Barbie – de conservadora a progressista

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Por BRUNO FABRICIO ALCEBINO DA SILVA*

O alcance massivo da Barbie tornou-a um símbolo da cultura de consumo e do padrão de beleza ocidental, exercendo uma influência marcante sobre as jovens latino-americanas.

A indústria cultural, incluindo o cinema, desempenha um papel poderoso na disseminação de valores, ideais e estereótipos em escala global. O filme Barbie, produzido pela Mattel, LuckyChap Entertainment, Mattel Films, Heyday Films, NB/GG Pictures, é um exemplo relevante desse fenômeno, com a maciça campanha de marketing nas redes sociais e demais mídias (TV, rádio, jornais etc.).

A grande quantidade de gente vestida de rosa nos cinemas e ruas, e a interação das pessoas com o conteúdo do filme que estreou no último dia 20, no Brasil, reforçam uma impressionante interação com as telas. Até o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, e sua vice, Francia Márquez, viraram alvos de críticas e memes por opositores e conservadores, depois da divulgação de um vídeo com trechos do filme da boneca Barbie para marcar a independência do país, comemorada em 20 de julho.

Todos esses fatores expressam a influência dos Estados Unidos na cultura global, incluindo o continente latinoamericano. Neste artigo, analisaremos como a Barbie, boneca surgida no final dos anos 1950 para exaltar um tipo de beleza anglo-saxônica da mulher loura, alta, moderna e sempre na moda, se transfigura para sensibilizar um mercado mundializado, plural e etnicamente variado, modernizando seu discurso para um feminismo cosmopolita.

Mesmo assim, a personagem é utilizada como uma ferramenta sutil para reforçar certos elementos da cultura norte-americana, perpetuar estereótipos na cultura do Sul global e possivelmente impactar as relações políticas entre os Estados Unidos e os países da América Latina. Pode-se acusar a nova Barbie de tudo, menos de ser conservadora. Evidência disso é o fato de ela ter se tornado alvo de críticas da extrema direita (bolsonarismo) e dos neopentecostais brasileiros ao abordar temas como a inclusão, personificada por uma das versões de Barbie interpretada por uma atriz transexual e o destaque da feminilidade e do empoderamento feminino na Barbieland (mundo fictício onde as personagens da Mattel dominam), em contraposição ao poder patriarcal da sociedade Ocidental, incomodando o público conservador[1] .

Diante disso, o “neoliberalismo progressivo”, segundo Nancy Fraser, justifica os avanços de pautas progressistas e o mantimento dos interesses mercadológicos na indústria cultural, isto é, uma aliança entre movimentos sociais e os setores financeiros, inclusive Hollywood, trataremos com mais detalhes a seguir.

A nova Barbie e a fragilidade da perfeição

O filme Barbie chegou aos cinemas com grande expectativa, mas vai muito além de uma vitrine para vender bonecas. Sob a direção de Greta Gerwig, a comédia/aventura de 1h 54m traz Margot Robbie no papel da estereotipada Barbie, e ao explorar o mundo mágico de Barbieland, o filme aborda temas sensíveis e questiona os estereótipos impostos pela própria cultura Barbie.

A história acompanha a vida cotidiana das diversas Barbies de Barbieland, que vivem em harmonia, focadas em festas e escolha de roupas. No entanto, a protagonista começa a refletir sobre sua existência e percebe que sua vida perfeita talvez não seja tão real quanto parece. Ela decide explorar o mundo como ele é e se depara com questões de violência e padrões de beleza inalcançáveis, que estão longe da perfeição plástica do universo Barbie.

A representatividade das personagens é um dos pontos fortes do filme. Ao explorar a diversidade de profissões e características das Barbies de Barbieland, a obra se mostra inclusiva e representa diferentes trajetórias de vida (com Barbies ocupando os cargos/funções de presidente, diplomata, médica, física e vencedora do prêmio Nobel, advogada, juíza da Suprema Corte e etc.). Isso vai ao encontro de um importante diálogo com a diversidade sexual e as minorias, mostrando que todos merecem ser vistos e respeitados.

