Por RODRIGO DE FARIA*
Ribeirão Preto está mais para “Haiti” do que qualquer outra realidade. “Califórnia brasileira” é uma invenção das elites locais difundida pela imprensa que ela mesma controla
A história de Ribeirão Preto sempre esteve associada com a riqueza e com o progresso. Desde o final do século XIX, mas sobretudo a partir da década de 1910, esses adjetivos seriam reproduzidos e reverberados pela elite local com o apoio da imprensa. Uma riqueza sempre associada com a produção agrícola. Primeiro, a economia cafeeira de exportação nas décadas iniciais do século XX, sempre a reforçar o lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho como país exportador de matéria prima e produtos alimentícios.
Desde então, o município sempre foi associado ao seu papel de “centro” com a criação de narrativas que lhe conferem o título de “capital de alguma coisa”, no caso, a capital mundial do café. Essa mesma imprensa do início do século XX também fez reverberar a ideia de “metrópole do interior”, “capital do progresso”, entre outros qualificativos simbólicos.
A partir da década de 1970, sua economia foi direcionada à produção sucroalcooleira. Uma atividade que desde então se expande pela imensidão do território nacional. Basta um sobrevoo pelo sudeste e centro-oeste do Brasil para comprovar que a cana-de-açúcar e a soja estão sempre em busca de uma nova fronteira agrícola. Atualmente conhecida como “capital do agronegócio”, o município de Ribeirão Preto é sede da mais importante feira de tecnologia e insumos agroindustriais da América Latina, a Agrishow.
Durante o interregno entre 1930 e 1970, a economia municipal experimentou alguma diversificação produtiva, em especial, a estruturação do setor terciário com foco na prestação de serviços e no comércio. Também é relevante nesse processo de diversificação, a produção de conhecimento científico nas mais diversas áreas, mas, sobretudo, nas áreas da saúde, em especial a medicina, a farmácia e a odontologia. O campus da USP-Ribeirão Preto sempre foi o eixo institucional estruturante e grande agente dessa economia científica local fortemente associada a outras instituições no Brasil e no Exterior. Completa esse eixo econômico atrelado à produção científica, um conjunto de instituições particulares, ainda que, com pouca atuação na produção científica se comparada ao que se realiza na USP.
A economia regional também tem um papel importante no desenvolvimento local. A proximidade com os munícipios de Uberaba e Uberlândia conformam a macrorregião da alta mogiana-triângulo mineiro (que poderia funcionar como um sistema inter-regional de planejamento e gestão do território), potente eixo econômico e produtivo do país. Uberaba é sede da mais importante indústria genética para reprodução e melhoramento bovino.
Uberlândia sempre se destacou como entreposto comercial entre as regiões Centro-Oeste e Norte com o Sudeste, além de outras atividades econômicas. Ambos os municípios do triângulo mineiro também têm relevantes instituições de ensino e pesquisa, a UFTM em Uberaba e a UFU em Uberlândia.
No âmbito do que hoje é a Região Metropolitana de Ribeirão Preto, estão munícipios importantes para o conjunto da economia regional, entre eles, Franca e sua indústria de calçados, mesmo com todas as dificuldades que o setor sempre enfrentou. Em um eixo expandido em direção a São Carlos, outro polo de altíssima qualidade e densidade quando se trata do setor econômica científico, estão a USP-São Carlos, UFSCar e a Unesp-Araraquara.
A rede urbano-regional dessa parte do território nacional é muito densa do ponto de vista das dinâmicas de circulação de mercadorias, pessoas e conhecimento. Ribeirão Preto tem um dos aeroportos regionais mais movimentados do país, com ligações diretas com os aeroportos de São Paulo/Congonhas, São Paulo/Guarulhos, Rio de Janeiro/Santos Dumont, Campinas/Viracopos, Goiânia, Brasília e Araguaína, o que lhe confere uma conexão nacional e internacional também muito sólida e rápida. Uberaba e Uberlândia também estão conectadas com o restante do país pelos sistemas de engenharia aeroportuários.
O sistema rodoviário tem qualidade está intensamente estruturado em redes de comunicação que articulam toda essa macrorregião, seja em direção à capital do estado de São Paulo e ao porto de Santos, ou à capital do país no planalto central. Eixos-tronco como a Rodovia Anhanguera ou sistemas de circulação secundários como a Rodovia Cândido Portinari e a SP-255 entre Ribeirão Preto e Araraquara, conformam esse conjunto rodoviário.
