Barbárie – manual do usuário para o século XXI

A imagem s/d. Bombardeio da Faixa de Gaza por Israel durante a guerra em curso contra o território palestino. Reprodução Telegram
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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

O capitalismo se embriaga em intervalos regulares com enormes doses de barbárie

1.

O irrequieto historiador marxista Eric Hobsbawm nos alertou ainda no início dos anos 1990 que o capitalismo se embriagava em intervalos regulares com enormes doses de barbárie. Conforme essa desordem sistêmica mais envelhece, mais as formas grotescas e duras de desumanidade se tornam parte do humor existencial do capital, sendo naturalizado as diversas formas de violência, truculência e tortura.[i]

Eric Hobsbawm escreve o “Manual do Usuário” da barbárie refletindo nosso velho desconhecido século XX, um tempo fragmentado e de várias formas de morticínios e crueldades, mas também de temperanças e reconstruções. As barbáries se projetam, isso é verdade, ao longo da história dessa espécie cavernosa, mas em grande medida cordial. A humanidade se embaralha entre o taciturno “Minotauro” e o inconfundível apaixonado “Quixote”, sendo a barbárie um eterno personagem presente na linha do tempo dessa espécie.

A barbárie pode ser tratada em diferentes episódios, sendo que a história reflete, segundo nosso historiador, sete episódios chaves de barbarismo no insolúvel século XX. Ainda no início dos XX tivemos os acordes repetitivos das matracas da I Guerra Mundial, algo marcado pelo cheiro podre das “trincheiras” e pelo uso das bombas de “fósforo branco” sobre populações civis. Ali começava uma forma de guerra que se repetirá em graus crescentes, até o morticínio indescritível das bombas nucleares em Hiroshima e Nagazaki em 1945.

Mas ainda nos anos iniciais viveríamos dois episódios canhestros: o uso das forças econômicas do capital enquanto energia tanática para desfazer povos e sociedades, como diria Keynes, um arauto inquestionável do poder do capital, segundo o qual o tratado de Versalhes produzirá a Alemanha genocida de uma década posterior.[ii] A segunda forma será a crença na ciência da guerra como única solução para os conflitos humanos, assim a “Liga das Nações” nasce morta no início dos anos 1920.

Os episódios posteriores conhecidos são de universal conhecimento: a violenta II Guerra e seus mais de sessenta milhões de mortos; o holocausto judeu e os massacres europeus. Diga-se a Europa constitui o centro da Barbárie histórica, longe de qualquer orgulho os europeus e seus subprodutos de poder cultural e, agora centros do poder imperial econômico (EUA, Canadá, Austrália, Israel), são os maiores produtores da mais refinada barbárie.

O poder imperial estadunidense mostra suas garras de barbárie em vários momentos: se inaugura nas bombas atômicas, nas bombas de napalm no Vietnam, na crueza da tortura ensinada as ditaduras latino-americanas e, por fim, seu traço mais moderno o uso dos bloqueios econômicos e da lógica fiscal esmagando, como um torniquete de um torturador, as sociedades e os orçamentos estatais das sociedades subjugadas, sejam latino-americanas, africanas ou asiáticas e, no último período dos XX e já nos XXI, as sociedades europeias subdesenvolvidas.

Os episódios de barbárie já no novo século são tão variados que parecem uma continuação do período anterior. Neste aspecto específico não há um novo século existencial e, sim, uma continuidade complexa, em grande medida enredada em crescentes incertezas, diga-se, para se utilizar palavras do próprio Eric Hobsbawm (2012) que, ao se encerrar o livro Breve século XX: “(…) os cidadãos do fin-de-siécle só sabiam ao certo que acabara uma era da história [porém] faltava ao mundo (…) qualquer sistema ou estrutura internacional”, algo que somente se aprofundou nas três décadas do atual século de incertezas, mas as novas faces da barbárie somente se expuseram conforme se aprofundou a crise do capitalismo e de sua forma de regime rentista, o neoliberalismo.

2.

O que seria central para ver o rancor bárbaro dos últimos anos: infalível a perda de poder imperial e a chacina do povo iraquiano. Tivemos mais de um milhão de iraquianos mortos e outros milhões subjugados ao discurso libertário estadunidense. O império então se organizou nos últimos anos em torno de tentativas de resolver limites comerciais e produtivos. Isso, parecia, uma solução do terrorismo de poder, especialmente estadunidense.

A última fórmula barbárica nos veio de uma realidade histórica herdada da “era da catástrofe”: a Palestina! A barbárie assume alguns contornos novos neste episódio de inauguração da irracionalidade no século XXI.[iii] Faz alguns meses que o massacre israelense ocorre na Palestina, temos um novo Holocausto, sendo que o massacre de um povo, morte dia a dia de crianças e fetos constrói esse enésimo episódio da barbárie. O manual da barbárie parece ser uma aprendizagem contínua de violência e desumanização. São quatro novos componentes de barbárie que se acrescem as formas já descritas e expostas por Eric Hobsbawm, vamos vê-las neste último teatro de morte completa que acompanhamos dia a dia.

(i) A barbárie em tempo real. As tecnologias de transmissão de informações on-line permitiram a humanidade assistir, pela primeira vez, a desumanização de uma população e a justificação da violência cometida contra crianças, adolescentes e mulheres. Quando de “Buchenwald” ou “Auschwitz” parcela considerável da humanidade somente tomou conhecimento da cólera genocida anos após, pela obviedade dos limites comunicacionais. Muito diferente hoje se observa, a matança e a crueldade que se observa em Gaza é secamente assistido por bilhões e parcela considerável dos europeus e estadunidenses fazem gestos de que não são eles que estão por trás de Israel e, no caso brasileiro, assistimos escandalizados os velhos veículos de comunicação, Rede Globo em especial, se rejubilar com os interesses sionistas. A barbárie se torna um “meme” a ganhar “likes”!

