Por MÁRIO MAESTRI*
Não é a militância em um partido dado, com uma específica denominação, que constitui o fio vermelho unindo comunistas internacionalistas de ontem e de hoje
Em 25, 26 e 27 de março de 1922, nove delegados, representando menos de oitenta militantes, fundavam, em Niterói, no Rio de Janeiro, organização partidária registrada, no Diário Oficial da União, como Partido Comunista – Secção Brasileira da Internacional Comunista. (PC-SBIC). Prenhe de sentidos, o nome e o sobrenome do minúsculo grupo político definiam seus dois objetivos basilares. Por um lado, ele se inspirava na vitória, havia apenas cinco anos, da revolução soviética no Império Russo, e, por outro, na III Internacional, fundada três anos antes, em Moscou.
No I Congresso da Internacional Comunista, Lenin, Trotsky e Christian Rakovsky, eleitos para dirigi-la, delegaram a responsabilidade a G. Zinoviev, que teve, como um dos seus secretários, o belga-russo Victor Serge. Zinoviev e L. Kamenev eram os mais antigos, próximos e destacados colabores de V. Lenin. A sigla PC-SBIC registrava o compromisso férreo de luta pela organização soviética do Brasil, parte da construção da “União Mundial das Repúblicas Socialistas Soviéticas”, definida por Lenin como objetivo maior da Internacional, quando da sua fundação. (1)
A tardia introdução do marxismo no Brasil
Os fundadores do Partido Comunista do Brasil (PC-SBIC) foram Astrogildo Pereira, Cristiano Cordeiro, João da Costa Pimenta, Joaquim Barbosa, Abílio de Nequete, Hermogênio Silva, Luís Peres, José Elias da Silva e Manuel Cendon. Em grande maioria, chegados do anarquismo, atraídos pela vitória proletária na Rússia tzarista, em outubro de 1917. Foi tardia a introdução do marxismo no Brasil e aquele punhado de delegados quase o desconheciam. Realidade que se manteve por longos anos. Um fenômeno compreensível. (2)
Em 1922, o Brasil era uma federação de Estados semi-independentes, onde dominava o mundo rural e, nele, múltiplas relações de produção pré e semi-capitalistas. Sobretudo em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, constituíra-se um pequeno operariado urbano, não raro de forte combatividade, produto da insipiente industrialização regional. As profissões dos fundadores do PC-SBIC espelham essa realidade: barbeiro, jornalista, eletricista, alfaiate, sapateiro e trabalhadores urbanos. O Estado-nação brasileiro e um forte proletariado foram fenômenos posteriores a 1930. (3)
Comunismo revolucionário
Sob a influência do avanço mundial da luta dos trabalhadores, o PC-SBIC abraçava o comunismo revolucionário e internacionalista sem tergiversações. Seu estatuto propunha: “O Partido Comunista tem por fim promover o entendimento e a ação internacional dos trabalhadores e a organização política do proletariado em partido de classe para a conquista do poder e conseqüente transformação política e econômica da Sociedade Capitalista em Sociedade Comunista.” (4)
Em 25, 26 e 27 de março de 2022, será celebrado o centenário dessa proposta programática inquebrantável. Mas se trata de celebração exclusiva de partido ou dos partidos que eventualmente se mantiveram fiéis a esse programa, caso existam? Não! Todos, sem exceção, que se identificam com aquele programa e se esforçam em aplicá-lo, celebrarão a minúscula reunião que anunciou a aliança do mundo do trabalho no Brasil com o comunismo revolucionário e o internacionalismo. Pacto de luta pelo qual viveram e morreram milhares de mulheres e de homens que nasceram ou viveram no Brasil.