O filme também aborda questões de bullying e violência, principalmente quando a Barbie principal chega ao mundo real e se depara com situações hostis e zombarias por sua aparência e estilo de vida. Essas experiências revelam as dificuldades enfrentadas por muitas pessoas, especialmente adolescentes, que precisam lidar com padrões opressores impostos pela sociedade. A pegada anti-bullying do filme é uma importante mensagem de que a empatia, o respeito e a aceitação são fundamentais para criar um ambiente mais inclusivo e tolerante.

Além disso, ao expor a hipocrisia da diversidade e inclusão nas bonecas, o filme critica o consumismo exacerbado e o padrão irreal de beleza. Ele questiona a ideia de que basta incluir algumas representações diferentes (Barbie grávida, plus size, negra e asiática e etc.) para resolver problemas sociais, mostrando que a mudança deve ser mais profunda e verdadeira.

A abordagem da equipe executiva da empresa Mattel, composta apenas por homens, também é uma crítica à superficialidade das representações e ao patriarcado, que surge no filme como antagonismo ao mundo perfeito de Barbieland. Isso ressalta a importância de ter mais diversidade nos processos de criação, garantindo que diferentes perspectivas sejam consideradas para criar personagens mais complexos e realistas.

A protagonista do filme, ao confrontar o mundo real, se depara com questões de violência e padrões de beleza inalcançáveis, enfrentando situações hostis e zombarias por sua aparência e estilo de vida. A boneca é inclusive chamada de fascista por uma das coadjuvantes, essa reflexão sobre os padrões opressores e a necessidade de empatia e respeito ressoa com a crítica ao fascismo estético presente na obra cinematográfica. O fascismo é frequentemente associado à intolerância, ao autoritarismo e à exclusão de quem não se enquadra nos padrões estabelecidos. Segundo Eugênio Bucci: “É incrível como até mesmo essa crítica extrema tenha encontrado lugar – e de honra – dentro da narrativa. A bonequinha de luxo, muito embora ordinária, é mesmo fascista. Mas não quer mais ser. Ela quer crescer. Ela quer um happy end no show que nunca termina”.

Portanto, Barbie se destaca como uma obra que vai além da propaganda de bonecas e apresenta temas importantes para a sociedade atual. Ele dialoga com a diversidade sexual, as minorias e os excluídos, enquanto reforça uma forte mensagem anti-bullying, tornando-se uma produção relevante e significativa em sua abordagem social. Transcendendo os clichês se torna uma crítica inteligente sobre os padrões de beleza, representatividade e cultura consumista da Barbie, tornando-se uma obra relevante e impactante.

A presença da Barbie na cultura latino-americana

A boneca Barbie, criada pela empresa Mattel nos Estados Unidos em 1959, se tornou um ícone global da cultura ocidental. Sua disseminação na América Latina ocorreu de maneira expressiva, e a Barbie logo se tornou uma referência de beleza, moda e estilo de vida aspiracionais para muitas meninas da região. O alcance massivo da Barbie, impulsionado por campanhas de marketing agressivas, tornou-a um símbolo da cultura de consumo e do padrão de beleza ocidental, exercendo uma influência marcante sobre a autoestima e a percepção corporal das jovens latino-americanas. Porém, o novo filme tenta desmascarar toda essa construção de perfeição e de padrões de beleza inalcançáveis para a maioria da população.

Estereótipos culturais nos filmes da Barbie

Ao longo dos anos, a boneca Barbie explorou diferentes culturas e países, incluindo algumas versões inspiradas na América Latina (ver imagem 1) como a Barbie brasileira, vestindo fantasia representando o Carnaval, a Barbie argentina com trajes de tango, a Barbie mexicana com trajes típicos coloridos ou vestindo os tradicionais “traje de charro” e a versão da boneca venezuelana, com trajes típicos de dança do país, conhecida como “El Joropo”.

Imagem 1 – Bonecas da coleção Dolls of the World, representando a cultura latino-americana (Brasil, Argentina, México e Venezuela, respectivamente)

Fonte: Reprodução/divulgação Mattel

Entretanto, é necessário analisar criticamente como essas representações podem perpetuar estereótipos e simplificações culturais. Por vezes, os filmes da Barbie, anteriores à estreia de 2023, especialmente as animações, retratam os países latino-americanos de forma genérica (e de forma indireta), enfatizando elementos superficiais como danças folclóricas, praias exuberantes e a fauna exótica (como os filmes: Barbie em A Princesa da Ilha [2007] e Barbie e as Três Mosqueteiras [2009]). Essas representações podem negligenciar a diversidade cultural, histórica e social dos países latino-americanos, contribuindo para uma visão reducionista da região.

