As formas sociais do gosto

Ovos Viking, Sinfonia Diagonal, 1924
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Por FABIANO DE SOUZA GONTIJO*

Prefácio do livro recém-lançado de Marina Ramos Neves de Castro

1.

A Amazônia – essa vasta extensão territorial, que vai de oeste a leste dos contrafortes da Cordilheira dos Andes à Baixada Maranhense e de norte a sul do Mar do Caribe ao Pantanal ou Gran Chaco – é geralmente caracterizada por sua paisagem; mais precisamente, por uma paisagem múltipla e viva, em movimento constante, vivida e experimentada por seres humanos, não humanos, mais-que-humanos e extra-humanos e por coisas, evidentemente. Belém, a capital paraense, é muito provavelmente a quintessência dessa paisagem. Não que seja a “mais importante” ou a “mais magnífica” ou, ainda, a “melhor” cidade amazônica; não se trata disso!

Mas é polo de atração, por reunir e, por conseguinte, representar juntos todos os elementos que conformam essa paisagem. Talvez, o conceito mais conhecido e divulgado de “Amazônia” como um poderoso constructo colonial tenha sido inventado em Belém, o “portal da Amazônia”. Hoje em dia, é nos mercados da região metropolitana de Belém, aqui chamados de “feiras”, que se pode sentir essa quintessência paisagística amazônica em toda a sua concretude, em toda a sua fisicalidade e em toda a sua materialidade, como mostra Marina Castro em seu livro.

Não é à toa que as feiras têm sido um objeto privilegiadíssimo de interesse para quem quer apreender de alguma forma a Amazônia. Inúmeras pesquisas realizadas na região, particularmente em Belém, dão conta disso. Não somente as “pesquisas de mercado”, mas sobretudo as pesquisas nas áreas de economia, administração, história, geografia, museologia, arquitetura, sociologia, arqueologia e, evidentemente, de antropologia.

Para citar somente uns poucos exemplos, vejam os resultados de pesquisas reunidos em duas excelentes coletâneas, ambas publicadas em Belém, pela Editora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), da Universidade Federal do Pará (UFPA): a primeira, de 2010 (com um segundo volume publicado em seguida), organizada por Wilma Leitão, se intitula Ver-o-Peso: estudos antropológicos no Mercado de Belém, e a segunda, de 2014 (também com um segundo volume publicado em seguida), organizada por Carmen Izabel Rodrigues, Luiz de Jesus Dias da Silva e Rosiane Ferreira Martins e Voyner Ravena-Cañete, se intitula Mercados populares em Belém: produção de sociabilidades e identidades em espaço urbano.

Muitos são os trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidos em diversas instituições de ensino e pesquisa no Brasil e no exterior, abordando as feiras de Belém, como, para citar somente alguns exemplos, os textos acadêmicos de autoria de Maria Dorotéa Lima, em antropologia, Laura Carolina Vieira, também em antropologia, Paola Haber Maués, em museologia e patrimônio, Francianny Keyla Cabral Moraes, em arquitetura, Ubiraélcio da Silva Malheiros, nas artes e na arquitetura, e Edilson da Silveira Coelho, nas artes – e até um belo guia didático, de autoria de Gleyce T. Chagas Lisboa, Nívia M. da Silva Freitas e Nádia M. da Silva Freitas, foi publicado em 2020 para auxiliar professores do ensino fundamental e médio no uso do potencial das feiras como lugares de ensino e aprendizagem.

As feiras também têm historicamente inspirado e chamado atenção de importantes nomes da literatura, artistas plásticos, fotógrafos, teatrólogos, cineastas e documentaristas — como se vê, por exemplo, nas intervenções realizadas em edições do maior evento artístico anual de Belém, o Arte Pará, sob a curadoria de Paulo Herkenhoff, ou nas diversas exposições do fotógrafo Miguel Chikaoka, ou, ainda, na obra do escritor Bruno de Menezes, ou, enfim, no curta-metragem Ver-o-Peso, de 1984, dirigido por Januário Guedes, Sônia Freitas e Peter Roland.

O mercado do Ver-o-Peso, na área central de Belém, tem sido o principal alvo de interesse, muito provavelmente por sua história, que se confunde com a própria história da invasão europeia e da colonização da Amazônia, por sua grandiosidade, diversidade e densidade, que englobam muitos setores econômicos, e, enfim, por sua importância social e cultural, representada pela profundidade das redes de relações que se tecem e pela amplitude dos significados e símbolos que se formulam e reformulam ali. Mas o Ver-o-Peso é somente um dos mercados belemenses.

2.

