucionária e um dos mais importantes chefes militares do país, o que representou um novo passo no confronto entre os dois governos. Israel pode estar tentando provocar o Irã nos últimos dias da administração Trump para criar condições que tornariam impossível qualquer aproximação entre a administração Biden e o governo de Teerã, afirmaram os jornalistas Patrick Wintour e Oliver Holmes.
A política de assassinatos
O Irã reclamou do duplo padrão da comunidade internacional. Condena alguns atentados, ao mesmo tempo em que silencia outros. Por exemplo, os ataques contra os russos Alexei Navalny e Sergei Skripal. Skripal, um agente duplo russo que trabalhava para os serviços britânicos, foi encontrado inconsciente num parque da cidade inglesa de Salisbury, em março de 2018. A primeira-ministra britânica Theresa May declarou então perante o parlamento que a Rússia era “muito provavelmente” responsável pelo ataque. Isso nunca pôde ser provado e Moscou rejeitou qualquer responsabilidade por esse crime, mas duas dúzias de países ocidentais se juntaram ao Reino Unido para adotar sanções contra a Rússia. Mais recentemente, Alexei Navalny, um opositor de Putin, foi levado com urgência a um hospital depois de sentir-se mal num voo de pouco mais de quatro horas em seu retorno de Tomsk para Moscou. O avião fez uma escala de emergência em Omsk, onde Navalny foi atendido, antes de ser transferido para a Alemanha, onde lhe foi oferecido atendimento médico.
Foi então que se alegou que Navalny havia sido envenenado. Se o envenenamento for confirmado, outros casos poderiam chamar a atenção pública, disse a BBC. Nem Skripal nem Navalny morreram. Parece difícil imaginar as autoridades russas permitindo que Navalny fosse levado para a Alemanha para ser tratado, caso fossem responsáveis pelo ataque. Mas o caso levou a novas tensões entre o Ocidente e Moscou, particularmente contra os planos de concluir o gasoduto Nord Stream 2 da Rússia, que abastaceria grande parte das necessidades energéticas da Europa. Este é um projeto ao qual Washington se opõe fortemente. “A Europa realmente precisa do gasoduto russo Nord Stream 2?”, perguntou a Deutsche Wellenuma nota de 9 de setembro último. Amy Mackinnon, encarregadados temas de segurança nacional e inteligência na revista Foreign Policy, escreveu um artigo em agosto do ano passado explicando porque a Rússia estava usando este método para envenenar seus opositores. Uma explicação possível, disse Mark Galeotti, membro associado do Royal United Services Institute, citado por Mackinnon, é que o método deixa ao Kremlin uma possibilidade plausível de negar sua responsabilidade, mesmo que tenha um grande efeito sobre a sensibilidade do público.
“O Kremlin tem uma longa e horrível história de intimidar e matar aqueles que eles percebem como uma ameaça ao Estado”, disse John Sipher, que Mackinnon apresenta como um homem que trabalhou 28 anos com a CIA e foi responsável pelas operações da agência na Rússia nos anos 90. O assassinato de Fakhrizadeh não é o primeiro contra os cientistas iranianos e o governo de Teerã disse que é hora de pôr um fim a tais ataques. A recente visita do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, à Arábia Saudita mostra como o confronto com o Irã está realinhando a política do Oriente Médio à medida que o fim da administração Trump se aproxima e crescem os temores, tanto em Israel quanto na Arábia Saudita, de que Biden retomará os acordos negociados durante a administração Obama. No último domingo 29, Jared Kushner, marido da filha de Trump e assessor da Casa Branca, viajou para a Arábia Saudita e para o Qatar, em mais um passo para reacomodar as posições na região, em meio às tensões causadas pelo assassinato do cientista nuclear iraniano que o Ocidente não condenou.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR).
Tradução: Fernando Lima das Neves.