Influência na política externa dos países da América Latina

A indústria cinematográfica é uma ferramenta poderosa de soft power, e os filmes da Barbie podem ter efeitos sutis nas relações dos Estados Unidos na América Latina. A representação de um comportamento que se poderia chamar de liberal-progressista – em alusão ao neoliberalismo progressista, cunhado por Nancy Fraser – nos filmes pode contribuir para uma percepção positiva do Ocidente como terra da tolerância e da democracia, associando os EUA a ideais de modernidade, progresso e aspirações de consumo.

No entanto, é importante reconhecer que a influência estadunidense na cultura latino-americana não é unidirecional. A América Latina também tem uma rica diversidade cultural que influencia a cultura global. Além disso, a presença da Barbie nos países latino-americanos também pode ser vista como uma expressão da cultura de consumo globalizada e do poder das empresas multinacionais. Mas é preciso aqui diferenciar culturas nacionais de indústria cultural, na acepção de Adorno e Horkheimer.

Os conceitos de soft power (poder brando) e hard power (poder bruto) cunhados por Joseph Nye Jr. no livro “Bound to Lead: the Changing Nature of American Power” [1990], podem explicar o fenômeno do filme Barbie globalmente, e especialmente na América Latina. Inicialmente é necessário considerar a definição de poder para Nye (2002, p.30) como: “a capacidade de obter os resultados desejados e, se necessário, mudar o comportamento dos outros para obtê-los”. Diante disso, o poder bruto é relacionado a formas tradicionais de execução de poder, como forças militares e econômicas, enquanto o poder brando atua de maneira mais indireta, seduzindo e atraindo por meio de valores, ideologias, cultura e estilo de vida. O soft power busca conquistar mentes e corações para influenciar positivamente a percepção de um país no cenário internacional.

No contexto da cultura latino-americana e da influência estadunidense, a indústria cinematográfica, incluindo o filme da Barbie, é destacada como uma ferramenta essencial do poder brando dos Estados Unidos. Através dos estúdios de Hollywood, roteiristas e produtores, promovem e difundem valores e modelos norte-americanos (evidenciando os avanços e retrocessos na cultura e sociedade local), o que pode influenciar a cultura e a percepção dos espectadores em todo o mundo, incluindo a América Latina. Podemos observar esse alcance no fim de semana de estreia do filme “Barbie” (2023) na região (ver tabela 1), com uma arrecadação substancial de mais de 53 milhões de dólares (cerca de 250 milhões de reais).

Tabela 1 – Arrecadação na América Latina no fim de semana de estreia (20 a 23/07)

MercadoData de lançamentoAberturaSaldo Bruto
Argentina20 de julho de 2023US$ 4.600.000US$ 4.600.000
Brasil20 de julho de 2023US$ 17.600.000US$ 17.600.000
Colômbia20 de julho de 2023US$ 4.442.404US$ 4.442.404
México21 de julho de 2023US$ 22.691.954US$ 22.956.841
Peru20 de julho de 2023US$ 3.700.000US$ 3.700.000
TotalUS$ 53.034.358US$ 53.299.245

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da Box Office Mojo.

O poder brando dos Estados Unidos, através da disseminação de sua cultura por meio do cinema, programas de televisão e músicas, desempenha um papel significativo na homogeneização cultural global, pois a disseminação rápida e abrangente de informações através da internet e a facilidade de acesso alavancam seu potencial. As produções de Hollywood, em particular, têm uma presença marcante na América Latina, e a influência desses filmes pode reforçar estereótipos e padrões comportamentais estadunidenses na região (ou desconstruí-los).

No entanto, é importante considerar que, assim como o poder brando dos Estados Unidos influencia a cultura latino-americana, a América Latina também tem sua própria riqueza cultural que pode exercer influência global. A troca de valores e ideias é uma via de mão dupla, e a diversidade cultural latino-americana também contribui para moldar a percepção internacional sobre a região.

