Por RAFAEL R. IORIS*
Ainda não está claro se Lula pode reviver o ato de equilíbrio que ele conseguiu conduzir tão bem há vinte anos
A ascensão e queda das potências mundiais tem sido foco de intenso interesse acadêmico. Desde a queda do Império Romano até o alvorecer da hegemonia dos Estados Unidos na segunda metade do século XX, estudiosos de várias disciplinas tentaram avaliar se a substituição de um poder estabelecido por outro em ascensão precisa envolver grandes conflitos militares.
Não existe acordo, mas, na maioria dos casos, as guerras aceleraram esse tipo de transição, especialmente quando as potências decadentes e ascendentes não compartilham caminhos históricos de tradições culturais. Independentemente do caso, o fato é que parece haver hoje uma crise do mundo ocidentalcêntrico dos últimos 400 anos, com provável retorno a um domínio econômico centrado na Ásia.
Não está claro como o processo se desenrolará. Mas é certo que as nações historicamente ligadas ao centro de poder europeu-estadunidense, particularmente aquelas do chamado “Outro-Oeste”, como a América Latina, enfrentarão um percurso particularmente difícil ao tentar se (re)posicionar em meio a esta ordem mundial em mudança.
De especial relevância no contexto latino-americano, o Brasil, maior nação e economia do continente, e país que historicamente conseguiu sustentar uma trajetória de relações amplamente autônomas, mas estreitas com a hegemonia hemisférica, encontra-se hoje em uma posição duplamente desafiadora. Substituindo os Estados Unidos, a China é hoje o ator econômico mais relevante do Brasil e, dentro dos BRICS, um bloco multilateral vagamente definido, mas ainda assim eficaz, que ajudou a remodelar o equilíbrio econômico e geopolítico do mundo nas últimas duas décadas, os dois países chegaram a perseguir projetos alinhados para remodelar o contexto global, como na criação do Banco BRICS, uma agência multilateral de financiamento para projetos de desenvolvimento no Sul Global que poderia ofuscar o papel tradicional desempenhado pelo Banco Mundial.
No início dos anos 2000, Lula conseguiu se tornar o primeiro presidente do Brasil com origem na classe trabalhadora. No poder, aprofundou o rumo da construção de um estado de bem-estar social em uma das economias mais desiguais do mundo e inovou com ambiciosas iniciativas de política externa. O Brasil parecia estar emergindo no cenário mundial como a democracia mais promissora e um novo ator diplomático promissor no mundo em desenvolvimento.
Tragicamente, esse caminho auspicioso não se sustentou, e Lula tem agora a desafiadora tarefa de reconstruir as instituições democráticas e reposicionar seu país no mundo, após os trágicos anos da administração neofascista de Jair Bolsonaro. O momento para entregar em ambas as frentes não poderia ser pior, no entanto. Os contextos doméstico e global são muito diferentes daqueles quando Lula assumiu a Presidência pela primeira vez, e o que então era visto como a busca por uma linha de política externa autônoma e assertiva, que se encaixa bem na história diplomática do país, passou a ser agora interpretado por muitos no Brasil e na comunidade internacional como algo divisivo, inapropriado ou mesmo uma traição aos tradicionais alinhamentos ocidentais do Brasil.
Curiosamente, tudo o que Lula tentou fazer em suas ações de política externa nos últimos quatro meses foi tentar reviver suas impressionantes conquistas da primeira década do século, quando o Brasil conseguiu manter boas relações com seus tradicionais aliados e parceiros comerciais, como Estados Unidos e União Europeia, além de expandir projetos econômicos, diplomáticos e estratégicos com países de todo o mundo, principalmente entre outras potências em ascensão, como Índia e China.
Para promover seus objetivos, Lula participou de uma reunião da Comunidade de Nações Latino-Americanas e Caribenhas (CELAC), em Buenos Aires, onde o Brasil manifestou interesse em estreitar os laços com a região. Logo depois, ele visitou Joe Biden em Washington, onde os dois líderes professaram sua defesa mútua da democracia e compartilharam interesses em padrões de desenvolvimento mais ambientalmente saudáveis, particularmente na região amazônica. Após essa viagem, Lula visitou a China, onde foram assinados acordos comerciais, e depois foi à Europa para se encontrar com aliados tradicionais.
Além de não reconhecer o fato de Lula ter visitado antigos e novos aliados, o tratamento que Lula recebeu da mídia brasileira e internacional carece da necessária perspectiva histórica. Há mais de um século, os esforços diplomáticos brasileiros têm sido em defesa do multilateralismo, da solução pacífica de conflitos e da autodeterminação. Além disso, sua própria política externa tem sido amplamente definida pela necessidade de servir como instrumento do próprio desenvolvimento do país.
As aberturas de Lula a parceiros comerciais tradicionais e novos e a defesa da necessidade de encontrar maneiras de resolver o impasse na Ucrânia não são, portanto, surpreendentes. Talvez algumas de suas declarações sobre a guerra pudessem ter sido formuladas em linguagem mais diplomática. Mas ele tem razão ao apontar que o Brasil pode servir de intermediário para defender a paz, que só pode ser alcançada quando os russos forem levados à mesa de negociações – convite que o Brasil tem posição privilegiada para apresentar.
Apesar das especulações sobre a mudança de lealdade do Brasil na crescente rivalidade econômica, geopolítica e diplomática entre os EUA e a China, o fato é que o Brasil não pode se dar ao luxo de escolher um lado nessas disputas. Se a China agora exerce uma tremenda influência econômica no transporte da maior parte das impressionantes exportações do agronegócio do Brasil, os laços econômicos, culturais, diplomáticos e históricos do Brasil com os Estados Unidos e a Europa não vão desaparecer tão cedo.
Não está claro se Lula pode reviver o ato de equilíbrio que ele conseguiu conduzir tão bem há vinte anos, já que a situação é muito mais difícil agora. As disputas globais económicas e geopolíticas são cada vez mais propensas a incluir uma dimensão militar e a guerra na Europa de Leste não tem fim à vista. E embora o Brasil possa de fato desempenhar um papel de pacificação, nenhum dos lados do conflito parece pronto para negociar a paz.
Ao mesmo tempo, porém, logo após a visita de Lula à China, o governo dos Estados Unidos aumentou em dez vezes seus compromissos econômicos com o Fundo Amazônia, demonstrando que neste mundo cada vez mais dividido e conflituoso, o Brasil ainda tem um papel a desempenhar e que alinhamentos automáticos com qualquer país não é do interesse de um país complexo e poderoso como o Brasil.
*Rafael R. Ioris é professor do Departamento de História da Universidade de Denver (EUA).