Por ANDREW KORYBKO*
Comparações entre o conflito russo-ucraniano e a recente guerra israelo-libanesa
A mais recente guerra israelo-libanesa e o conflito ucraniano são tão diferentes um do outro que são praticamente incomparáveis, ainda assim, a Rússia pode aprender algumas lições gerais com Israel, se assim desejar. A primeira é que dar prioridade aos objetivos militares aumenta as chances de alcançar os objetivos políticos. A operação especial da Rússia continua caraterizando-se pela autocontenção, influenciada pela magnum opus de Vladimir Putin “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”, ao contrário da conduta de Israel em sua guerra com o Líbano.
A expectativa era que os avanços rápidos no terreno durante a fase inicial do conflito coagissem Volodymyr Zelensky a concordar com as exigências militares que lhe eram feitas. Os minúsculos danos colaterais que teriam ocorrido poderiam então facilitar o processo de reconciliação russo-ucraniana. Este plano baseava-se na capitulação de Volodymyr Zelensky, o que não aconteceu. Em vez disso, foi convencido pelo ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson a continuar lutando.
Israel nunca pensou que fosse possível um acordo duradouro com o Hezbollah, ao contrário do que a Rússia pensava e, sem dúvida, ainda pensa que é possível com as autoridades ucranianas pós-“Maidan”, razão pela qual Tel Aviv nunca seguiria a cartilha de Moscou, realizando “gestos de boa vontade” para o conseguir. Do ponto de vista de Israel, os objetivos políticos só podem ser alcançados após uma vitória militar, e não o inverso, como a Rússia acredita, em relação à noção de que uma vitória política pode levar à obtenção de objetivos militares.
A segunda lição é a importância de serviços de inteligência superiores. A Rússia teria ficado com a impressão, cultivada por seus ativos ucranianos no período que antecedeu a operação especial, de que os habitantes locais saudariam suas tropas com flores e que, em seguida, o governo de Volodymyr Zelensky entraria em colapso. A coleta de informações centrou-se sobretudo na situação sociopolítica da Ucrânia, as quais se revelaram incrivelmente imprecisas, sem detalhes militares. Foi por isso que as tropas russas foram surpreendidas pelos arsenais de Javelins e Stingers da Ucrânia.
Em retrospectiva, parece também que os ativos ucranianos da Rússia informaram a seus encarregados o que pensavam que estes queriam ouvir, seja para enganá-los, seja porque pensavam que, ao lhes dizer verdades duras, poderiam ser retirados da folha de pagamentos. A Rússia ou não verificou as informações sociopolíticas que recebeu, ou as demais fontes em que se baseou eram movidas pelos mesmos motivos. Em todo caso, foi criada uma realidade alternativa que reforçou a prioridade dos objetivos políticos sobre os militares.
Israel está sem dúvida interessado na situação sociopolítica do Líbano, mas se preocupa muito mais com informações militares tangíveis que podem ser verificadas com imagens do que com impressões intangíveis da opinião pública que podem ser ocultadas pelos vieses de sua fonte e não são tão fáceis de verificar. Estas diferentes prioridades de obtenção de informações são o resultado natural dos diferentes conflitos que planejaram travar, como explicado na precedente lição que a Rússia pode aprender com Israel.
A terceira é que a Rússia continua sendo sensível à opinião pública mundial, o que é outro resultado da priorização dos objetivos políticos sobre os militares, ao passo que Israel é impermeável à opinião pública doméstica, no Líbano e ao redor do mundo. Por conseguinte, a Rússia colocará suas tropas em perigo, capturando locais bloco a bloco, em vez de praticar o “choque e pavor”, como Israel está fazendo no Líbano. Embora a abordagem da Rússia tenha provocado muito menos mortes de civis, continua sendo tão criticada como Israel, ou até mais.
Israel acredita que o medo inspira respeito, enquanto a Rússia não quer ser temida porque pensa que essa impressão ajudaria os esforços do Ocidente para a isolar do Sul Global. O respeito, como a Rússia acredita, advém da autocontenção com o fim de proteger os civis, mesmo que à custa de suas próprias tropas. A Rússia também criticou os EUA pela forma como conduziram as guerras do Afeganistão, Iraque, Líbia, etc., e, por isso, não quer parecer hipócrita ao priorizar os objetivos militares, mesmo que às expensas das vidas de civis.