Assim, no filme Barbie, podemos notar que a sociedade de Barbieland espelha algumas características da cultura americana, refletindo uma visão estereotipada e idealizada desse país. As festas, o estilo de vida extravagante e as profissões glamorosas representadas pelas diversas Barbies são exemplos de como a cultura norte-americana é retratada e romantizada na obra. Essa representação pode, inadvertidamente, reforçar estereótipos e padrões comportamentais estadunidenses na mente da audiência. No entanto, o novo filme traz um olhar mais progressista e inclusivo, desafiando essa tendência de homogeneização cultural e reforço de estereótipos. Ao apresentar uma grande variedade de Barbies, com diferentes etnias, cores de pele, origens culturais e padrões corporais, o filme busca representar a diversidade da sociedade contemporânea de forma mais autêntica e inclusiva.

A indústria cultural e a sociedade unidimensional na América Latina

A indústria cultural, conceito desenvolvido por Theodor Adorno e Max Horkheimer em Dialética do Esclarecimento [1944] e a sociedade unidimensional, teoria elaborada por Herbert Marcuse em O Homem Unidimensional [1964], podem ser relacionadas ao conceito de soft power e aos filmes de Hollywood e sua influência na cultura latino-americana.

Indústria cultural e soft power

A indústria cultural, segundo Adorno e Horkheimer, é um sistema de produção de cultura e entretenimento que busca padronizar e homogeneizar a experiência humana, reduzindo-a a mercadorias de consumo. Esse processo leva à criação de uma cultura de massa que não apenas reflete, mas também molda a mentalidade das pessoas, criando uma falsa sensação de liberdade e escolha, mas, na realidade, limitando sua capacidade de pensar e agir criticamente. Essa padronização cultural contribui para a disseminação do soft power, pois promove valores, ideias e estilos de vida que podem atrair e influenciar as pessoas em todo o mundo, tornando-as receptivas à cultura do país produtor.

O soft power, como discutido anteriormente, refere-se à capacidade de influenciar e atrair outros países por meio de meios culturais, ideológicos e econômicos, em vez de coação militar ou econômica. A indústria cultural é uma das principais formas de soft power exercido pelos Estados Unidos, pois suas produções, como o filme da Barbie, as músicas, os programas de TV e outros conteúdos de entretenimento, podem alcançar públicos globais, incluindo a América Latina, e disseminar valores e ideais que promovem uma imagem positiva dos Estados Unidos e de sua cultura.

A sociedade unidimensional e influência estadunidense na cultura latino-americana

A sociedade unidimensional, conforme aponta Herbert Marcuse, refere-se a uma sociedade em que o pensamento e a cultura são controlados e manipulados pelas forças dominantes, como a indústria cultural, o governo e as corporações. Nessa sociedade, as pessoas são alienadas, tornam-se consumidores passivos e não questionam o status quo. A indústria cultural, com suas produções padronizadas, contribui para essa unidimensionalidade, limitando a diversidade de ideias e perspectivas e reforçando os valores e crenças dominantes. Segundo Marcuse, “enquanto o capitalismo e a tecnologia se desenvolviam, a sociedade industrial avançada exigia crescente adaptação ao aparato econômico e social e submissão à dominação e a administração cada vez maiores. Por isso, uma ‘mecânica de conformismo’ espalhou-se por toda a sociedade. […] o indivíduo perdeu as feições iniciais de racionalidade crítica (isto é, autonomia, discordância, o poder de negação), produzindo, assim, uma ‘sociedade unidimensional’ e um ‘homem unidimensional’” (KELLNER, 2015, p. 15-16).

No contexto da influência estadunidense na cultura latino-americana, a sociedade unidimensional pode ser observada na medida em que a disseminação de uma cultura de consumo globalizada, com base em valores e ideais americanos, pode reduzir a diversidade cultural e a expressão local nos países da América Latina, ou seja, a perda da racionalidade crítica local. Contudo, no filme contemporâneo Barbie observa-se uma mudança significativa nesse cenário. Através de uma enorme variedade de Barbies, de diferentes etnias, cores e padrões corporais, o filme abraça a diversidade e busca representar de forma mais inclusiva a sociedade atual. A inclusão de uma atriz transexual, Hari Nef, interpretando a Barbie médica, é um exemplo claro de como o filme procura representar e dar visibilidade ao público LGBTQIA+, abrindo espaço para uma discussão sobre representatividade e inclusão no cinema e na sociedade.