No entanto, tudo isso, toda essa riqueza, não muda o fato de que Ribeirão Preto é um munícipio de um país profundamente desigual e que desde o Golpe de 2016 vinha experimentando a cada dia o empobrecimento de sua população em decorrência da radicalização neoliberal. Estamos em processo de (re)orientação da economia nacional num sentido mais desenvolvimentista, mas que, pelo pouco tempo de mudança, ainda não conseguiu reverter a curva da degradação que nos empurrava para a década de 1980.
E ainda que um município localizado numa das mais ricas regiões do país, pouca diferença isso exerce quando se trata da promoção de políticas públicas para sua enorme população vulnerável em relação à moradia, segurança alimentar, educação, saúde, entre tantas outras demandas urgentes da parcela da população que nunca foi inserida ou recebeu os benefícios dessa imensa riqueza concentrada.
A tal “Califórnia brasileira”, outra invenção das elites locais difundida pela imprensa que ela mesma controla, está mais para “Haiti” do que qualquer outra realidade. Muito se fala da pobreza que ocupa as ruas dos bairros nobres de São Paulo, mas municípios como Ribeirão Preto também experimentam a expansão da miséria humana. Em suas ruas se acumulam pessoas que estão desesperadas por um prato de comida, sem local para morar com as mínimas condições possíveis.
Microcosmo social-econômico da tragédia neoliberal que empurrou o Brasil para o mapa da fome em decorrência da “ponte para o passado” de Michel Temer e do fascismo bolsonarista, Ribeirão Preto acumula famintos, desprotegidos e abandonados a pavonear pelas ruas de sua área central. Idosos, mulheres subjugadas pela exploração sexual em prostíbulos localizados na “baixada”, mas, sobretudo crianças, como as crianças dormindo sobre um “cobertor de papelão” e com as quais se pode deparar andando pelas ruas no entorno da Praça XV ou ao lado da famosa Choperia Pinguim. Essa é a realidade de um município que, de um lado, expande sua área urbana com condomínios fechados de luxo, de outro, assiste à expansão da pobreza e da miséria.
A zona norte do município, região onde se concentram os mais antigos e maiores conjuntos habitacionais populares nunca foi objeto de atenção de políticas públicas que pudessem criar espaços públicos com qualidade. O abandono nessa região é algo naturalizado. A zona sul, esta sim, detentora das atenções da especulação imobiliária e das ações do poder público municipal, é um paraíso distante para a maioria das pessoas. Entre ambas as zonas está o centro, que há muitos anos vem perdendo sua vitalidade, suas praças estão abandonadas, suas ruas estão repletas de crateras, a insegurança está em todos os seus cantos e a única coisa que se expande é a miséria humana.
No entanto, Ribeirão Preto não é uma exceção no Brasil. A pobreza que se expande cotidianamente diante dos olhos de qualquer pessoa minimamente atenta, é o que caracteriza o próprio Brasil. Os ricos já não vivem a/na cidade, estão cada vez mais trancafiados, deslocando-se entre seus condomínios fechados e academias climatizadas com seus carros blindados.
A população geral que ainda se sustenta economicamente, seja na prestação de serviços no comércio, na uberização do transporte de comidas ultraprocessadas ou na informalidade dos importados piratas, se equilibra no também degradado sistema de transporte das cidades brasileiras e na precarização dos serviços públicos. Já os/as famintos/as, abandonados/as, criminalizados/as, espoliados/as, só lhes resta enfrentar a fome que os/as atormenta a cada dia. A esperança, muitas vezes, está numa lata de lixo, único local onde se espera encontrar algum resto de comida para não morrer de fome.
É nesse país, no país que tem municípios ricos e desenvolvidos como Ribeirão Preto, que se pode encontrar duas crianças dormindo sobre um “cobertor de papelão”, com seu pai ao lado implorando alguma ajuda. Duas crianças que, talvez, nem mais dormiam, mas jaziam, abandonadas pela indiferença de toda uma Nação. Duas crianças, provavelmente duas irmãs, que compartilhavam o chão gelado sobre o mesmo “cobertor de papelão” e cujos futuros, certamente, nunca chegarão, pois o presente que elas vivem é o de uma infância destroçada.
Essas duas crianças estavam numa rua do centro de Ribeirão Preto, mas poderiam estar em qualquer cidade brasileira, onde milhares de outras crianças também estão, todas elas, com suas infâncias destroçadas pela fome, pela violência, pela marginalização e pelo abandono de seu próprio país. Até quando o país aceitará que suas crianças tenham suas infâncias destroçadas?
*Rodrigo de Faria é professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB).
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