Por Maria Salete Magnoni*
Publicado postumamente Os Bruzundangas é frequentemente evocado por intelectuais, políticos e jornalistas quando desejam se referir às nossas eternas mazelas de forma irônica e até debochada
Em 13 de maio, data que marca (legalmente) o final da escravidão de africanos no Brasil, o escritor Lima Barreto, neto de escravizados, completaria 139 anos de idade. No dia dos seus 7 anos, assistiu em companhia do pai, os festejos alusivos à assinatura da Lei Áurea, deles guardou recordações expressas em crônica de 1911 intitulada Maio. Nela narra que “com aquele feitio mental de criança”, só uma coisa ficara, a ideia de que era livre! Todavia o tempo e a maturidade lhe ensinaram que aquela liberdade era uma quimera, “como ainda estamos longe de ser livres! Como nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras, e das leis”[i], escreveu à guisa de conclusão.
A liberdade, valor caro ao escritor, que consiste na “maior, senão a única ventura”[ii] nunca foi plenamente exercida pelo povo brasileiro, principalmente por aquele suburbano e periférico, que através de seus escritos entrou na Literatura Brasileira. Ao longo da nossa história republicana a liberdade sempre foi e continua sendo limitada, amesquinhada, apequenada, e concedida ao gosto das elites econômicas e políticas. É livre um povo, que em meio a uma pandemia, não tem sequer o direito à vida respeitado e garantido pelo presidente da República e seu ministério?
Lima Barreto é autor de romances, crônicas, artigos e contos, entre eles notabilizaram-se os romances Triste fim de Policarpo Quaresma, Recordações do escrivão Isaías Caminha, o conto O homem que sabia javanês, e a obra satírica Os bruzundangas, na qual o escritor traçou caricaturas sobre um país inexistente no Mapa Mundi, mas muito assemelhado ao Brasil, sendo impiedoso na descrição caricatural de homens e costumes da nossa República Velha, assaz presentes no Brasil de 2020, ou como escreveu o também escritor e jornalista João Antonio, “de Afonso Henriques de Lima Barreto está tudo aí, vivo, pulando nas ruas, se mexendo, incrivelmente sem solução. ”[iii]
Publicado postumamente Os Bruzundangas é frequentemente evocado por intelectuais, políticos e jornalistas quando desejam se referir às nossas eternas mazelas de forma irônica e até debochada. Na República das Bruzundangas, o seu presidente, que se destaca pela mais completa mediocridade é chamado de Mandachuva, no Brasil o prócer daquela terra sempre teve fortes concorrentes, entre eles o mandatário atual, denominado Mito pelos seus correligionários. Os políticos da República dos Estados Unidos da Bruzundanga, principalmente os que ocupam altas posições, se creem diferentes da maioria do povo, se supõem de “carne e sangue diferente”[iv], e no poder tratam “não de atender as necessidades da população, não de lhes resolver os problemas vitais, mas de enriquecerem e firmarem a situação dos seus descendentes e colaterais”. Não por acaso, ontem 12 de maio, tomamos conhecimento que o presidente do Brasil vinculou a troca de comando da Polícia Federal à perseguição (sic) aos seus parentes na cidade do Rio de Janeiro. Naquele país, imaginado por Lima Barreto, os políticos e seus aliados também têm o hábito de empregar parentes nos órgãos públicos, “ não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado”. No ano passado soubemos pela mídia que o atual mandatário brasileiro e 3 dos seus filhos, também políticos, nomearam ao longo de 28 anos, 286 pessoas em seus gabinetes, que receberam um montante de R$105, 1 milhões em salários, e que 62% desse valor foi para as mãos de pessoas de 32 famílias ligadas a Bolsonaro e seus filhos.
