Por ANNATERESA FABRIS*
Considerações sobre o livro recém-editado de Ibrahim Nasrallah
À primeira vista, o título Biografia de um olho pode soar estranho, mas responde plenamente à simbiose que Ibrahim Nasrallah estabelece entre Karima [Karimeh] Abbud e a câmera fotográfica. Apaixonada por fotografia desde a infância, Karima acreditava que a câmera era dotada de um cérebro e que bastava as pessoas ficarem “na frente de seu olho para que ela se lembre de nós”.
O processo não parava por aí: em seguida, o fotógrafo “leva o cérebro para o quarto, fecha a porta para a gente não descobrir o segredo e, depois, que ele retira de lá nossa fotografia, devolve o cérebro para a câmera”. Mesmo depois de tornar-se a primeira mulher a exercer a profissão de fotógrafo na Palestina,[1] Abbud não abandona essa ideia imaginativa; pede que, depois de sua morte, a câmera seja colocada no túmulo para que “ela veja todas as coisas que eu não posso mais ver”.
O romance de Nasrallah, portanto, é a história da relação de Abbud com “o olho da câmera” e do desejo de unir os dois olhos num olho só para “captar a fotografia sonhada”. Aos doze anos, graças ao fotógrafo Yussef Albawarchi, observa, pela primeira vez, uma paisagem de Belém a partir da câmera. Espantada ao ver o mundo “invertido”, pergunta a Albawarchi como poderia devolvê-lo à “posição correta” e tem como resposta que essa “seria sua missão como fotógrafa”.
Segunda filha de Said Abbud, pastor da Igreja Luterana Evangélica, e da professora Bárbara Badr, Karima nasce em Belém na década de 1890. Há divergências na bibliografia sobre essa data, assim como a da morte. Nasrallah afirma que ela nasceu em 1893, partilhando a tese de Issam Nassar e de Mitri Raheb, que estabelece a data exata: 13 de novembro de 1893. No artigo não assinado “Palestinian photographers before 1948: documenting life in a time of change”, lê-se que ela nasceu em 1894.
Finalmente, Ahmad Mrowat e Soraya Misleh de Matos asseveram que o nascimento ocorreu em 1896. A data da morte é ainda mais controversa. Nasrallah não cita diretamente a data, mas o leitor infere que a morte ocorreu em 1940, pouco depois de a fotógrafa ter assistido a E o vento levou, exibido em dezembro de 1939 na Palestina. Num perfil biográfico da Interactive Encyclopedia of the Palestinian Question lê-se que ela morreu de tuberculose em 27 de abril de 1940. O ano de 1940 é também citado no artigo de Raheb.
Mrowat e Mattos, ao contrário, situam a data da morte em 1955. De acordo com o primeiro, a morte dos pais na década de 1940 traz mudanças radicais na vida da fotógrafa, que se transfere para Jerusalém e, em seguida, para Belém. Em três cartas escritas às primas Shafiqah e Mateel em 1941, Karima fala de seu trabalho fotográfico e da necessidade de organizar um álbum com suas imagens como instrumento de divulgação. A guerra de 1948 provoca um buraco nas informações relativas a ela, de quem só se sabe que morreu em Nazaré em 1955.
A morte da mãe e o álbum fotográfico são situados por Nasrallah em outro contexto. Bárbara morre numa data indeterminada da década de 1930, pouco depois do nascimento do filho de Karima, Samir, que ela lamentava não poder abraçar por ser tuberculosa. O álbum, por sua vez, continha as imagens das quais ela gostava mais e era usado como uma espécie de laissez passer junto às autoridades britânicas: “Os soldados ingleses não enxergavam nas fotos o que ela enxergava. Tratavam-nas como se fosse uma carteira de identidade que permitia a quem a portava passar ou não. No entanto, o álbum era sempre útil, funcionava para uma coisa ou para a outra”.