(ii) A espoliação acordada. Ao longo da história as diversas modalidades de genocídio perpetrado tiveram de algum modo uma lógica econômica por detrás. Assim, desde o massacre dos indígenas brasileiros, estadunidenses, passando pelos horrores da escravidão africana, o massacre no Congo e os exemplos históricos se multiplicariam, em todos os casos temos a lógica da “acumulação por espoliação”, uma forma de acumulação primitiva se observando. O que se tem de novo no caso palestino é que isso se dá com o acordo das organizações internacionais.

A ONU (Organização das Nações Unidas) feriu de morte já no nascedouro qualquer lógica do direito internacional, estabelecendo a permissividade da espoliação do povo palestino, isso como uma forma de redenção do genocídio judeu cometido pelos europeus (alemães). Curiosamente agora os alemães lavam as mãos como Poncio Pilatos e dizem que nada tem a ver com o massacre perpetrado pelos novos “açougueiros de Gaza”.

(iii) A institucionalização internacional do Estado terrorista. O estabelecimento de uma barbárie organizada pelo Estado não é um fenômeno novo, sendo que ao longo do século XX e em episódios já no século XXI diversos poderes estatais organizaram a violência contra povos e grupos sociais diversos. No caso brasileiro as referências são diversas, desde Canudos, passando pelos massacres as populações negras e indígenas, chegando até as atuais carnificinas do Jacarezinho e da baixada santista[iv]. No caso presente do genocídio de Gaza, temos um poder estatal apoiado internacionalmente para massacrar uma população totalmente desarmada e com mínima capacidade de reação.

O terrorismo de Israel se dá de três formas inovadoras de carnificina: (a) o uso da força militar desproporcional e destruição das gerações futuras, na forma do assassínio de crianças e mulheres[v]; (b) o uso da fome como mecanismo de eliminação da população, inclusive a profundando a ideia de desumanização do povo palestino[vi] e; (c) o apagamento da violência através da eliminação de organizações de direitos humanos, de jornalistas e as instituições de atendimento médico.

(iv) A barbárie justificada pela barbárie passada. Temos aqui uma novidade grotesca, em que a justificativa da violência e do barbarismo se dá com o recurso retórico da proteção de uma população que sofreu genocídio em um período histórico anterior, episódio da “Era da catástrofe”. Assim, o abuso da lógica de “antissemitismo” se tornou um fator justificador na imprensa sob controle dos interesses sionistas a encobrir a destruição de uma população no atual ciclo histórico via sensibilização da violência ocorrida no ciclo histórico anterior.

Podemos ao encerrar esse nosso “Manual da Barbárie 2.1” retornando ao texto original de Eric Hobsbawm que nos lembra que barbárie é “um subproduto da vida em determinado contexto social e histórico, algo que vem com o território” sendo que esteve em “crescimento na maior parte do século XX, e não há nenhum indício que esse crescimento esteja no fim”. O genocídio Palestino parece nos mostrar que os capítulos de barbárie do século XXI não serão menores do que os vividos na “Era dos extremos”.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência e os limites do capitalismo periférico brasileiro e seus condicionantes regionais (Paka-Tatu).

Referências


 Eric Hobsbawm. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Eric Hobsbawm. “Barbárie: Manual do usuário”. In: Sobre a história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

J. M. Keynes. As consequências econômicas da paz. Brasília: editora Universidade de Brasília, 2002.

Notas


[i] Eric Hobsbawm. “Barbárie: Manual do usuário”. In: Sobre a história. São Paulo: Companhia das letras, 1998.

[ii] J. M. Keynes. As consequências econômicas da paz. Brasília: editora Universidade de Brasília, 2002.

[iii] Hobsbawm (2012) observa que a “civilização recuou entre o Tratado de Versalhes e a queda da bomba sobre Hiroshima”, sendo que a irracionalidade do nazismo constitui um novo patamar de “avanço da barbárie no Ocidente”. O referido autor divide o “Breve Século XX” ou “Era dos Extremos” em três períodos não necessariamente lineares: “A Era da catástrofe”, de onde decorre o atual morticínio palestino; “A Era de ouro”, um interregno breve de estabilidade capitalista, mas sempre integrado ao sentido maior da “Guerra Fria” e, por fim, “O Desmoronamento”, uma era de crise que, por assim podemos afirmar, pariu a atual era de incertezas.

[iv] Conferir artigo publicado no site A Terra é Redonda: https://aterraeredonda.com.br/de-canudos-a-jacarezinho/

[v] Mais de 25 mil crianças e mulheres foram mortas em Gaza (https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/mais-de-25-mil-mulheres-e-criancas-morreram-em-gaza-desde-outubro-diz-chefe-do-pentagono/), o que ilustra o quanto o “progresso” da barbárie se relaciona, neste caso, ao extermínio de gerações futuras e ao modelo de acumulação por espoliação, como mostramos em texto publicado no site A Terra é Redonda: https://aterraeredonda.com.br/a-crise-do-imperativo-imperialista/.

[vi] Francisco Ladeira nos lembra em texto recente publicado no no site A Terra é Redonda (https://aterraeredonda.com.br/massacre-da-farinha/) que “o Jornal Nacional e o portal G1 – utilizaram os eufemismos “tumulto” e “confusão” para noticiar o massacre promovido por Israel, que vitimou cerca de cem palestinos que aguardavam pela entrega de ajuda humanitária em Gaza”. O quadro descrito do já apelidado “massacre da farinha” compõe o exemplo mais tenebroso da escalada da barbárie no genocídio palestino.


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