Por LEONARDO AVRITZER*
As bases do bolsonarismo residem em uma cultura de reação ao liberalismo que no Brasil só aparece como liberalismo por ignorância e indigência intelectual.
A recuperação do bolsonarismo que assistimos nas últimas semanas sugere que o fenômeno continuará entre nós por algum tempo. Muitas são as causas da resiliência do bolsonarismo depois de mais de três milhões de casos de Covid-19, de 120 mil mortos e, ainda, depois de seu líder maior, o presidente, ter em menos de 90 dias realizado um conjunto de atentados à democracia sem paralelo na história da nossa democratização.
O mais evidente desses atentados foi ter discutido a intervenção militar no Supremo Tribunal Federal em uma reunião. Entre todas as causas da resiliência, uma me parece a principal: os assim chamados liberais brasileiros preferem o projeto bolsonarista a um fortalecimento do Partido dos Trabalhadores e de outras forças da esquerda, que poderia ser a consequência de uma eventual derrocada do bolsonarismo.
Três acontecimentos no campo político/intelectual e da opinião pública apontam nessa direção: a entrevista do presidente da Câmara Rodrigo Maia ao programa “Roda Viva” na qual ele diz não ver motivos para um impeachment do presidente Bolsonaro; uma resposta de diversos economistas autoproclamados liberais a um texto de intelectuais da USP sobre o fascismo à brasileira.
Ali, é feito um esforço de comparação entre o Partido dos Trabalhadores e uma suposta agenda antiliberal; por fim, um lamentável editorial sobre corte de gastos do jornal Folha de S. Paulo denominado de “Jair Rousseff” no qual o petismo mais uma vez é equiparado ao bolsonarismo independentemente dos fatos de o primeiro jamais ter ameaçado as instituições democráticas e de ter aceitado decisões legais questionáveis que conduziram ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Em todos os três episódios temos um elemento comum que explica a resiliência do bolsonarismo: setores centrais no sistema político e na inteligência do país entendem o liberalismo de forma equivocada, ultrapassam a fronteira entre liberalismo e democracia sem perceber o dano que infligem à ordem democrática e, ao final, justificam atitudes antidemocráticas a partir de uma pseudo-identificação entre esquerda e antiliberalismo.
O pano de fundo de todos esses equívocos é uma profunda incompreensão do liberalismo como doutrina política. Estes autores/atores transitam com desenvoltura entre aqueles que são inimigos de uma sociedade aberta (peço desculpa a Karl Popper pelo trocadilho). Neste artigo, tentarei mostrar que as bases do bolsonarismo residem em uma cultura de reação ao liberalismo que no nosso país só aparece como liberalismo por pura e simples ignorância e indigência intelectual.
As origens conservadoras e antidemocráticas do Bolsonarismo
Vale a pena utilizar como mote de abertura desta sessão uma passagem com a qual um grupo de economistas procurou responder a um artigo de professores da USP intitulado “Urgência da União das Forças Democráticas”. Os críticos são um conjunto de economistas autoproclamados liberais e seu argumento é não ser justo associar fascismo e liberalismo. Concordo que não seja justo, ainda que permaneça a pergunta sobre se os intelectuais uspianos em questão de fato o fizeram [1].
É, porém, absolutamente surpreendente a forma rasa e primária como aquele argumento foi defendido. Eles afirmam: “Friedrich Hayek, Karl Popper, Ludwig von Mises e Raymond Aron, alguns dos principais pensadores liberais do século, foram todos exilados pelo nazifascismo. Dedicaram a vida a pensar a ordem social a partir de uma visão complexa da liberdade humana, envolvendo suas dimensões intelectual, política e econômica. Essas ideias serviram de base para o conceito contemporâneo de sociedades abertas e seu delicado equilíbrio entre a garantia de direitos, respeito a minorias, democracia política e economia de mercado”.
Cabem aqui pelo menos duas qualificações: primeiro, é um tremendo erro conceitual identificar fascismo e nazismo. O fascismo tem como núcleo o exercício da violência política aberta contra a esquerda e setores populares, enquanto o núcleo do nazismo é o racismo e a ideia de pureza racial (vide a esse respeito o excelente livro de Zeev Sternhell, The birth of fascist ideology).
