Por JOSÉ GOMES*
Três poemas
Filólogos
Não acredito que os filólogos escarafuncham as línguas e as letras apenas por um salário
Como um mineiro que garimpa a turmalina para levá-la ao mercado e que esconde
O ouro reluzente dos olhares ávidos e invejosos.
O filólogo, lá no fundo de si, tem uma devoção, uma grande paixão.
Ele busca a vida humana já passada, a voz, o canto dos anônimos, as palavras mortas
Uma frase cheia de dor e sangue de um escravo ou uma expressão de poder
De um rei quando ordena impiedosamente a execução dos cativos.
Naturalmente, o filólogo examinará também, com muita atenção, as palavras
Dos cativos. Como cada um se expressou, em prantos, ao saber da ordem real.
Cada palavra escrita em um fragmento, pois o som perdeu-se para sempre
Será perscrutada pelo garimpeiro de vidas antigas. O que foi apagado de um palimpsesto
Será novamente chamado à vida, na medida do possível, como faz o restaurador ao retirar
A pátina do tempo de um móvel ou de uma obra de arte, o azinhavre do cobre,
Todas essas coisas que os anos e o tempo produzem e que nos fascinam
Porque representam uma parte da vida, da práxis dos homens e dos animais
Que já passou, mas que sentimos como um pedaço de nós, porque entendemos
Perfeitamente, mesmo os mais insensíveis, que viemos de lá, daquela obscuridade
Que somos sua continuação, somos o presente e seremos um dia o passado,
Por nossa vez cobertos de azinhavre, pátina e pó.
Os filólogos escrevem dicionários e gramáticas das vozes extintas
Buscam restaurar, captar novamente os momentos de encanto
Através das palavras, dos textos, dos alfarrábios gravados pelos cálamos,
Ressuscitar as letras, os textos apagados e as emoções.
Essa é a função dos filólogos. Por isso são grandes poetas.
Mesmo que não escrevam textos poéticos, eles os desenterram
E apresentam-nos novamente à contemporaneidade extasiada.
Os Daseins
Na Bahia há uns Daseins que sonham muito, riem muito,
Confiam que Oxalá lhes dará
E Senhor do Bonfim vai trazer
Usam fitinhas coloridas como talismã
Pedem bênçãos a todos os santos e querem esquecer
As correntes e as chibatas que os trouxeram de África, dealém-mar
Não podem ouvir um tamborim que eles vão dançar
Não podem ouvir um bandolim que eles vão cantar
Jogam flores para Iemanjá, para que a Rainha lance bênçãos e encantamentos
Nas vidas que labutam na terra e no mar
Na Alemanha há uns Daseins melancólicos
Que viram tantas vezes o Titanic afundar
O sonho de muitas vidas mirrar inda em botão
A Edelweiss ser brutalmente arrancada numa explosão no ar
Que há um desânimo em sonhar.
Na vida é melhor que não haja otimismo demais, eles pensam.
Não há mais certeza que Senhor do Bonfim vai trazer
Nem que a alegria e a vida feliz de Oxalá vai chegar.
Então eles refletem e hesitam, duvidam e fazem tentativas,
Escrevem pensamentos e teorias, elaboram ensaios
Sobre este Whansinn chamado vida, ou ser, ou existência.
E se a coruja de Minerva decifra a esfinge arcana,
Todos os Daseins do mundo acodem para ouvir osseus juízos
E folhear seus livros,
Buscando que lhe tragam um sentido e um ancoradouro na baía calma.
Eles também trabalham tenazmente enchendo seus paióis de guarnições,
Mantendo as despensas lotadas, acumulando víveres,
Pois eles sabem, eles jamais podem esquecer
O que passaram e o que podem voltar a passar.
Eles não têm muitos estímulos para cantar, gargalhar e bater tamborim,
As experiências passadas não maispermitem essa desenvoltura.
O sofrimento que as gerações padecem deixam rastros roucos na voz,
Mãos um pouco trêmulas e fantasias estremecidas.
E ilusões são para principiantes, eles acham.
Quando cantam, cantam poemas contidos, elegantes, sem arroubos.
Sua poesia diz coisas assim: Manchmal geschiet es in tieferNacht
Pois lá muitos veem o mundo apenas pelo lado da noite
Ignorando o lampejo que ainda rutila no lado do sol.
Também cantam versos como Sag mir wo die Blumensind
Porque lá, mas não só lá, em todos os lugares,
Às vezes há tempos em que somem as flores
E os Daseins vagam, desalentados,em busca de uma estrada florida.
Românticos
Dizem que os românticos são aqueles que só gostam de coisas muito belas
E apenas mui belas, nada menos que arrebatadoras
Como Grace Kelly, sublime em um Dior de chiffon ou tafetá de seda azul,
Silvana Mangano, em Morte em Veneza, aristocrática,
Com véu de tule bordado em renaissance,
Alain Delon, oh! Alain Delon, como Rocco, o ingênuo e puro,
Lindíssimo Rocco, em Rocco e seus irmãos.
Românticos, lembrem-se de que, na vida real,
Também os belos buscam somente outros belos,
Também os belos gostam apenas de belos.
Os menos belos apaixonam-se pelos mais belos, Pasolini.
E, se não és belo, é certo que sofrerás,
Debalde beijarás mãos, arrastar-te-ás aos pés.
Se não tiveres controle sobre teus sentimentos românticos,
Passarás pela sarjeta, tomarás goles e goles de cachaça ou vermute,
Tudo inutilmente, se não fores belo também.
Tu me prendeste sem nenhuma corrente, me seguras sem usar teus braços
Ou mãos, quem me defenderá de tua beleza? Michelangelo.
Ninguém ouvirá teus soluços nem acompanhará teus passos
Quando na madrugada, bêbado, atravessares a praça, trôpego,
Com imensa vontade de chorar.
Nenhum ídolo ou anjo lindo, trajando Armani, forte, esbelto, de belas coxas
Colocará os braços quentes sobre teu pescoço
Ou os lábios cálidos sobre os teus lábios frios quando amanheceres em um banco de praça
Enregelado, louco de paixão e desejo, rejeitado por um belo semideus qualquer.
A tal ponto poderás chegar.
Procura sim, antes, um buteco humilde, com gente simples, comum, como tu.
Certamente logo aparecerá um homem, não exatamente belo, mas másculo, ou uma mulher,
Também não especialmente bela nem diva esplêndida, mas delicada, amistosa,
Que te acolherá.
Te fará companhia.
Conversará sobre coisas tolas, simples, divertidas.
Com quem passarás a noite e observarás estrelas cadentes.
Com quem terás repouso sem desprezo e humilhações.
*José Gomes é médico e bacharel em filosofia pela Faculdade de São Bento.