O fio vermelho
Não é a militância em um partido dado, com uma específica denominação, que constitui o fio vermelho unindo comunistas internacionalistas de ontem e de hoje. Não procede a tradicional disputa genealógica entre o PC, o PC do B e, até mesmo, o finado PPS, pelo patrimônio simbólico do ato fundacional de Niterói. A descendência do PC-SBIC é questão essencialmente política, e não organizacional. Depende da fidelidade ao programa de 1922. Pouco importaria se o partido tivesse mudado o nome, se tivesse mantido o programa. O partido de Stalin, de Kruschev e de Gorbachov não era o mesmo de Lenin, Trotsky, Kamenev, Zinoviev, Rakovsky e milhares de internacionalistas assassinados por burocracia stalinista que se adonou da sigla do bolchevismo, violentando seu programa e suas tradições! (5)
Desde fim da década de 1920, a direção do PC-SBIC rompeu com seu programa original, com a democracia interna e com o centralismo democrático, submetida pela burocracia que se apoderara da direção da URSS, do Partido Comunista da União Soviética e da III Internacional. Essa última, dissolvida, em 15 de maio de 1943, quando já era um cadáver político ambulante, por decisão monocrática do “Pai dos Povos”, para fortalecer o pacto com o capital mundial que subscreveu ingenuamente. (6)
Liga Comunista Revolucionária
Desde o advento do stalinismo, a Internacional, sob a ditadura burocrática, exigiu que os partidos comunistas dos países semi-coloniais e coloniais defendessem a realização de revolução industrialista e burguesa, abandonando às calendas a luta socialista e o internacionalismo — “Revolução por Etapas” e “Socialismo em um só país”. O então Partido Comunista do Brasil, frágil política, social e ideologicamente, sem laços sólidos com um proletariado em formação, abraçou o colaboracionismo e o nacionalismo, vergando-se à pressão de Moscou. Anos mais tarde, em 26 de novembro de 1945, em Recife, Prestes propunha, em grande comício: “É preferível […] apertar a barriga, passar fome, do que fazer greve e criar agitações – porque agitações e desordens na etapa histórica que estamos atravessando só interessam ao fascismo.” (7) Militava-se pela burguesia, contra os trabalhadores.
Em inícios dos anos 1930, o arriar das bandeiras socialistas e internacionalistas ensejou ruptura no PC-SBIC, inspirada na Oposição Internacional de Esquerda, futura IV Internacional. Em 21 de janeiro de 1931, nascia a Liga Comunista Internacionalista, que se considerava “fração de esquerda” externa do Partido Comunista do Brasil. Mais tarde, ela se assumiu como organização independente, ao propor a degeneração do comunismo de obediência stalinista. Participaram desse movimento destacados comunistas internacionalistas como Mário Pedrosa, Aristides Lobo, Lívio Xavier, Edmundo Muniz, Rodolfo Coutinho e João da Costa Pimenta. Este último, tipógrafo, avô de Rui da Costa Pimenta, presidente do PCO, fora um dos fundadores do PC-SBIC, em Niterói, em 1922. A LCI foi fortemente reprimida pela repressão policial que se seguiu ao putsch da ALN, de novembro de 1935, dirigido pelo então Partido Comunista do Brasil. Nos anos seguintes, duramente reprimidas, pequenas organizações trotskistas mantiveram-se em atividade, sob o Estado Novo e após ele. (8)
Refluxo revolucionário
A dificuldade da IV Internacional de manter a continuidade do comunismo revolucionário deveu-se muito ao assassinato de L. Trotsky, em 1940; aos ataques vis e criminosos do aparato stalinista, que assassinou e golpeou comunistas internacionalistas através do mundo; e, com destaque, ao refluxo da revolução, com as derrotas da revolução na Alemanha, em 1923, e da Espanha, em 1939, etc. Criou enorme dificuldade aos internacionalistas, o prestígio do stalinismo, tido como responsável pela vitória sobre o nazismo, vitória obtida pelo esforço titânico da população da URSS, apesar da direção errática da burocracia stalinista. Na URSS, os quadros históricos da Oposição de Esquerda, verdadeira elite bolchevique, que participara e dirigira a vitória de Outubro, de 1917, e lutara e vencera a Guerra Civil, de 1919 a 1921, foram aniquilados aos milhares. (9)
Após 1945, uma direção marxista-revolucionária nova, frágil e inexperiente, sob o incessante ataque stalinista, com dificuldade em assentar raízes na classes trabalhadora, assumiu comumente viés propagandista, não raro procurando atalhos confusos para a revolução. Desde os anos 1960, com a crise do stalinismo e do pós-estalinismo, o marxismo-revolucionário fortaleceu-se relativamente. Dividido em diversas correntes — mandelista, lambertista, morenista, etc. —, não alcançou a se tornar direção do proletariado de vanguarda, não raro, rompendo a fidelidade com o programa internacionalista.