Essa abordagem representa um avanço positivo, uma vez que desafia os estereótipos tradicionais e ultrapassa a visão unidimensional que a Barbie muitas vezes representou no passado. Ao incluir personagens diversos e apresentar histórias que refletem a realidade de diferentes grupos sociais, o novo filme “Barbie” se destaca como uma obra mais sensível e atualizada, capaz de dialogar com uma sociedade cada vez mais consciente da importância da diversidade e da representatividade.

À vista disso, as teorias da indústria cultural e da sociedade unidimensional de Adorno, Horkheimer e Marcuse podem ser relacionadas ao conceito de soft power e à influência do filme Barbie (com uma nova pegada inclusiva e representativa) e da cultura estadunidense na América Latina. A indústria cultural desempenha um papel significativo na disseminação do soft power dos Estados Unidos, promovendo valores e estilos de vida americanos em escala global. No entanto, essa influência pode contribuir para uma sociedade unidimensional, limitando a diversidade cultural e a expressão local na América Latina.

É fundamental estar ciente desses mecanismos de influência para promover uma compreensão mais crítica e reflexiva da cultura e da política internacional. A própria indústria cultural enxerga a necessidade de mudanças e avanços nas pautas de direitos das minorias e diálogo com o grande público, diverso e multifacetado, e é justamente isso que a nova obra cinematográfica da Barbie entrega.

Lá e de volta outra vez

A indústria cultural mainstream pode parecer inclusiva e progressista, mas ainda assim seguir uma lógica cultural dominante e comercial. Podemos observar isso no filme Barbie, alguns consideram a obra um “acerto de contas” e uma “retratação” em relação ao papel negativo que a boneca desempenhou na educação lúdica das meninas durante décadas.

De fato, a indústria do entretenimento tem um histórico de abordar questões sociais importantes, incorporando temas relevantes em suas produções. No entanto, muitas vezes, essas produções ainda seguem uma estrutura narrativa que enfatiza o individualismo e o consumo, enquanto abordam superficialmente questões sociais mais complexas, esse é justamente o “pulo do gato”, atrair o grande público e sublimar toda a cadeia comercial envolvida nas obras.

Quanto à Barbie, é inquestionável a questão dos negócios e dos milhões de dólares envolvidos em torno da marca, as ações da Mattel subiram 18% no acumulado do último ano. Em junho, o avanço foi superior a 15% na Nasdaq, enquanto a Hasbro, concorrente da empresa, teve avanço de apenas 4,75% dos seus ativos no mesmo período. Essa é uma questão central a ser abordada ao discutir a indústria cultural e suas produções aparentemente progressistas. Por um lado, temos um filme que busca trazer representatividade e inclusão, desafiando estereótipos e promovendo valores mais progressistas. Por outro lado, a Barbie continua sendo um produto comercial, parte de uma grande estratégia de marketing e vendas, que visa gerar lucros para as empresas envolvidas, seja em bilheteria, como evidenciamos anteriormente, e/ou licenciamento (de roupas, sapatos e até alimentos como a rede de fast food, Burguer King, com o combo da Barbie).

Essa tensão entre os ideais progressistas e os interesses comerciais é uma questão complexa a ser considerada ao analisar a influência da indústria cultural. O filme Barbie pode ser uma tentativa genuína de evoluir e se adaptar aos tempos atuais, refletindo preocupações e valores sociais mais abrangentes. No entanto, também pode haver a preocupação de que, ao abordar questões importantes, ele possa ser uma forma de capitalizar sobre tendências de consumo e a busca por uma imagem mais positiva para a marca.

O importante é reconhecer que a indústria cultural, incluindo o cinema, é uma combinação complexa de elementos artísticos, comerciais e sociais. Ao analisar produções como o filme da Barbie, é necessário avaliar criticamente tanto o conteúdo apresentado quanto o contexto em que está inserido, levando em consideração as motivações comerciais e os objetivos artísticos e sociais. Isso permite uma visão mais abrangente e crítica da influência cultural e de como as produções cinematográficas podem impactar a percepção das pessoas.