A tuberculose que, no romance, vitima Karima, tinha sido introduzida na família Abbud pelo irmão Karim. Considerado um “espião alemão” pelos ingleses, por trazer no bolso um exemplar de Os sofrimentos do jovem Werther no idioma original, o rapaz fora preso e sujeito a uma tortura singular: passar as noites no meio dos pântanos da área do lago de Hule, “com as pernas plantadas na lama e o corpo balançando como vara de bambu”. Solto depois de cinco semanas, Karim volta para casa destroçado física e psicologicamente; passava as noites tossindo sem parar e com “dores em todas as suas células”.
Morto em 12 de agosto de 1921, com a mão tapando a boca – talvez para abafar a tosse ou para “impedir seu espírito de se elevar antes de o sol raiar, para poder se despedir de sua família” –, Karim tinha contagiado a irmã Katarina, a qual transmitiu a doença à mãe. Era o segundo luto a instalar-se no seio da família Abbud. O primeiro a morrer fora o pequeno Najib, cuja lembrança Karima cultiva por meio de um retrato de família subtraído e escondido. É a partir desse ato de memória que ela se apaixona pelas fotografias, às quais passa a delegar a tarefa de evocar as pessoas amadas.
O pai logo percebe o amor da menina pelos aspectos visuais da realidade. Quando alguns amigos fotógrafos iam visitá-lo, Karima fixava os olhos nas câmeras e chegava a tocá-las enquanto seus donos não estavam olhando ou se encontravam mergulhados em longas conversas de teor político. A garota desenvolve uma fantasia: “todas as fotografias estavam dentro da câmera. Ficar à sua frente tinha uma única razão: fazer a câmera se lembrar da pessoa para que o fotógrafo pudesse, mais tarde, introduzir a mão e retirar, de onde estava guardada, a fotografia daquela pessoa!”.
Para pôr essa suposição à prova, olhava-se no espelho, tocava a própria imagem refletida, “depois retraía a mão vazia, o que lhe dava a certeza de que a imagem da câmera era a verdadeira”.
Convencida de ser uma câmera, Karima ganha finalmente o tão sonhado aparelho, mas não consegue decidir o que fotografar. Sua ambição era “tirar uma única fotografia, milagrosa, que mostrasse o mundo inteiro: seus mares, rios, gente, florestas, montanhas, planícies, desertos, aves, cervos, cavalos e grilos… tudo o que nele existia”. Ter uma câmera significava “tocar em seus sonhos, moldá-los, amassá-los e fazer deles, como o oleiro faz do barro, o que desejasse”.
A ideia de fotografar a igreja da Natividade é logo descartada por dois motivos. O edifício tinha sido registrado por todos os fotógrafos estrangeiros que tinham passado por Belém. A luz que incidia sobre a igreja não era adequada: “Estava forte, formava sombras e escondia a beleza das pedras, escurecendo alguns cantos com uma penumbra pesada”.
Vendo que a filha, depois de seis dias, não tinha encontrado o motivo ideal, o pai começa a perguntar-se se agira certo ao presenteá-la com uma câmera: “Como pode uma pessoa dar a outra um sonho que, depois de realizado, passa a ser uma maldição, um pesadelo, uma angústia?”. Insone, pensa num estratagema: convida a garota a ficar na soleira da porta, na esperança de que descobrisse o céu sozinha, fosse buscar a câmera e tentasse fotografar o que não fora captado por ninguém.
Tendo percebido a intenção paterna, Karima explica a Said que ele não poderia ser seu olho porque cabia a ela vislumbrar a fotografia que almejava tirar: “Do contrário, será uma imagem preta igual à que eu capturaria se enlouquecesse agora e fotografasse a noite, para em seguida perceber que não passava de uma fotografia vazia, uma página preta, sem o mínimo vestígio de uma estrela sequer”.
No sétimo dia, sempre em busca da imagem ideal, a jovem começa a perguntar-se o que aconteceria se deixasse a câmera no mesmo lugar entre o outono e a primavera, “sem parar de fotografar. Fotografar cada instante: a noite, o dia, a nudez das árvores, as tempestades, os badalos dos sinos da igreja, os chamados à oração das mesquitas, o som dos pássaros, das pessoas que passavam na frente da porta”. Depois de conceber esse “projeto desvairado”, encontra, finalmente, o motivo, ao perceber um raio de sol incidindo sobre os rostos de seus familiares. “Eram eles, mas diferentes, mais bonitos e mais puros, como o dia lá fora”. Decidida a captar “a beleza daquele instante, quando o rosto deles era sem igual”, Karima consegue fazer sua primeira fotografia.