No Brasil e no mundo, correntes reivindicando-se do trotskismo festejaram a derrota da Revolução Afegã, de abril de 1978; a dissolução da URSS e dos Estados Operários do Leste Europeu, em 1991, anunciada como “revolução política”. Celebraram o ataque imperialista à Iugoslávia, à Síria, à Líbia, à Ucrânia, etc. Algumas dessas correntes, nos fatos, facilitaram o Golpe de 2016. Ao combate político dessa degeneração pequeno-burguês e anticomunista, L. Trotsky dedicou o seu último e luminar livro, Em defesa do marxismo. Nele, expunha as razões da necessidade imperiosa de defesa incondicional da URSS, para além de sua direção stalinista e burocrática. (10)
Renúncia das origens
Foi inexorável a degeneração política das duas grandes organizações que se reivindicavam herdeiras do PC-SBIB: o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O PCB seguiu no colaboracionismo mesmo após a derrota histórica de 1964, na qual teve imensa responsabilidade. (11) Orientação que teve uma primeira contestação política, em março de 1980, desde o interior do partido, com a “Carta aos Comunistas, de Luís Carlos Prestes. Prestes e sua filha, Anita Leocádia, de regresso do exílio na URSS ao Brasil, defenderam posições que recolocavam o programa socialista na ordem do dia e combatiam o colaboracionismo (“reformismo”). Na “Carta”, Prestes propunha: “Nós, comunistas, não podemos abdicar de nossa condição de lutadores pelo socialismo, restringindo-nos suposta ´democracia´(…).” Defendia “frente de esquerda” com aqueles que lutavam pelo socialismo. Apontava-se claramente para a superação do etapismo-colaboracionismo. (12)
A “Carta” e a ruptura com o Comitê Central causaram forte impacto no PCB, atraindo grande número de militantes “prestistas”, que se organizou em forma independente. Surgiram Comitês de Defesa do PCB e organizações mais duradouras, como o Coletivo Gregório Bezerra, a Corrente Comunista Luiz Carlos Prestes e a Reconstrução do Partido Comunista Brasileiro. A semeadura foi boa, mas a colheita fracassou. Prestes não propôs a formação de uma nova agremiação e procurou partido que acolhesse os “prestistas” dissidentes. Movimento pelo ingresso no PT foi obstaculizado por Lula da Silva. Um forte grupo, sobretudo do Rio de Janeiro, desembarcou no PDT de Leonel Brizola, sendo Prestes nomeado “Presidente de Honra” daquele partido, sem aderir a ele institucionalmente. O impulso se dissolveu, ajudado pelas disputas eleitorais e eleitoreiras e pelo início do refluxo do movimento social no país. (13)
A maioria da direção e da militância pecebista apontava em sentido oposto. Em inícios dos anos 1990, com a vitória da contra-revolução mundial e a dita “Queda do Muro de Berlim”, os partidos de obediência moscovita empreenderam salto de qualidade no relativo ao colaboracionismo praticado havia décadas, lançando pela janela os últimos vínculos já apenas simbólicos com o passado: o nome comunista, a bandeira vermelha, a foice e o martelo, a referência a 1917, etc. Na afobação transformista, desapareceram, desmilinguiram, passaram a prestar bons serviços ao grande capital e ao imperialismo, como o imenso Partido Comunista Italiano, hoje totalmente esfumado. O PCI transformista conheceu ruptura que alcançou inicialmente algum sucesso — o Partido da Refundação Comunista. (14)
De volta às origens
Com o choque da destruição da URSS, o PCB engolfou-se em iguais águas, sofrendo ruptura minoritária. Em agosto de 1991, a direção nacional, reunida, convocou congresso para o ano seguinte, a fim de realizar igual metamorfose colaboracionista plena, assumindo novo nome. A operação se materializou em 24-25 de janeiro de 1992, ao abraçar a denominação de Partido Popular Socialista, que muito logo transitaria da social-democracia para o social-liberalismo. Entremente, algumas centenas de militantes, articulados, lançaram “Movimento Nacional em Defesa do PCB”. Reunidos horas antes do X Congresso liquidacionista, elegeram comitê central e marcaram um primeiro congresso (o X na antiga cronologia) para março de 1993. O PCB “refundado” obteve na Justiça a manutenção da sigla do símbolo. Destaque-se que tal movimento progressivo deu-se no contexto do início de forte refluxo dos trabalhadores, no Brasil e no mundo. (15)
