Cartas para Lula

Imagem: Fidan Nazim qizi
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

Os 580 dias de prisão de Lula se trançaram em memórias, sentimentos, denúncias e contação de histórias de vida

Escrever cartas foi e é uma forma de comunicação contínua no mundo. Trata-se da literatura que constrói a parceria, a cumplicidade humana e seus laços. Na história recheou sonhos, questionou valores e condutas, estimulou os mais jovens a criar, garantiu solidez e determinação aos mais velhos. Ainda quando seus enredos tenham sido negativos e muito críticos, o simples ato de escrever e esperar resposta acalentou reatamento de mãos, compaixão e desejos em direção ao futuro.

Escrever cartas é um ato literário e quem escreve é escritor, sem que isso signifique pedantismo. Pode ser a carta do pai e da mãe pouco letrados, pode ser a carta do aprisionado ou do exilado e suas pressões. Carta é comunhão, é encontro. Muitas vezes a literatura, sejam contos, romances e novelas, erudita ou popular e que se encontra nos livros, teve a forma de carta, quis dialogar com as pessoas e com o mundo. E foram muitíssimas essas formas de literatura. O livro Quarto de despejo da adorável Carolina de Jesus quer criar comunicação a partir da imensa pobreza, a qual teria de ser, inapelavelmente, comunicada e encontrar olhos, ouvidos, mãos, bocas capazes de dar resposta. Até hoje não se completou no cotidiano da vida brasileira o apelo de Carolina, por obra da bárbara inversão de valores que vige em nosso país.

Mário de Andrade (1893-1945), nosso gênio modernista, escreveu 7000 cartas. Só! Foi correspondente com muitas pessoas, jovens escritores, intelectuais de renome, pessoas do seu convívio, homens e mulheres de um tempo em que se acreditou em criar um Brasil integrado, avançado, justo. E viu o país dilacerado pelas elites econômicas e políticas sucedendo-se em várias formas de capitalismo, nenhum deles criador efetivo de direitos e de alegria. As cartas a Lula também ressoam temas e valores das cartas do nosso maior epistológrafo.

A despeito de a grande imprensa ignorar – pois ela não sabe fazer outra coisa nesses fenômenos chamados de “políticos”, o que se viu no Tuca no último 31 de maio foi uma festa literária. Os 580 dias de prisão de Lula se trançaram em memórias, sentimentos, denúncias e contação de histórias de vida. Visto que o ato de contar também é o ato de acontecer e o ato de narrar pode ser um fenômeno de construir sentidos novos na vida, ou até se curar de dores e angústias, a festa literária foi algo total.

Pedro Dias de Almeida ditou uma carta por ser analfabeto. De Pilar do Sul, SP, 9 de abril de 2018. Dessa terra com feição rural e belezas em suas trilhas e cachoeiras, Pedro associa sua história à do líder preso. E esta é a narrativa principal do ditado: a idade, a vinda da cidade sergipana, a viuvez precoce, o serviço de ganho pobre. No entanto, uma das filhas estuda em Curitiba por obra dos muitos avanços nos modos de operar da universidade brasileira durante o governo Lula (formas de entrada, Reuni, bolsas) e que possibilitaram a ampliação do direito à educação para milhões de pessoas, especialmente a juventude.

Deste modo, a angústia sentida por Pedro enlaça sua condição humana à condição de seu líder, fato que opera, ainda, uma memória feliz da conquista de direitos pela filha, o que é a inversão simbólica de sua vida. Da não educação formal à educação universitária. Destarte, esta não é um ganho do capital e da mudança de classe para Pedro. É, sim, a concretização de um destino transformado, ainda que o curso universitário não leve a mudanças de classe ou ofereça salários modestos. Isso ele não discute. A mudança opera no coração de Pedro e sua narrativa cria a analogia da esperança da política.

Rosa, simplesmente Rosa, escreve na madrugada do dia 16 de novembro de 2018. Faz algumas comparações teológicas para tentar sintetizar sua dor ao mesmo tempo em que diz não ter fé no abstrato. O momento que vive a aproxima da profecia, pois “parece que das profundezas libertaram-se demônios”. No entanto, reconhece que eles “sempre estiveram por aqui”. Sua narrativa conecta a terrível condição vivida à posição de vida emocional do líder preso, pois aqui e ali quer saber como ele está, o que passa, o que pensa.