Tendo aprendido o que significava “desenhar com o sol”,[2] a jovem percebe logo que a câmera era um instrumento de compreensão do mundo e que o outono era a melhor estação para iniciar-se na arte fotográfica pelo encontro da luz do sol com “as folhas amarelo-avermelhadas caídas nos pomares e nos jardins” ou com aquelas que recebiam uma porção maior de seu raios, ao permanecerem sobre os galhos antes de cair.
Mas não é apenas a beleza que atrai seu olhar. Karima usa a câmera como um instrumento político para reagir à prepotência dos soldados do Mandato Britânico (1920-1948) e às táticas visuais do sionismo para demonstrar que a Palestina era um território vazio. O primeiro episódio tem um significado sobretudo simbólico. Disposta a fotografar a igreja da Natividade, é surpreendida pela presença de barricadas com sacos de areia e de vinte veículos militares estacionados no pátio do templo. Sem se intimidar com a ordem de sair da área, fotografa a cena e sorri ao ver “a cabeça dos soldados para baixo e as rodas de seus carros para cima”. Depois de revelar a imagem e olhar para ela com raiva, fixa-a com um alfinete e sente-se satisfeita ao verificar que os pés dos soldados “estavam para cima, como lá, e a cabeça deles para baixo”.
O aspecto político dessa fotografia ganha densidade algum tempo depois por meio de uma conversa entre a jovem e o pai. Se a imagem dos soldados ingleses poderia ter sido feita por outro fotógrafo, a maneira de pendurá-la era exclusivamente dela, pois exprimia o protesto pela prisão e doença de Karim. Mas havia algo mais na foto: “Você percebeu, por intuição, que as coisas não iriam parar com a prisão, que algo grande aconteceria com ele. Então posso lhe dizer agora o que você sentiu, mas não conseguiu explicar com palavras: a situação desse país vai mudar por causa desses soldados. Quem ousa fechar a porta que leva a um lugar de culto, a porta que conduz ao céu, fará de tudo para fechar as portas do mundo para este país, para toda a humanidade”.
Se esse episódio não tem uma data própria no romance, ao contrário, as investidas do sionismo têm um marco temporal preciso: 30 de maio de 1936. Informada pelo reverendo Stevan Gunther de que um jornal judeu-alemão tinha publicado um conjunto de fotografias de casas e casarões de Belém pertencentes aos judeus pioneiros, a jovem fica indignada ao constatar que se tratava das “construções mais belas” da cidade (Jasser Palace, Ajaar Palace, Orfanato Armênio, Mosteiro de Alkarmel e Hospital Francês) e de diversas residências, dentre as quais a da família Abbud. Em reação à informação impressa no jornal – as casas “estavam vazias, esperando que alguém as habitasse” –, fotografa todo o conjunto e toma um cuidado especial: inclui um grande número de pessoas nas tomadas externas e retrata os moradores “da melhor forma” nas internas.
Com essas fotografias Karima engaja-se numa batalha política contra a propaganda sionista, que apresentava a Palestina como uma “terra sem povo” pronta para acolher “pessoas sem terra”. Às imagens criadas pelos fotógrafos sionistas, que mostravam os esforços dos imigrantes judeus para fazer florescer a Palestina, trazendo progresso, civilização e modernidade, Karima contrapunha suas tomadas de locais religiosos e históricos e das cidades contemporâneas, consideradas por Mitri Raheb “provas documentais de que a terra não era estéril ou deserta”.
O autor inclui na vertente política também os retratos realizados por ela, que davam a ver a existência de uma classe média culta, próspera e elegante, bem distante das narrativas orientalistas e das representações bíblicas. Raheb não hesita em definir esse conjunto, que constituía o grosso de sua produção, “uma importante contribuição nacional à documentação de uma florescente classe média”, ativa na vida palestina antes da Nakba.