No PCB “refundado”, havia os que queriam se manter no passado, ou seja, preservar o antigo partido, suas tradições e políticas, e os que queriam avançar para o futuro, de certo modo, retomando propostas prestistas de 1980. Dupla natureza que, mesmo após ser superada no essencial, ensejou indiscutíveis supervivências, e suas inevitáveis sequelas, até hoje presentes na organização. Entre elas, a dificuldade em romper cabalmente com os resquícios stalinistas, muito fortes, não apenas, mas sobretudo, entre a juventude. Esse “stalinismo saudoso” metamorfoseou-se, nos últimos anos, em um confuso neo-stalinismo, de sabor lusordiano. (16)
Ivan Pinheiro refere-se a uma ruptura de qualidade entre o PCB “refundado” e sua “reconstrução revolucionária”. Em 2005, finalmente, o novo PCB rompeu programaticamente com o etapismo e com o colaboracionismo e abraçou o programa socialista, em movimento de retorno às propostas de 1922. Em 2013, declaração do CC do PCB propunha: “(…) afirmamos categoricamente que o caráter da revolução no Brasil é socialista” e a “estratégia de luta anticapitalista e antiimperialista como única alternativa possível à realidade atual (…).” Apesar das limitações, de certo modo quase inevitáveis, entre elas, a ausência de referência à construção de uma internacional comunista, partido da revolução mundial, a retomada pelo PCB do programa socialista foi fenômeno de sentido histórico, não apenas para o Brasil. Entretanto, ela foi pouco compreendida e pouco valorada pela esquerda marxista. Quanto ao PPS, já legenda de aluguel, sob um novo nome, terminou apoiando o golpe de 2016.
O Partido Comunista do Brasil
O Partido Comunista do Brasil (PC do B) constituiu-se, em 1962, como dissidência do PCB, quando a direção prestista comandou a adaptação nacional à desestalinização relativa na URSS, proposta, em 1956, após o relatório sobre os crimes de Stalin, morto em 1953. Com a “Declaração de Março”, de 1958, defendia-se a conquista eleitoral do poder, institucionalizando-se no programa o colaboracionismo há muito implementado na prática. (17)
Para afiançar diante da burguesia o caráter nacional e colaboracionista do comunismo brasileiro de obediência moscovita, a direção procedeu a mudança do nome de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasileiro. Propôs-se, então, sem pudor: “A revolução no Brasil (…), não é ainda socialista, mas anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática…” “O caminho pacífico da revolução brasileira é possível (…).” A ruptura com o programa de 1922 era total. (18)
Mauricio Grabois, João Amazonas, Pedro Pomar, stalinistas de carteirinha, entre outros, alijados por Prestes da direção máxima do PCB, formaram uma nova organização, com o nome renegado pelo agora PCB. O novo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), minoritário, seguia defendendo a revolução por etapas, o “socialismo em um só país”, as práticas verticalistas na direção do partido, no contexto da proposta retórica de assalto armado ao poder em aliança com a burguesia nacional patriótica.
A defesa do stalinismo facilitou o alinhamento do PCdoB ao maoísmo e a Pequim, rompidos com a URSS de Kruschev. Quando da chacina da Lapa, em 1976, avolumou-se em sua direção a participação de quadros provenientes da Ação Popular (marxista-leninista), de raízes cristãs de esquerda. Também surpreendido pelo golpe de 1964, o PC do B promoveu implantação no campo que, descoberta, em 1972, originou a importante “Guerrilha do Araguaia”, com no mínimo cinquenta combatentes caídos em confrontos armados, na tortura ou executados, após serem aprisionados. (19)
Em busca de um norte
Em 1972, estabeleceu-se a aliança Washington-Pequim, contra a URSS, que estarreceu o mundo. Ela foi seguida pelo abandono pelo Partido Comunista da China dos movimentos de libertação nacional. Nesse novo contexto, a China maoísta reconheceu o governo golpista de Pinochet, no Chile. Finalmente, com as reformas pró-capitalistas de 1978, dirigidas por Deng Xiaoping, o PCdoB rompeu com o maoísmo no mesmo ano e pôs-se sob a direção internacional de H. Hoxha (1908-1985), timoneiro da Albânia, pequeno e atrasadíssimo país da Europa. (20)
Após a derrota do Araguaia, em 1974, militantes do PC do B, ao igual que os do PCB, integraram-se ao Movimento Democrático Brasileiro, MDB, partido consentido pela Ditadura Militar, agindo moderadamente. Apoiaram as eleições indiretas e, a seguir, ambos, o governo José Sarney. Com a debacle daquele governo, o PCdoB afastou-se do MDB e se aproximou ao PT. Com a dissolução da URSS, em 1991, o PCdoB abandonou o stalinismo e a “revolução por etapas”, aprovando, em 1995, o Programa Socialista, abrindo-se momentaneamente à militância marxista de esquerda.