O curioso país das Bruzundangas não possui Força Armada, no entanto tem “cento e setenta e cinco generais e 87 almirantes. Além disto, há quatro ou cinco milheiros de oficiais, tanto de terra como de mar, que se ocupam em fazer ofícios nas repartições.” Ao assumir a presidência do Brasil o capitão reformado Jair Bolsonaro, cujo colega de chapa é um general da reserva, levou para o governo uma chusma de militares, que controlam 9 dos 22 ministérios, ocupam inclusive a Casa Civil, fato que não acontecia desde o último dos governos militares, o do general João Baptista Figueiredo. E eles se espalham pelo segundo e terceiro escalões do governo, e muitos mais que se ocupar de redigir ofícios, tratam de assegurar a permanência no poder do indomável capitão, de defender seus interesses corporativos e de impedir a construção e implementação de políticas públicas demandadas pelos movimentos sociais que atenderiam interesses populares. E o que dizer dos ministros daquela República de nome tão peculiar, a tal da Bruzundanga? Chico Caiana, da agricultura, fora feito ministro pelo Mandachuva para honrar a palavra empenhada com o Tupinambá, governador da “província das canas”, por onde se elegera senador. O tal sujeito, que era dono de usinas de açúcar, delas nada entendia, outro as dirigia. Ao tomar posse no ministério se espantou com a papelada e perguntou: “Onde está aqui agricultura? …Estes papéis… Isto não é prático! …. Quero cousas práticas! … Canaviais … Engenhos…Qual! Isto não é prático! Vou fazer uma reforma!”
No seu congênere, Brasil de 2020, vimos um médico, que parece ter saído de uma tumba, ser nomeado ministro da saúde, que desconhece completamente o Sistema Único de Saúde (SUS) que atende a maioria da população brasileira, e é responsável pela linha de frente do atendimento aos infectados pelo coronavírus. Deve ser pelo seu desconhecimento das necessidades do sistema público de saúde, que mais de R$ 2 bilhões provenientes de emendas parlamentares de bancadas estaduais, destinados aos estados e municípios para exclusivo enfrentamento da pandemia, estão parados no Ministério da Saúde há mais de um mês. O que dizer do ministro da educação que insiste em manter o calendário de realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em meio à pandemia, com milhares de jovens pobres e estudantes de escolas públicas, que mesmo em condições normais de aulas, já estão em desvantagens em relação aos seus colegas das classes médias e altas que estudam nas melhores escolas particulares, agora tendo aulas a distância, sem acesso de qualidade à internet e condições de moradia e alimentação dignas? E aquela senhora ministra que proclamou de forma solene, quase como uma verdade científica que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”, de que planeta caiu? Ou será veio do país das Bruzundangas? E não podemos esquecer do ministro das relações exteriores que entre as pérolas proferidas comparou a necessidade de isolamento social, uma das formas utilizadas em todo o mundo de combate à pandemia do coronavírus, aos campos de concentração nazistas, e que vem sistematicamente destruindo toda a tradição da política externa brasileira, e se submetendo totalmente aos interesses dos EUA. Mas a equipe ministerial não seria tão brilhante se não tivéssemos o “super” ministro da economia, o “Posto Ipiranga” de Jair Bolsonaro, que juntamente com seu chefe queria para pagar R$200,00 de auxílio emergencial, ao invés de R$600,00, aos trabalhadores informais e as pessoas que não possuem renda, para que possam minimamente se alimentar e se cuidar e assim correrem menos riscos de contaminação pelo coronavírus; mas que não hesitou em liberar R$1, 2 trilhões aos bancos para manter a liquidez do mercado durante a pandemia. E por fim, tivemos aquele ministro da justiça, recentemente demissionário, que ascendeu ao posto por ter prendido, sem provas concretas, o principal concorrente de Bolsonaro nas eleições de 2018. Tal e qual o Chico Caiana ganhou o cargo pelo serviço prestado. Como podemos ver há muitas semelhanças entre o modus operandi da política brasileira e o da República das Bruzundangas, entre nós ele tem um apelido popular, o conhecido “toma lá, dá cá”.
Lima Barreto citando Jacques Bossuet, afirmou que “o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes; o verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes”. Mas não é apenas na sua República imaginária que as coisas assim se dão, em que pese todos os progressos econômicos, sociais, educacionais, tecnológicos, e institucionais, vivenciados pelo Brasil durante todo o Século XX, no findar da segunda década do Século XXI nos defrontamos com recorrentes problemas de ordem social e as mesmas práticas políticas existentes naquele longínquo Brasil no qual Lima Barreto viveu e produziu sua obra literária. E neste momento ardido de nossa História tal permanência responde pelo nome de Governo Bolsonaro, cuja política de tratamento à pandemia ocasionada pelo coronavírus, vai muito além de causar infelicidade ao povo, é genocida!
*Maria Salete Magnoni, doutora em literatura brasileira pela USP, é professora de História na Rede Estadual Paulista
Notas:
[i] BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. São Paulo: Brasiliense, 1961. p.257.
[ii] BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988.p. 241.
[iii] ANTONIO, João. Calvários e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1.977.
[iv] A partir daqui todas as citações entre aspas são de BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Brasiliense, 1961.