Assim, devido a um conhecimento completamente deficiente do fascismo como ideologia e sua diferenciação em relação ao nazismo, escapa aos autores do manifesto liberal local que três dos quatro autores que eles citam se exilaram da Alemanha, da Áustria ou da França ocupada apenas pelo fato que eles qualificavam como judeus pelas leis de Nuremberg. O quarto, Von Mises, exilou-se da Áustria porque ele havia participado de um governo de extrema direita que rejeitava o nazismo e que fechou o parlamento austríaco, o que dificilmente o caracterizaria como democrata.
O segundo elemento chama mais a atenção no Brasil hoje. Trata-se das concepções radicalmente distintas de liberalismo e de democracia que três dos quatro autores esposam (o quarto, como afirmei, dificilmente poderia passar por democrata). Temos entre estes autores duas concepções: liberalismo enquanto sociedade aberta onde a democracia é método de governo, defendida por Karl Popper e na qual podemos também inserir Raymond Aaron, e liberalismo enquanto uma doutrina ampla ou uma episteme pensada em oposição à própria ideia de sociedade (vide aqui o excelente livro de Wendy Brown Nas ruínas do neoliberalismo).
Faz-se importante diferenciar as duas concepções porque a primeira tem de fato sua origem no iluminismo e no pensamento dos séculos XVII e XVIII, enquanto a segunda conecta-se com a reação ao iluminismo e com uma diferenciação do liberalismo que se tornaria popularizada na segunda metade do século XX por Isaiah Berlin. De acordo com essa segunda versão, o centro do pensamento liberal é uma esfera de negatividade que desiste de se relacionar seja com a ideia do governo enquanto virtude seja com a ideia de que o fundamento da liberdade política está umbilicalmente relacionado à liberdade no campo da cultura.
Não é difícil perceber que, se há um pensamento liberal no Brasil do início do século XXI, este constitui uma forma de estreitamento do liberalismo associada à reação cultural ao próprio liberalismo ocorrido ainda no século XVIII. É essa forma que permite associar liberais e o presidente que defende no seu mote político a ideia de “Deus acima de todos” e que todos os dias demonstra o fim da ideia do governo virtuoso. Permitam-me desenvolver esse tópico.
Três autores fundamentaram a doutrina liberal no século XVIII, John Locke, Jean Jaques Rousseau e Immanuel Kant. Cada um deles contribuiu com uma concepção fundamental para o pensamento liberal. Locke com a ideia de que os indivíduos têm direito de se insurgir contra a tirania, Rousseau com a ideia de que a falta de liberdade é resultado da ação humana e pode ser revertida e Kant ao abrir o caminho para o avanço da ciência e da cultura como a sua famosa frase “sapere audi”.
A tradição à qual Jair Bolsonaro e até mesmo Paulo Guedes pertencem- e eu ousaria incluir nela também alguns dos signatários do artigo-manifesto publicado no jornal Folha de S. Paulo – opera sobre o mote da continuidade cultural enquanto categoria superior à vontade dos indivíduos, isso é, como parte da tradição de reação ao iluminismo e ao liberalismo. É isso que explica o mote “Deus acima de todos” não incomodar os liberais da Avenida Faria Lima. Tentemos entender o que está envolvido nessa tradição que boa parte dos brasileiros anda equivocadamente identificando como liberal.
A tradição anti-iluminista e antiliberal surge quase que simultaneamente à tradição do iluminismo e do liberalismo (sigo aqui mais uma vez o recentemente falecido historiador da Universidade Hebraica de Jerusalém Zeev Sternhell em seu livro The Anti-enlightenmentTradition). Seus principais representantes – Burke e Herder – realizaram duas operações que serão identificadas até a metade do século XX com o anti-liberalismo. Para Herder, em Por uma outra filosofia da história, a continuidade institucional não deviria ter nenhum valor. O que sim deve ter valor é a continuidade cultural, a continuidade dos hábitos e a preservação da ordem social.
Não é difícil enxergar Herder em todas as manifestações anticultura que vimos no Brasil, do ataque ao Santander por patrocinar uma exposição em Porto Alegre ao ataque a uma exposição em Belo Horizonte ao apoio à lei que proíbe exposições com arte que envolva o nudismo no Distrito Federal. Temos também em Herder a tentativa de resgatar outros períodos históricos, em particular gregos e romanos, através dos quais ele pretende colocar em questão uma filosofia da história que entenda a razão como base de todos os processos políticos e culturais (Sternehell, 2004: 79).