No entanto, mesmo com essas mudanças, é relevante questionar até que ponto a indústria cultural está genuinamente interessada em promover a diversidade e a inclusão ou se está apenas respondendo às pressões do mercado e às mudanças nas percepções sociais, podemos encontrar a “pegadinha” justamente aí. Isso não significa que o filme não possa ser apreciado por suas mensagens positivas e sua tentativa de avançar em direção à diversidade, mas é essencial ser crítico em relação à interseção entre a mensagem do filme e os interesses comerciais da indústria cultural.

Em suma, o diálogo interno sobre os limites e contradições da indústria cultural é fundamental para uma análise completa. A indústria cultural não é homogênea, e suas produções podem conter elementos progressistas e comerciais ao mesmo tempo. O desafio é analisar essas nuances e compreender como a cultura e o comércio estão intrinsecamente conectados nesse cenário de entretenimento globalizado.

O “neoliberalismo progressivo” e seu impacto na cultura

Podemos perceber uma conexão entre a hegemonia da indústria cultural e o sistema econômico predominante. O “neoliberalismo progressivo”, segundo Nancy Fraser (2018), é descrito como uma aliança entre as principais correntes liberais dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQIA+) e os setores financeiros e simbólicos de destaque da economia dos EUA (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood).

É substancial destacar os conceitos de distribuição e reconhecimento para a filósofa estadunidense: “O aspecto distributivo transmite uma visão sobre como a sociedade deve alocar bens divisíveis, especialmente renda. Este aspecto fala sobre a estrutura econômica da sociedade e, ainda que obliquamente, às suas divisões de classe. O reconhecimento expressa um senso de como a sociedade deve atribuir respeito e estima, as marcas morais do deleito de associação e do pertencimento. Focado na estrutura de status da sociedade, este aspecto refere-se às suas hierarquias de status” (FRASER, 2018, p. 45). De certa maneira, a cultura e o capital econômico ficam em polos distintos.

A partir disso, essa conexão é significativa porque destaca como a indústria do entretenimento, incluindo Hollywood, está envolvida nessa aliança. O bloco progressista-neoliberal combina aspectos econômicos expropriativos e plutocráticos com uma política liberal-meritocrática de reconhecimento. O componente distributivo é neoliberal, visando liberalizar e globalizar a economia, o que levou à financeirização e desindustrialização, impactando negativamente a classe trabalhadora e a classe média enquanto beneficiava os mais ricos.

Por outro lado, o bloco progressista-neoliberal adota uma política de reconhecimento superficialmente igualitária e emancipatória, buscando atrair os movimentos sociais progressistas para a causa. O ethos de diversidade, empoderamento, pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo foi adotado, mas interpretado de maneira compatível com a economia neoliberal, o que contribuiu para a legitimação dessas políticas. É justamente essa apropriação que a indústria cultural estadunidense faz, capta as principais questões do momento e transforma em algo palpável ao grande público, o filme Barbie é um dos muitos casos dessa expressão.

Por fim, essa análise pode ser aplicada ao filme Barbie, onde podemos identificar uma tentativa de abordar questões sociais importantes, como representatividade e diversidade, mas ainda inserido em um contexto comercial que visa promover a marca e a lucratividade. Assim como o “neoliberalismo progressivo” buscou reembalar suas políticas econômicas com uma retórica progressista para alcançar hegemonia, o filme pode ter adotado um discurso mais inclusivo para atrair um público mais amplo, ao mesmo tempo que continua sendo parte da indústria cultural mainstream, sujeita a interesses comerciais e lucrativos.[1]

*Bruno Fabricio Alcebino da Silva é bacharel em Ciências e Humanidades pela Universidade Federal do ABC.

Referências

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1985.

FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Política & Sociedade – Florianópolis – Vol. 17 – Nº 40 – Set./Dez. de 2018.

KELLNER, Douglas. Introdução à 2ª edição. In: MARCUSE, H. O Homem Unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: Edipro, 2015.

MARCUSE, H. O Homem Unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: Edipro, 2015.

NYE Jr., J. S. O paradoxo do poder americano: porque a única superpotência do mundo não pode prosseguir isolada. Tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo, Ed. da UNESP, 2002.

NYE Jr., J. S. Bound to Lead: the Changing Nature of American Power. Basic Books (AZ); Revised ed; 1990.

Nota

[1] Agradeço as sugestões e a colaboração fundamental de Gilberto Maringoni.


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