O adjetivo “watamiyya” do anúncio publicitário, divulgado no jornal nacionalista Alkarmel em 16 de março de 1924, possui uma conotação política para Raheb, pois pode ser traduzido por “local”, “nativo” e “nacional”. Ele marcava o início de sua atividade profissional em Haifa e trazia uma série de informações que poderiam interessar ao público. Além de apresentar-se como “única fotógrafa nacional na Palestina”, Karima destacava sua formação com um dos profissionais “mais famosos”[3] e sua especialização no atendimento de pessoas e famílias “com preços módicos e alto profissionalismo”. A última informação demonstra sua atenção ao papel da mulher na sociedade palestina: “Atende às senhoras que preferem tirar seus retratos em casa, diariamente, exceto aos domingos”.
Com o anúncio, a jovem inseria-se num campo profissional constituído a partir de 1885 com a abertura do estúdio de Garabed Krikorian[4] em Jerusalém, fora do Portão de Jafa na Cidade Velha. Dentre seus discípulos destacam-se Khalil Raad, que abre um estúdio em Jerusalém na década de 1890, tornando-se o primeiro fotógrafo árabe da Palestina; Issa Sawabni e Daoud Sabonji, que exercem a profissão na cidade de Jafa. Em Belém, podem ser lembrados os nomes de Ibrahim Bawarski e Tawfiq Raad. No romance, Nasrallah enumera os profissionais admirados por ela: Garabedian[5], Raad, Issa Assawabni e Dawud Sabukhi. Estava também familiarizada com as fotografias dos irmãos Louis e George Sabunji que chegavam de Beirute, de Safidez, atuante em Jerusalém, e de Assawabni, de Jafa.
Karima não nutria a mesma admiração pelos fotógrafos estrangeiros que tinham representado a Palestina de maneira singular, pondo em destaque “a presença do lugar e a ausência do ser humano”. O que a incomodava mais nessas representações era “a insistência em matar a beleza do lugar tirando-lhe a vida que latejava nele”. A jovem não levava em conta que esse desconforto com a ausência de vida tinha como fundamento algumas limitações inerentes à fotografia, sobretudo na década de 1850. Embora fosse considerada um documento, a “verdade definitiva”, a imagem fotográfica não podia representar nenhum tipo de movimento, tendo como resultado um mundo desprovido inclusive da presença humana.
Essa deficiência da fotografia é apropriada pelo discurso imperialista da segunda metade do século XIX, que detecta em suas imagens documentais um mundo vazio, feito de cidades e vilarejos desocupados, pronto a ser modificado pela “missão civilizadora” das potências europeias. Esse discurso, que se aplica ao Oriente Médio como um todo, torna-se particularmente aguerrido no caso da Palestina, apresentada sistematicamente como um lugar destituído de habitantes nativos.
Mais tarde, Karima reagirá enfaticamente à retomada dessa visão pelo sionismo, produzindo imagens que se contrapõem aquelas divulgada pelo jornal trazido à Palestina pelo reverendo Stepan Gunther. No capítulo “A volta do fantasma”, Nasrallah encena uma conversa entre Moshe Nordo, o “autor” das fotografias divulgadas em 1936, e Levi, seu verdadeiro executor. Este leva ao superior um jornal local, no qual tinham sido publicadas imagens de uma fotógrafa árabe para provar “que as nossas são mentirosas e que as casas que fotografamos têm proprietários árabes e são habitadas por árabes”.
Temendo a propagação dessa contrainformação, que demonstraria, sem dúvida, as mentiras do sionismo, Levi transmite a Nordo as ordens do comando: como as imagens palestinas não poderiam figurar ao lado das sionistas, urgia trocar a câmera pelo rifle e dar cabo da vida da fotógrafa. Esse diálogo não tem uma moldura cronológica precisa, mas é possível que se situe entre fins de 1939 e o início de 1940, pois o romance termina com uma tentativa de atentado contra Karima, que não se realiza porque a tuberculose leva a dianteira.[6]
É possível que essa cena seja uma licença poética de Nasrallah, pois não foi encontrada nenhumas notícia a esse respeito na bibliografia consultada. Biografia de um olho não se limita, porém, a contar a história de uma fotógrafa engajada na causa palestina. O autor dedica bastante espaço à figura da retratista, cujo pontapé inicial tinha sido a fotografia da própria família. Karima consegue conquistar pessoas que preferiam ser fotografadas em casa, mas seu alcance vai além desse público.