Assim, Herder questiona a tradição do “sapere audi”e tem como parceiro Edmund Burke, que questiona da tradição da racionalidade política introduzida pela revolução francesa. Burke foi um crítico de Locke e principalmente da ideia encontrada no Segundo Tratado de Governo de que é legítimo destituir governos. Para Burke, “nenhum governo poderia se manter por um momento sequer se pudesse ser derrubado por algo tão frouxo e indefinido como uma opinião de má conduta (Burke, Reflexões sobre a revolução na França, p. 59). Tal opinião, ao que parece, inspira Rodrigo Maia). Em seguida, Burke reitera sua opinião desfavorável acerca da ideia de soberania popular. Para ele, “a questão de (…) depor reis sempre será como sempre foi uma questão de estado extraordinária e totalmente alheia à lei” (Burke, p. 63).
Temos assim o núcleo do pensamento antiliberal e anti-iluminista tal como foi emergindo a partir do final do século XVII. Ele é constituído por três paradigmas, todos eles bastante caros ao bolsonarismo, apesar de ignorados pelos economistas signatários do manifesto: em primeiro lugar, a negação de um conceito amplo de autonomia individual aplicado tanto à ciência, quanto à cultura e à política; em segundo lugar, a reabilitação de uma concepção de religião e de tradição que são reconstituídas ao largo da crítica; em terceiro lugar, a negação da relação entre razão e soberania política tal como pensada por Locke e Rousseau. O bolsonarismo bebe nestas três fontes apesar de reiteradamente ser defendido por indivíduos que se proclamam liberais. Vale a pena entender o que é o liberalismo à brasileira para entender o argumento dos nossos economistas liberais.
Liberalismo à brasileira
Certamente o bolsonarismo e o conservadorismo brasileiro não constituem apenas uma importação. Eles expressam fortes traços do autoritarismo brasileiro especialmente na ancoragem que o bolsonarismo tem das Forças Armadas e teve, até a saída de Sérgio Moro, na corporação judicial. Ambos os setores foram formados à parte do liberalismo europeu e norte-americano, tal como fez questão de nos lembrar recentemente o general Hamilton Morão em uma carta curiosa escrita ao jornal Estado de S. Paulo onde ele resgatou o jurista Amaro Cavalcanti, ministro da justiça de Prudente de Morais e membro do STF.
Amaro Cavalcanti foi lembrado por Mourão com o intuito de deixar claro que o liberalismo brasileiro não aceita as características do federalismo norte-americano e a ideia das amplas prerrogativas dos estados na elaboração de políticas públicas. E não aceita mesmo, assim como não aceita poder civil sem tutela militar. Recentemente, o jurista conservador Yves Gandra Martins defendeu em texto publicado no jornal Folha de S. Paulo que o artigo 142 da Constituição de 1988 permite a intervenção dos militares na política a chamado do poder executivo.
Duas questões se colocam aqui. Primeiro não custa lembrar que a República brasileira é uma instituição sob a tutela militar e que todas as constituições desde a de 1891 tiveram alguma versão do capítulo 142; a segunda é que o catolicismo conservador brasileiro tem elementos vaso comunicantes com o autoritarismo e com a defesa da ditadura realizada pelo principal jurista do nacional socialismo, Carl Schmitt. Schmitt e Yves Gandra beberam na mesma fonte, a do catolicismo conservador espanhol e seu principal teórico Donoso Cortes [2]. Assim, fecha-se determinado círculo sobre as fontes locais do autoritarismo que estão nas corporações togadas, nos militares e em parte do nosso pensamento católico que recentemente recebeu aportes significativos do neopentecostalismo via a ideia de maioria moral.
Esses diferentes setores das elites brasileiras jamais de adaptaram bem ao pensamento democrático e se consideram acima da soberania popular. É o que explica passagens da entrevista de Rodrigo Maia e do manifesto dos economistas autointitulados liberais. Vale a pena mencionar alguns elementos gerais da lei do impeachment, n° 1079 de abril de 1950, feita pelos liberais da UDN no momento em que Vargas se preparava para voltar à presidência pela via eleitoral.
O impeachment, que constitui parte da tradição de alguns países [3], tem no Brasil uma configuração ampla que desestabiliza o poder presidencial. No caso brasileiro, o impeachment não segue o padrão internacional do presidencialismo, em particular o anglo-saxão, de acordo com o qual esses devem ser eventos muito raros. Para isso, eles não podem envolver oposição política ou questões administrativas (maladministration). No caso do impeachment, a Constituição de 1988 não reviu a Lei n° 1079/1950. Assim, o impeachment continuou sendo um elemento fortemente político na tradição da Nova República.