A importante definição programática pelo socialismo teve pernas curtas. Com a vitória de Lula da Silva, em 2002, o PCdoB acompanhou alegre a reversão social-liberal do petismo. Em 2009, aquele partido, corrigindo o deslize programático socialista, superado havia muito pela prática colaboracionista, propôs: “O fortalecimento da Nação é o caminho, o socialismo é o rumo!” Lançava a luta pelo socialismo para além do horizonte. (21)
Poderíamos seguir nessa telegráfica revisão de partidos e organizações que se reivindicam do comunismo no Brasil. Entretanto, parece meridianamente claro que nenhuma organização possui continuidade orgânica e sobretudo programática com a fundação do comunismo revolucionário no Brasil, em março de 1922, em Niterói. Mesmo seguindo caminhos ínvios, dezenas de milhares de abnegados comunistas viveram e morreram no Brasil com a revolução no coração.
Celebração unitária
Através do mundo pesa o tsunami liberal de fins dos anos 1980. Ele inaugurou Era Contrarrevolucionária que se mantém e segue se radicalizando nos dias de hoje. Jamais o marxismo, os trabalhadores e o programa comunista estiveram tão frágeis. No Brasil, o mundo do trabalho e as classes populares sofrem há décadas derrotas sucessivas, exacerbadas em 2016. No país, aprofunda-se a hegemonia da oposição colaboracionista, de direita, de centro e de esquerda, militando contra a autonomia das classes oprimidas. Abandonando o programa socialista pelo eleitoralismo identitário —raça, gênero, nacionalidade—, luta com unhas e dentes para manter e estender sua participação na gestão do Estado, deprimida em 2016 e 2018, que pretende retomar em 2022. (22)
No Brasil, é grande o número de militantes não organizados que abraça o programa revolucionário. Há diversas organizações que se reivindicam da revolução socialista, do internacionalismo, da solidariedade incondicional com os povos e nações atacados pelo imperialismo. Raras superam mil militantes, dominando grupos com dezenas de aderentes, em um país de mais de 210 milhões de habitantes. Em geral, há longos anos, elas perseguem crescimento vegetativo de seus aparatos, não raro em detrimento de grupos concorrentes.
Há décadas, no movimento marxista-revolucionário, a luta pela construção de uma internacional comunista tem sido avançada através da centralização, de grupos políticos menores, por organizações nacionais de maior sucesso relativo — da França, Inglaterra, Estados Unidos, Argentina, Brasil. Em geral, essas iniciativas se multiplicam e se debilitam por fracionamento. No Brasil, tudo aponta para que nenhum núcleo organizacional se transforme em centro aglutinador revolucionário efetivo com a urgência que o país necessita.
Os comunistas revolucionários encontram-se atomizados, dispersos, comumente confusos, fora e dentro de dispares organizações políticas. Para além das divergências de origem, de tradição, de história, de narrativa e mesmo idiossincráticas, constitui um denominador comum a decisão de luta pelo socialismo, no aqui e agora; a centralidade política dos trabalhadores; o caráter mundial da revolução e a necessidade de construção de uma internacional de massas. Internacional compreendida como o partido mundial da revolução.
