Autoridade nacional sobre a transição climática

Imagem: Ron Lach
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Por TARSO GENRO*

Terra e clima na voz da razão — os legados de 1789 e a crise do Estado

O lado patético da “força” negacionista está sendo varrido pelo Apocalipse. Não através de um evento único, concentrado numa comunhão de fatores celestes que subtraem os humanos dos lugares do seu destino. Sim, através de uma sequência de espasmos das águas, fogos e sequias em profusão, que matam, desesperam e drenam as esperanças.

A longa drenagem das esperanças que deve ser barrada em nosso estado, não o será por uma articulação da direita negadora da crise climática e da política democrática, que está reorientada pelo oligopólio da mídia tradicional. Nem por uma cisão programática orientada pelo “classismo” tradicional

No momento em que o governo brasileiro propõe que uma Autoridade Nacional sobre a transição climática se transforme numa estrutura federal, para trazer as especificidades de cada região ao seu lugar na nação, é preciso parar para pensar. As circunstâncias de abordarmos situações comuns complexas como particularidades, já ocorreram em outros países do mundo, e sempre foram tratadas, de acordo com as suas características de cada país, de modo a preservar os seus interesses nacionais.

Este comportamento hoje não tem mais chance de prosperar, pois o planeta é uma vasta teia integrada pela tragédia climática. Lembram-se dos navios de lixo tóxico, circulando no mundo em busca de portos de despejo?

No país já afetado de forma abrangente pela transição climática sem controle, a reação unitária das regiões com a nação, vinha sendo impossível, porque essa Autoridade que agora é proposta, ainda em tempo, antes não existia. Os fenômenos naturalmente conectados em todo o território nacional, pelas leis da natureza em fúria, foram até agora observados de forma segregada, em momentos de crise aguda. Foi o que motivou na sociedade civil plural nosso “Movimento Pró-RS”, muito mais além dos dissensos políticos e ideológicos que caracterizam os regimes democráticos.

Os cientistas do clima, os pesquisadores das doenças do Planeta, os estudiosos dos sintomas da hecatombe, a parte mais lúcida da juventude que soube farejar o futuro, avisou: a beira do precipício está cada vez mais próxima e o abismo está cada vez mais profundo! O Planeta em desequilíbrio se defende com a rebelião das águas, com a destruição pelo fogo e com a promessa de novos desertos: a crise ambiental é nacional e global, cujos particularismo sucumbiram à tragédia universal da destruição do ambiente que unifica o mundo.

A “racionalidade” da exploração sem fim dos recursos naturais e a razão das leis da natureza, enfrentam-se no território do nosso rico continente. E é hora de perguntar: no país que é reserva do seu povo, para poder ser sobrevivência da humanidade, temos chance de vencer?

Na Assembleia Nacional durante a Revolução de 1789, que formava as bases da identidade democrática moderna na França, tratavam os deputados mais lúcidos do momento, como o Abade Sieyés e Talleyrand, de organizar o governo revolucionário. Talleyrand preocupava-se, principalmente, em uniformizar “pesos e medidas”; Sieyés destacava a necessidade de dividir o território numa “grade geográfica de oitenta quadrados idênticos”, para racionalizar o domínio técnico da administração do Estado sobre o território libertado do feudalismo.

A visão racionalista do Abade Sieyés — segundo os historiadores — era transformar o “hexágono” (formato natural do país) num “cubo”, com espaços internos de 324 “léguas quadradas”, instituindo, assim, uma igualdade territorial básica, dentro da ideia de Nação, como base das demais igualdades da Declaração Universal de 1789. Aqui se vê, na verdade, o princípio da igualdade sendo pautado especialmente pela aritmética, que faz assim uma geometria da “igualdade arbitrária”.

A razão, todavia, não exclui a sensatez, mas, ao contrário, é composta por ela como momento subjetivo da sua possível humanidade. Lá estava Mirabeau, cujos instintos eram tanto românticos como racionais, que acusava o Comitê de “geometrismo excessivo” (um apriorismo) e alegava que “uma unidade mais razoável seria a da população, não da simples extensão geográfica”. Mirabeau integrava no cientificismo racionalista que vinha do Século XVIII, o humanismo plebeu e burguês, que deitava “luzes” sobre a ciência do século XIX.

Assim seria possível — dizia Mirabeau — ” levar em conta também a topografia local, rios e montanhas, vales e florestas que davam identidade a uma determinada área”. Em 19 de Junho de 1790 os “deputados eliminaram todos os títulos de nobreza que a Constituinte declarava incompatíveis com a igualdade legal da cidadania”, completando — desta forma — a racionalização territorial também pela identidade das populações e pela sua a sua natureza, referida como vales rios e montanhas. E bloqueava as forças míticas da feudalidade, que ainda pairavam como “dona” das mentes, nos espaços reservado aos seus territórios familiares. A comparação com o “melnickistão” não pode ser evitada.

A Autoridade Climática, se vingar, propõe uma pauta nova da construção da nação: em primeiro lugar, a unidade social e política do país, na defesa do nosso rico ambiente natural nacional; em segundo lugar, porque ensejará uma postura superior do Brasil, no compartilhamento das soluções da crise climática global; e em terceiro lugar, por um desafio verdadeiro ao empreendedorismo moderno, de todos os tamanhos, mais além e fora da mediocridade “coach”, primária, que assola a parte mais atrasada do empresariado do país. A mesma que foi negacionista-sanitária e agora se expressa pelo negacionismo do desastre climático, que nos assola e assola a humanidade. Quem sobreviveu até agora vai continuar vendo, se continuar sobrevivendo.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).


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