Mesmo aqueles “que discordavam em questão de fotos pessoais, se eram halal ou haram [7], ou os que consideravam a fotografia uma abominação, uma obra de Satanás, foram tomados pelo desejo de permanecer presentes nas próprias fotografias, pois sabiam que a memória da câmera, no que se refere à retenção dos traços de uma pessoa, era mais forte do que a própria memória e a de seus entes queridos. Ninguém mais conseguia resistir a essa magia e à necessidade dela. As pessoas foram então levadas pelo sonho de permanecer presentes, não importava o que acontecesse, se partissem para longe ou fossem apanhados pela morte. Foram arrebatadas pela capacidade da fotografia de manter seus filhos crianças, pois era isso que o coração almejava sempre que alguém via os filhos crescerem; ou pela capacidade de se manterem jovens, como se o tempo fosse incapaz de lhes tirar o brilho”.
A fotógrafa partilhava os sentimentos de seus clientes, como demonstra o episódio da imagem subtraída. A ação de esconder aquele retrato coletivo, considerando-o “sua propriedade privada”, tinha como substrato o desejo de “guardar para si um momento do qual não abriria mão por nada deste mundo: o momento em que apertava a mão de seu irmão Najib”.
Observadora incansável, passa a “prestar atenção nos reflexos das cores das roupas e em seu impacto nas fotografias: a cor dos vestidos, das paredes, dos sofás, das cadeiras, dos quadros pendurados; das cortinas e janelas; dos cantos, pisos e tetos”. Tendo aprendido com os pintores que as cores próximas “ficam mais harmônicas, sem conflito”, pede que as roupas de um retrato de grupo sejam da mesma paleta. Mas não segue essa lição de maneira cega, pois se dá conta de que, às vezes, era necessário “mover uma pessoa, com um rosto rosado, bonito, e posicioná-la entre dois rostos pálidos, carrancudos, para dispersar a tristeza daquela parte do retrato, deixando-o um pouco mais alegre”.
Convicta de que as fotografias que tirava “não eram mais sobre um tempo, mas sobre as pessoas que ali estavam”, interroga-se sobre o destino da harmonia da imagem quando a morte leva um ente querido: “Continua sendo uma fotografia após sua ausência? Torna-se o retrato de quem estava com ele? Ou apenas o retrato dele?”. Encontra uma resposta a essas indagações quando chega à conclusão de que a fotografia “é mais poderosa do que o nome. […] Por mais belo que seja um nome, pode não fazer você recordar bem de todas as feições de quem o porta, mas uma única fotografia é capaz de fazer você ver vinte rostos, cinquenta, e quem sabe, no futuro, até mesmo mil rostos.
Por acreditar que o retrato “tinha que refletir o espírito de seu dono”, Karima confere uma segunda função ao álbum que carregava sempre consigo. Quando alguém não concordava com seu ponto de vista sobre a imagem que ia ser feita, mostrava o álbum para que a pessoa “pudesse encontrar o que se parecia com ela, ou a pose para o retrato que desejava”. Essa ilusão, que levava os modelos a não perceberem que “quem estava naquela foto não lhes era semelhante”, tinha como resultado uma imagem que a deixava desgostosa “por ter sido obrigada a copiar a si mesma, a se autoplagiar”.
Um episódio destacado no romance demonstra que nem sempre ela se dobrava à visão dos modelos. Convidada a tirar um retrato de família em Jerusalém, incomoda-se com a atitude de um dos jovens que começa “a mudar os móveis de lugar, arrumar as cortinas e até a definir a distância entre as pessoas e a câmera”, enquanto não parava de elogiar a habilidade dos fotógrafos turcos. Resolve então não executar o trabalho, pois o resultado seria ruim: “uma fotografia órfã, sem origem”, que não a representaria e em cujo verso não estamparia seu carimbo.