Cantando juntos a Internacional
O 25 de março de 2022, centenário do PC-SBIC, pode ser momento único para dar um passo em direção à superação do estranhamento entre os comunistas revolucionários internacionalistas. No Brasil e no mundo, o panorama geral da militância comunista internacionalista modificou-se substancialmente em relação ao passado. Hoje, há diferenças incontornáveis entre aqueles que se reivindicam do marxismo-revolucionário, o mesmo ocorrendo entre comunistas que têm como referência a fundação do PC-SBIC, em 1922. E há, certamente, proximidades horizontais, entre estes e aqueles, inexistente no passado, ancoradas na referência à defesa do socialismo e do internacionalismo. Uma unificação do comunismo revolucionário é iniciativa de amplo fôlego, que será materializada, em forma substancial, com a eventual reconquista do protagonismo e vitórias parciais das classes trabalhadoras, no mundo e no Brasil. Conquistas que exigem uma forte direção classista e internacionalista.
Entre as organizações nascidas no ato fundacional de 1922, que se mantiveram fiéis à direção da ex-URSS, o PCB, surgido após 1991, é ao grupo de maior porte que realizou, em forma mais consequente, o retorno ao programa socialista e à democracia interna. Possui núcleo capaz de compreender a importância de uma celebração dos cem anos do PC-SBIC reunindo todas as agrupações e militantes que se reivindiquem do comunismo revolucionário e do internacionalismo, e aceitem abraçar a iniciativa. Proposta que, para ser efetivada, deverá superar inúmeros escolhos, de toda natureza, ainda mais nos dias atuais, de eleitoralismo, de cretinismo parlamentar e de identitarismo desvairados.
A presente proposta não nasceu de minha cabeça, mas da troca de idéias com camaradas de origens políticas diversas. São de minha responsabilidade apenas a atual apresentação e as razões que creio fortalecerem uma tal iniciativa. Pode e deve haver, entretanto, muitas outras boas razões, mesmo contraditórias com as aqui delineadas. O Partido Comunista Grego (PKK) avançou, há alguns meses, proposta semelhante: retomada do programa socialista, ruptura com o colaboracionismo e necessidade de construção de uma internacional comunista, devido a destruição da III, que definiu como criminosa. Uma proposta de iniciativa mais ambiciosa, que vai muito além de uma simples celebração unitária. Falta-nos informação mais precisa sobre o pronunciamento da direção do PKK. (23)
Compreendendo a importância de uma celebração coletiva e democrática dos cem anos do ato fundacional do PC-SBIC, arrisco-me a acender aqui uma vela ao Negrinho do Pastoreio, rogando para que alumie o atual caminho difícil e pedregoso em direção a uma unidade que já existiu, em 1922, no Brasil, entre os comunistas revolucionários e internacionalistas.
*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Revolução e contra-revolução no Brasil: 1500-2019 (FCM Editora).
Notas
(1) BROUÉ, Pierre. História da internacional comunista. Tomo I e II. São Paulo: Sudermmam, 2007.
(2) PEREIRA, Astrojildo. Formação do PCB: 1922-1928. Lisboa: Prelo, 1976; ZAIDAM FILHO, Michel. Comunista em céu aberto. 1922-1930. Belo horizonte: Oficina de Livros, 1989; FALCÃO, Frederico José. Os homens do passo certo: o PCB e a esquerda. revolucionária no Brasil, 1942-1961. São Paulo: Ed Sundermann, 2012.
(3) MAESTRI, Mário. Revolução e Contra-Revolução no Brasil: 1530-2019. 2 ed. Ampliada. Porto Alegre: FCM Editora, 2019. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil
(4) Estatuto de Fundação do PC do Brasil (1922), Fundação Maurício Grabois. https://www.grabois.org.br/cdm/principais-documentos/148511/2010-02-26/estatuto-de-fundacao-do-pc-do-brasil-1922
(5) BROUÉ, Pierre. Le parti bolchevique. Paris: Minuit Ed,1969.
(6) cf. Nota 1.
(7) PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2015. P. 272.
(8) ABRAMO, Fúlvio e KAREPOVS, Dainis (orgs.). Na contra-corrente da História: Documentos da Liga Comunista Internacionalista. 1930-1933. São Paulo: Brasiliense, 1987;
CAMPOS,Alzira Lobo de Arruda; GOMES, Álvaro Cardoso; GODOY, Marília Gomes Ghizzi.