Quer diálogo, ainda que não venha a receber resposta formal (pois foram enviadas a Lula 25 mil cartas no tempo da prisão) e, então, passa a fazer associações tradicionais de esperança: perdas de batalha, mas não da guerra, dos riscos das classes ascendentes que poderão sofrer intensas desilusões, associa o momento terrível à condição humana preta, parda e pobre. Toca nas feridas abertas ou reabertas em novo modo de administrar o país e garante que irá às periferias lutar pela libertação de Lula. Ao afirmar-se não-crente, finca pé, no entanto, na solidariedade e espera que muitos brasileiros estejam a emanar amor em direção a ele, como ondas “pelos ares do Brasil” e que elas sirvam de bálsamo no tempo em que Lula está “no prédio sisudo de Curitiba em que o encerraram de forma arbitrária e covarde”. O conforto se une à promessa de luta pela liberdade.

Fabiana, que se afirma LGBT, faz uma narrativa diversa, cujo texto reflete a ética da publicação. Ela demonstra tanto o acerto das políticas de inclusão e justiça quanto critica as mudanças do PT em direção a políticas liberais. Depois de associar os momentos melhores no trabalho Lula-Haddad, alerta para os retrocessos ocorridos e não tem dúvida em afirmar que o legado do presidente está em risco e que “o futuro de milhares de jovens negros, pobres está ameaçado”. Não deixa por menos ao escrever que “como jovem, vinda de classe operária, LGBT, sei o que é injustiça”. Depois de ver a classe operária, outra vez, na direção da marginalização, Fabiana não bota fé em conciliação e aponta erros dos governos do presidente Lula e de Dilma. Abre, porém, as portas para novos acordos com setores progressistas da nação e termina, outra vez, com o “legado ameaçado” por falta de um projeto de continuidade nas mãos do povo. Ao fim, “Atenciosamente. Força para se sustentar, Fabiana”.

Pedro, Rosa e Fabiana, componentes das 25 mil cartas a Lula, se inscrevem no mundo literário da correspondência a partir de um eixo central: a injustiça da prisão perpetrada pela parcialidade jurídica da Lava jato curitibana. Como é da natureza da epistolografia, as cartas poderiam ser curtas, denunciadoras e cheias de compaixão em face de uma injustiça. Mas os enredos foram outras. Essa gente escritora, consciente dos atavismos, dos ardis, das burlas e enganos da sociedade brasileira, aproximou a prisão à história.

Não foi só Sérgio Moro o algoz, mas uma onda maior dos que exigem os pobres continuadamente pobres e que afirma os seus fins a despeito de seus meios para alcançá-los. Pior, só com o suficiente para comer. Interessou pouco aos escritores essa vidinha miserável de adjutórios de sobrevivência. As cartas foram intrinsecamente políticas e destacaram vidas politizadas, vidas que apreenderam os sinais e os fenômenos do mundo e aprenderam a organizá-los, pensá-los e dar soluções a eles. Como se deu com o presidente preso em sua jornada desde o mundo nordestino à liderança sindical e política do país. O presidente preso passa a compor o Brasil errado, o Brasil da Colônia e do Império, tornados contemporâneos, reversíveis. Os poderes se refazem…se possível sempre!

Os escritores pensam o Brasil, a partir de si, como deve ser na epistolografia. Ainda que o eu não seja o centro do universo do pensamento, é indispensável para atestar a legitimidade da carta. E essa legitimidade dialogou com o presidente injustiçado. Na troca de cartas, vale o choro, a saudade e a angústia. Mas vale ainda mais a construção de consciência do projeto brasileiro de justiça e cidadania violentado e em franco retrocesso. Essas cartas são a verdade de uma correspondência singular na contemporaneidade humana e política do Brasil.

*Luiz Roberto Alves é professor-pesquisador sênior da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de Administrar via cultura: revolução educativo-cultural na ex-pauliceia desvairada, 1935-1938 (Alameda).

 

Referência


Querido Lula – cartas a um presidente na prisão. Maud Chirio (org). São Paulo, Boitempo, 2022, 240 págs.

 

 

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