O incômodo sentido quando alguém “começava a tirar fotografias de si mesmo antes que ela o fizesse” leva-a a não explicar a C. Sawides, o profissional escolhido para executar seu retrato, as características da imagem almejada, pois seria “uma agressão à sua maestria, arte e larga experiência”. Sentindo-se uma massa de argila nas mãos de um “oleiro habilidoso”, Karima sente, pela primeira vez, “o toque diferente da luz em sua pele”; ajeita a posição da cabeça, lança um olhar satisfeito e insinua um sorriso confiante, seguindo as instruções do mestre, que a representa segurando o disparador da câmera, “como se ela estivesse tirando a fotografia dele, e não o contrário”.
Ao admirar o retrato, percebe que Sawides tinha usado “quatro olhos: os dele e os dela”. O mestre “compreendera cada fotografia que ela tirara, pois havia uma distribuição das porções que ninguém sabia fazer como ele; e havia delicadeza, simplicidade, bondade e a luz que ninguém sentia como ela”.
Embora reconheça que as poses assumidas pelos clientes e os fundos utilizados nos retratos de Abbud estejam inseridos nas convenções do período, Nassar destaca como elementos diferenciais de suas imagens a espontaneidade, a humildade e a humanidade dos modelos, que dão a impressão de serem pessoas reais inseridas no contexto da classe média. O autor calça sua visão em alguns retratos específicos, como o do pai, representado com a veste eclesiástica, segurando a Bíblia numa das mãos e olhando firmemente para frente.
Embora se trate de uma pose formal, o retrato não deixa de ter um ar de espontaneidade, que realça a sabedoria e a humildade do modelo. No retrato de duas garotas vestidas à última moda, Nassar detecta duas atitudes dicotômicas em relação ao ato fotográfico: uma delas parece estar “intimidada pela câmera”, enquanto a outra dá mostras de “estar bastante à vontade diante dela”. Essa tensão é perceptível no olhar que se esquiva da câmera da garota mais baixa e na postura da mais alta que encara a lente de maneira decidida.
O romance de Nasrallah destaca outros aspectos da atuação de Karima como fotógrafa, dentre os quais o interesse pela paisagem palestina e a insatisfação com as fotografias coloridas a mão. O primeiro aspecto é resumido num roteiro que dá conta da extensão da viagem empreendida e da vontade de voltar à ativa depois da pausa imposta pela maternidade: “Karima decolou, voou para longe como quem quer reunir todos os dias que perdeu e seguir em direção ao futuro. Foi para Jerusalém, até o Domo da Rocha e a Igreja da Natividade, e fotografou. Então seguiu para o rio Jordão, depois para o norte até Tabarya, e fotografou. Atravessou o rio com seu carro e chegou à cidade de Yarach, e fotografou. Dirigiu até o Líbano, e fotografou. Voltou para o sul, passando por Akka, Haifa, Yafa até Alkhalil, e fotografou. Quando retornou para casa, o reverendo a abraçou e sentiu o coração de cavalo que a filha carregava no peito”.
A questão da fotografia colorida é abordada num diálogo da protagonista com o pai. Por acreditar que ninguém “consegue ver o que acontece dentro das pessoas mais do que o fotógrafo , apesar de captar apenas sua aparência”, Karima expressa seu desconforto com o fracasso em tingir as imagens, pois “o resultado é em preto e branco”. De nada valem os incentivos paternos que apontam para a aceitação de suas imagens coloridas, pois ela retruca com um argumento indiscutível: o problema é que quem fotografou sabe o que há embaixo das cores, tendo consciência de que elas “são infames”. Atingida pela tuberculose, expressa um desejo: “Tudo o que quero é viver até um tempo em que os filmes das câmeras sejam coloridos e elas sejam capazes de captar as cores como são, sem interferência manual do fotógrafo”.