Agonia e Morte da Liga Comunista Internacionalista: Combates Finais. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica – CLIO (Recife. Online), vol. 38, p. 479-500, Jan-Jun, 2020 http://dx.doi.org/10.22264/clio.issn2525-5649.2020.38.1.18
(9) Cf. BROUÉ P. Os Trotskistas na União Soviética (1929-1938). I e II. Esquerda Marxista. https://www.marxismo.org.br/os-trotskistas-na-uniao-sovietica-1929-1938/; Idem, Revolutión en allemagne.(1917- 1923). France: Juliard, 1954.
(10) TROTSKY, Léon. Defense du Marxisme : URSS marxisme et bureaucratie. Paris: études et documentations internationales, 1976; MARIE, Jean-Jacques. Os quinze primeiros anos da Quarta Internacional. São Paulo: Palavra, 1981; MAESTRI, M. Afeganistão, Intervenção Soviética, Morenistas e Lambertistas – (1980). https://maestri1789.wixsite.com/mariomaestri/post/afeganistão-intervenção-soviética-morenistas-e-lambertista-mário-maestri-1980
(11) GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2011.
(12) PRSTES, L.C. Carta aos Comunistas. Março de 1980. MIA.https://www.marxists.org/portugues/prestes/1980/03/carta.htm
(13) COSTA, Izabel Cristina Gomes da. Um rede prestista: os diversos fios dos “filhos” da Carta aos Comunistas no PDT. PERSEU: História, Memória e Política. n. 09 (2013).https://revistaperseu.fpabramo.org.br/index.php/revista-perseu/article/view/70
(14) AGOSTI, A. Storia del Partito Comunista Italiano. 1921-1991. Roma-Bari: Laterza, 1999; TELESE, L. Qualcuno era comunista, Milano: Sperling & Kupfer, Milano, 2009.
(15) PINHEIRO, Ivan. A Reconstrução Revolucionária do PCB. 1° de dezembro de 2019. https://pcb.org.br/portal2/24421/a-reconstrucao-revolucionaria-do-pcb-2/
(16). MAESTRI, Mário. Domenico Losurdo: Um Farsante na Terra dos Papagaios. Ensaios sobre o estalinismo e neo-estalinismo no Brasil. 2 ed. Porto Alegre: FCM, 2020. https://clubedeautores.com.br/livro/domenico-losurdo-um-farsante-na-terra-dos-papagaios
(17) Declaração sobre a Política do PCB: Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Março de 1958, Voz Operária, 22-03-1958. MIA. https://www.marxists.org/portugues/tematica/1958/03/pcb.htm
(18) SANTOS, R. Declaração sobre a política do partido comunista brasileiro. Agraristas políticos brasileiros [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. pp. 129-153. ISBN: 978- 85-99662-81-6. <http://books.scielo.org>; PINHEIRO, Ivan. A Reconstrução Revolucionária do PCB. Oc.cit.
(19) LIMA, Haroldo. Itinerário de lutas do Partido Comunista do Brasil (PCdoB): de 1922 a 1984. 3. ed. Salvador: a Maria Quitéria, 1984; PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. A linha política revolucionária do Partido Comunista do Brasil. Em defesa dos trabalhadores e do povo brasileiro: documentos do PC do Brasil – de 1960 a 2000. São Paulo: Anita Garibaldi, 2000.
(20) MAESTRI, Mário. O Despertar do Dragão: O Nascimento do Imperialismo Chinês. 19481978. Cadernos GPOSSHE, Fortaleza, V.4, n. Único, 2021. https://revistas.uece.br/index.php/CadernosdoGPOSSHE/article/view/5485.
(21) Programa Socialista para o Brasil. O fortalecimento da Nação é o caminho, o socialismo é o rumo. PCdoB. 9 de outubro, 2009 https://pcdob.org.br/documentos/programa-socialista-para-o-brasil/
(22) MAESTRI, Mário. 1822-2022: A submissão e manipulação do mundo do trabalho. Carta Maior, 18/09/2021, https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Trabalho/1822-2022-A-submissao-e-manipulacao-do-mundo-do-trabalho/56/51646. https://maestri1789.wixsite.com/mariomaestRi
(23) MAESTRI, Mário. Partido Comunista Grego: Atravessando o Rubicon. A revolução é socialista, mundial e falta uma internacional. A Terra é Redonda. 11/03/2021, https://aterraeredonda.com.br/o-partido-comunista-grego/?doing_wp_cron=1633441519.7006490230560302734375; https://maestri1789.wixsite.com/mariomaestri