O livro que aqui tenho o prazer de apresentar é oriundo da pesquisa meticulosa, minuciosa e cuidadosa realizada entre 2011 e 2018 por Marina Castro, inicialmente no âmbito do curso de mestrado em Artes e, em seguida, para a obtenção do título de doutora em Antropologia junto ao Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) da UFPA. Sua dissertação e sua tese e, agora, seu livro vêm complementar brilhantemente os estudos já existentes sobre as feiras amazônicas. E seu livro vai muito além de complementá-los, por algumas razões que destaco rapidamente aqui: a inventividade do tema, a originalidade da abordagem, a criatividade da metodologia, a criticidade da revisão teórica e, last but not least, pela reflexividade do engajamento (político) da pesquisadora.

Marina Castro se propôs a tratar da experiência social do gosto com base em uma etnografia realizada na dinâmica Feira do Guamá, segunda maior feira de Belém, depois do Ver-o-Peso.

A pesquisa se alicerçou nas perspectivas fenomenológicas de Maurice Merleau-Ponty e de Alfred Schütz, combinando-as com o interpretativismo antropológico e suas críticas pós-modernas, a antropologia modal de François Laplantine e as antropologias sensorial e dos sentidos de David Le Breton, David Howes e Constance Classen, além dos estudos de cultura material de Daniel Miller e Chris Tilley. Com isso, Marina Castro pôde proceder à realização de uma etnografia sensorial, como proposto por Sarah Pink, com base na concepção de que etnografia é teoria, conforme sugerido por Mariza Peirano.

Os conceitos de sociação, socialidade e sociabilidade, de Georg Simmel, assim como os de traços, de Jacques Derrida, e de percepção sensorial, de Tim Ingold, permeiam toda a trama montada por Marina Castro para dar conta, assim, das experiências sociais do gosto, ou seja, para compreender a construção social dos sentidos e do gosto como vetor de sensibilidades, socialidades e sensorialidades partilhadas na Feira do Guamá.

Participando ativamente da vida dos feirantes, compartilhando sensorialidades e formulando socialidades no cotidiano da feira, Marina Castro acabou por revisar o alcance da teoria do gosto proposta por Pierre Bourdieu no fim da década de 1970. Para ela, o gosto, enquanto forma de expressão e sociação, não deve ser reduzido à condição de um simples prazer estético ou enquadrado em categorias pautadas pelas concepções hegemônicas de beleza, ideal ou perfeição.

O gosto passa a ser, assim, muito mais do que um princípio de organização social. Ela o demonstra primorosamente, em particular, nos “retratos sensoriais” apresentados no quinto capítulo, em meio aos conceitos de espacialidade, sensibilidade, percepção, sentidos e sinestesia. O gosto, na pesquisa de Marina Castro, adquire uma densidade de concretude, já que os sentidos se materializam no gosto por meio das coisas da feira… das coisas amazônicas que fazem a feira. Ou seja, o gosto se torna mais uma das formas tomadas pela quintessência paisagística amazônica. Eis a grande inovação sugerida por este livro.

3.

Muito se tem falado da Amazônia, principalmente nas duas últimas décadas, a partir da tomada de consciência, por parte, principalmente, dos países mais industrializados do planeta, dos efeitos acelerados das mudanças climáticas em andamento. Muito se tem falado sobre a Amazônia e em nome das pessoas que vivem na região, embora pouco se tenha escutado as vozes locais. A região virou global. “Virou” agora, mesmo?

Ora, a região sempre foi global, como vêm mostrando os professores arqueólogas/os que Marina Castro teve ao longo de sua formação no Brasil, na França e na Grã-Bretanha. Antes mesmo da invasão colonial, já se tratava de um território de ampla circulação, múltiplos trânsitos, vivências diversas, trocas intensas e experimentos socioculturais inventivos. É essa Amazônia ancestral que Marina Castro nos apresenta com a exatidão e o rigor acadêmicos objetivos e, ao mesmo tempo, com a delicadeza e a sofisticação intersubjetivas de uma pesquisadora engajada, por meio das experiências sociais do gosto na Feira do Guamá. Aqui, são as pessoas feirantes que não somente falam da Amazônia, mas falam, sobretudo, nos termos da própria Amazônia, expressando-o com toda a sua sensibilidade.

Enfim, estamos diante de uma leitura de suma relevância para se pensar a Amazônia de outra forma, para além dos modelos existentes, nos termos das coisas da Amazônia, do espaço-tempo amazônico, das entidades amazônicas e das pessoas amazônidas que construíram e continuam construindo cotidianamente, no âmbito da feira, inclusive, não somente fisicamente, mas simbólica, cultural e socialmente – ou seja, sensivelmente – esse território hoje tão falado.

*Fabiano de Souza Gontijo é professor titular de Antropologia na Universidade Federal do Pará (UFPA).

Referência


Marina Ramos Neves de Castro. As formas sociais do gosto: sensorialidades e sensibilidades na Feira do Guamá. Curitiba, editora Appris, 2025, 398 págs. [https://amzn.to/3XZjSaz]


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