É evidente na narrativa urdida por Nasrallah que o pai é o grande incentivador dos empreendimentos de Karima ao passo que a mãe representa o inconsciente patriarcal, com sua constante preocupação com a opinião dos outros. Said Abbud ensina à filha que é necessário dizer claramente o que se deseja, como demonstra o episódio da primeira câmera recebida de presente depois de admitir seu interesse pela fotografia; incentiva-a quando ela resolve aprender a dirigir para poder carregar a câmera em seus deslocamentos; comove-se até as lágrimas ao ver o anúncio do estúdio e sublinha que a fotógrafa “nasceu e cresceu bem antes dele” porque foi capaz de arrancas sua liberdade; apoia sua decisão de não seguir o marido no Líbano[8]; exorta-a a retomar o trabalho depois de um intervalo de dois anos para cuidar do filho, lançando mão de uma espécie de poema (“[…] você tem o coração de um cavalo, o olho de uma águia e o toque de uma borboleta”; fica orgulhoso com as imagens feitas para contrastar a propaganda sionista que lhe provocam “um sentimento estranho, de que estava vendo Belém do céu, e não na mesa. Belém repleta de casas e de gente” e confessa que Karima é parte da força de sua fé “em Deus que criou as pessoas inspirando-as para trabalhar e […] no ser humano que se recusa a desistir”.
Concentrado na figura da fotógrafa, Nasrallah não dá importância à formação geral de Karima e espera que o leitor detecte por si a personalidade desafiadora de uma mulher à frente de seu tempo. O autor limita-se a dizer que a jovem se tornara professora e que deixara a docência depois de um ano para dedicar-se à fotografia, desagradando a mãe. Fluente em três idiomas – árabe, alemão e inglês –, Karima forma-se em Literatura Árabe na Universidade Americana de Beirute no começo da década de 1920 e trabalha por um período como professora no Orfanato Sírio de Jerusalém.
Como sublinha Mitri, ela não deve ser vista como uma simples fotógrafa, mas como uma empreendedora, que se vale da rede de contatos familiares e religiosos para abrir estúdios em diversas localidades da Palestina. Outro aspecto destacado pelos especialistas e não explorado suficientemente por Nasrallah é a “revolução social” que ela introduz em sua prática profissional ao sair do estúdio e de sua atmosfera artificial e adentrar as casas de seus clientes, sobretudo mulheres e crianças, que capta mais à vontade em seus “ambientes naturais”, em poses mais diversas e não tão convencionais.
Não se deve esquecer que Abbud não se limita a registrar a vida e os semblantes da classe média palestina, pois uma parte de seu trabalho é dedicado à captação de modalidades de trabalho populares no campo e na cidade, de hábitos ancestrais, de cerimônias, dentre outros, compondo um vasto painel da vida palestina anterior à Nakba (15 de maio de 1948), quando mais de 700.000 pessoas são obrigadas a deixar seus lares em razão dos conflitos de 1947-1948 e da Guerra Árabe-Israelense (1948-1949), com consequências que se espraiam até os dias de hoje.
Esse contexto conflituoso está na base do “desaparecimento” da obra de Abbud por um longo período de tempo. Cabe a Issam Nassar trazer de volta seu legado numa publicação de 2005, Different snapshots: first local photographers in Palestine (1850-1948). No ano seguinte, o colecionador israelense Yoki Boazz publica um anúncio num jornal árabe, no qual solicitava informações sobre a fotógrafa, de quem tinham sido encontrado quatro álbuns com imagens autógrafas numa casa situada no bairro Qatamon de Jerusalém. Depois de conseguir as fotografias em troca de uma edição antiga da Torá impressa na cidade palestina de Safad (1860), Ahmad Mrowat localiza mais três álbuns com a família Abbud em Nazaré e o conjunto passa a integrar a coleção Darat Al Funun.
O legado da fotógrafa começa a ser divulgado e a ela é dedicado o curta-metragem Restored pictures (2012), da cineasta Mahasen Nasser-Eldin. A criação do prêmio Karimeh Abbud pela Universidade Dar-al-Kalima, de Belém, vem coroar o reconhecimento da contribuição de uma fotógrafa, que se pôs a serviço de seu povo num momento como a década de 1920, no qual associações muçulmanas e cristãs começam a contrastar a ideia corrente de que a Palestina não era uma nação, mas um conjunto de grupos sectários, e a apoiar o processo de unificação.