Uma questão fundamental no processo de impeachment no Brasil é o consenso intraelites acerca da remoção do presidente. Ofereço dois exemplos para essa interpretação. O primeiro é a justificativa oferecida por Rodrigo Maia para não aceitar o pedido de impeachment de Jair Bolsonaro. Maia afirma não haver justificativa mesmo com a participação do presidente em atos não democráticos: “Não que não sejam questões graves, publicamente me manifestei em quase todos esses eventos que o presidente participou. […] Acho que o presidente comete vários erros, só que tem uma parte da sociedade que apoia o presidente também, apesar de minhas divergências com ele. Não vou ser pressionado para deferir algo que acho que não há crime” .
É extremamente curiosa a justificativa do presidente da Câmara. De um lado, não existiria crime em ir a manifestações antidemocráticas, ainda que saibamos que o presidente fez mais do que isso. Convocou algumas delas e difamou o judiciário a partir de redes instaladas dentro do Palácio do Planalto. Mas, o realmente curioso são as últimas duas frases: quando se refere à sociedade que ainda apóia Bolsonaro – sem mencionar que, de fato, fala do apoio das elites – e quando ele afirma não haver crime – que quase seria o mesmo que dizer só haver crime quando há um consenso nas elites sobre o assunto.
A entrevista de Maia pode ser complementada por duas passagens no artigo dos nossos economistas liberais. A primeira delas poderia ser uma análise normal da política se não soubéssemos do que se trata. Eles afirmam: “A vitória do capitão reformado é fruto da emergência de novas forças políticas na sociedade e do exercício legítimo da alternância de poder. É nessa dimensão que ele deve ser entendido por aqueles que comungam de uma visão plural da democracia”. Parece uma análise questionável vindo de pessoas que se denominam liberais.
Afinal, o que caracteriza o governo Bolsonaro são duas concepções profundamente antiliberais: a rejeição a decisões de instituições contra majoritárias como o STF e a rejeição a uma agenda de direitos humanos ou de instituições como a imprensa e da autonomia das mulheres. É interessante como nenhuma dessas questões interessa aos nossos economistas. Talvez porque eles entendam o liberalismo a partir da matriz estreita da segunda metade do século XX como defesa inconteste da propriedade privada e da diminuição do tamanho do estado. Nesse campo, até mesmo a liberal Folha de S. Paulo precisa mostrar apoio à agenda dos liberais da Avenida Faria Lima.
Pretendo terminar este texto no mesmo lugar onde comecei: como é possível que Bolsonaro continue estável ou até mesmo melhorando o seu índice de aprovação? É possível porque as forças de centro o entendem como parte de uma transição de hegemonia política que derrotou a esquerda com um impeachment sem base legal e depois elegeu a extrema direita por meio de uma campanha eleitoral financiada de modo fundamentalmente ilegal. Mas, se o resultado parece ser o esperado desgoverno e mortes completamente desnecessárias no caso da Covid-19, nada disso parece demover o guardião da porta do impeachment, o presidente da Câmara Rodrigo Maia.
Para ele, o impeachment é um processo determinado pelo termômetro da opinião pública e ele não pretende abrir essa porta enquanto as forças do liberalismo local – leia-se setores do mercado e os economistas autointitulados liberais – acharem que vale pena ter um governo de extrema direita e antidireitos se o objetivo de ter uma economia privatizada puder prevalecer. Rodrigo Maia parece ter essa missão: providenciar a meia sola que limita o bolsonarismo e torna palatável a enorme agressão aos direitos e à vida que este governo patrocina.
*Leonardo Avritzer é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de O pêndulo da democracia(Todavia).
Notas
[1] No texto em questão publicado também no jornal Folha de S. Paulo em 24/04 de 2020, os autores falam em fechamento da democracia e revolução conservadora. Apontam também que “ao mostrar-se indiferente à tarefa de proteger os cidadãos contra a ameaça da morte, Bolsonaro rompe com o princípio basilar do pacto social e com a justificativa da existência do próprio Estado: a garantia do direito à vida”;
[2] Carl Schmitt no seu livro sobre ditadura dedica amplas passagens a Donoso Cortes. Vide Carl Schmitt e Donoso Cortes por Bueno Roberto.
[3] A tradição de impeachment varia nas diversas tradições presidencialistas. Nos EUA, o impeachment está inscrito na constituição, mas só pode acontecer por crimes graves e é praticado excepcionalmente. O país que não tinha tradição de impeachment era a França até 2014, onde continua sendo quase impossível remover um presidente. Ver Sunstein, Cass. Designing democracy. What constitutions do.