Publicado em 2019, o romance de Nasrallah faz parte desse processo de recuperação da memória de uma figura fundamental na história da identidade palestina, que soube mostrar em suas imagens a existência de um povo com hábitos arraigados numa tradição milenar, mas simultaneamente ancorado na modernidade, que se orgulhava do próprio passado, mas não menosprezava o presente. Desse modo, Abbud punha em xeque uma visão criada no século XIX com as “conquistas pacíficas” da fotografia e transformada em arma do colonialismo por França e Inglaterra e, já no século XX, em instrumento de conquista pelo sionismo.
Para um povo que perdeu não só seu território, mas também a narrativa a respeito de suas formas de vida, as fotografias de Abbud representam uma importante contribuição à documentação de um momento específico e crucial na vida palestina: o período do Mandato Britânico que se encerrou com a Nakba. As incertezas sobre a biografia de Abbud mostram que são necessárias novas pesquisas sobre a trajetória de uma figura determinante na documentação de uma vida nacional viva e variada, a despeito do ocupante do momento.
*Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).
Referência
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Bibliografia
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MROWAT, Ahmad. “Karimeh Abbud: early woman photographer (1896-1955)”. Jerusalem Quarterly, n. 31, verão 2007, p. 72. Disponível em: <palestinian-studies.org/en/node/77884>. Acesso em: 9 jul. 2024.
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Notas
[1] De acordo com Issam Nassar, não há evidências de mulheres exercendo a profissão de fotógrafo, antes de 1948, na Palestina, no Egito e no Líbano, com exceção de Abbud. Sabe-se que Najla Raad coloria a mão os retratos tirados pelo marido Johannes Krikorian e que Margo Abdou dirigia o estúdio do irmão David, quando este viajava. Nenhuma das duas, porém, foi proprietária de um estúdio fotográfico como Karima Abbud.
[2] Quando criança, ela tomava a expressão ao pé da letra: acreditava que os fotógrafos “seguravam o sol e desenhavam com ele no papel”. Depois percebe que o astro era muito distante e ninguém podia segurá-lo.
[3] Nassar pergunta-se quem poderia ter sido o mestre da jovem: Khalil Raad, Garabed Krikorian ou Sawides? Ou, talvez, ela tivesse estudado na Colônia Americana de Jerusalém? Ou com al-Sawabini em Jafa? Ou, com alguém do qual não se conhece o nome em Haifa?
[4] Krikorian tinha sido aluno de Yessai Garabedian, patriarca da Igreja Armênia em Jerusalém, que fundou um ateliê de fotografia na catedral de São Tiago, por volta de 1860.
[5] O autor funde no fotógrafo Issay Garabedian as figuras de Yessai Garabedian, que não pôde praticar a fotografia em função de seu posto religioso, e de Garabed Krikorian, que abriu um estúdio em Jerusalém e foi professor de Raad.
[6] Numa nota de rodapé, Nasrallah informa que as imagens de Abbud foram divulgadas três anos depois de tiradas, quando o jornalista Najib Nassar “foi apresentado a elas e soube de sua história”.
[7] Os termos indicam o que considerado legítimo e ilegítimo pela Lei Islâmica (Shariah).
[8] No romance, Karima conhece o libanês Yussef Fares em agosto de 1930. A jovem, que tinha “uma personalidade calma, treinada para ficar parada atrás da câmera com a firmeza de um soldado e a delicadeza e a esperteza de uma artista”, não se interessa, a princípio, pelo homem “frívolo”. Assim mesmo casa-se com ele, mas se recusa a segui-lo no Líbano, pois não queria abandonar sua carreira bem-sucedida. Mesmo grávida não alcança o marido no Líbano e só volta a vê-lo pouco antes do filho Samir completar um ano. Uma nova recusa em mudar-se para a terra natal do marido põe fim à união. Mitri Raheb e Soraya Misleh de Matos reportam a informação de que o casal morou dois anos no Brasil, onde nasceu Samir. A rápida volta é vista por Raheb como um índice do apego da fotógrafa à Palestina e a seu povo.
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