Israel não tem os recursos naturais que a Rússia tem, logo seus opositores deveriam ter tido muito mais facilidade em isolá-lo, ao menos conseguindo que outros impusessem sanções simbólicas, mas ninguém sancionou Israel, apesar de sua responsabilidade por muito mais mortes de civis do que a Rússia. Nem a própria Rússia sancionou Israel, apesar de suas críticas a este país. Para ser justo, o Sul Global também não sancionou a Rússia, mas precisa dos recursos russos, portanto, provavelmente não a sancionaria mesmo que se tornasse responsável por muito mais mortes de civis.
Além disso, a parceria do Sul Global com a Rússia acelera os processos multipolares em seu benefício coletivo, enquanto as sanções antirrussas da União Europeia se destinavam a desacelerá-los. Por conseguinte, deveria ter sido previsível que os primeiros não se submeteriam à pressão americana, enquanto os segundos sim. Os cálculos de ambos não têm nada a ver com a responsabilidade da Rússia pelas mortes de civis e tudo a ver com sua própria grande estratégia. A sensibilidade da Rússia à opinião pública mundial pode, portanto, ser despropositada.
A quarta lição é que as burocracias militares, de inteligência e diplomáticas permanentes de Israel (“estado profundo”) estão mais convencidas da natureza existencial de seu conflito do que a Rússia parece estar. Isto não quer dizer que o conflito ucraniano não seja existencial para a Rússia, o que foi explicado aqui e aqui, mas apenas que a Rússia teria dado prioridade aos objetivos militares sobre os objetivos políticos se o seu “estado profundo” compartilhasse totalmente esta avaliação. O de Israel certamente compartilha, independentemente de se concordar ou não com suas conclusões.
A Rússia continua contendo-se, pela continuação de uma “guerra de atrito” improvisada com o Ocidente na Ucrânia, depois de não ter conseguido coagir Volodymyr Zelensky a concordar com as exigências militares que lhe foram feitas durante a fase inicial da operação especial, em vez de escalar para o “choque e pavor”. Continua sem destruir nenhuma ponte sobre o rio Dnieper devido à prioridade que dá aos objetivos políticos em vez dos militares e à sensibilidade à opinião pública mundial, mesmo já tendo deixado passar várias linhas vermelhas.
Certamente o Ocidente não ultrapassará as linhas vermelhas definitivas da Rússia, atacando-a diretamente ou à Bielorrússia, ou confiando na Ucrânia para lançar ataques em grande escala contra eles por procuração, uma vez que não quer a Terceira Guerra Mundial, mas alguns falcões estão agora falando do último cenário, daí a Rússia ter acabado de atualizar sua doutrina nuclear. Em contrapartida, o ataque furtivo do Hamas, em 7 de outubro de 2023, ultrapassou uma das linhas vermelhas de Israel, mas não representou ipso facto uma ameaça existencial, uma vez que foi repelido, embora o “Estado profundo” de Israel ainda tenha visto de forma diferente.
Apesar de existirem algumas diferenças de visão entre os vários membros, este grupo como um todo continua convencido da natureza existencial do conflito que se seguiu, o que significa que a prioridade dos objetivos militares sobre os políticos é o oposto da abordagem russa. Até hoje, apesar dos argumentos convincentes dos oficiais russos sobre a natureza existencial do conflito de seu país, seu “estado profundo” como um todo ainda não parece estar tão convencido disso como seus homólogos israelenses estão de seu próprio conflito.
Uma mudança de perceção levaria a uma mudança na forma como este conflito é travado, mas isso ainda não aconteceu, apesar dos ataques de drones contra o Kremlin, bases aéreas estratégicas e até sistemas de alerta precoce, entre muitas outras provocações, incluindo a invasão da região de Kursk pela Ucrânia. Reiteradamente, apesar de lembrar a todos o caráter existencial deste conflito, a Rússia continua exercendo sua autocontenção. Os objetivos políticos continuam tendo prioridade sobre os militares e a Rússia continua sendo sensível à opinião pública mundial.
Isso pode mudar se aprender a última lição de Israel sobre “determinação radical”. O filósofo Alexander Dugin escreveu que “aqueles que agem com determinação e ousadia vencem. Nós, pelo contrário, somos cautelosos e hesitamos constantemente. Aliás, o Irã também está seguindo este caminho, que não leva a lugar algum. Gaza desapareceu. Foi-se a liderança do Hamas. Agora, foi-se a liderança do Hezbollah. E foi-se o presidente Raisi do Irã. Foi-se até seu pager. Mas Volodymyr Zelensky ainda está aqui. E Kiev mantém-se como se nada tivesse acontecido”.
Terminou com uma nota sinistra: “Ou entramos no jogo a sério ou… A segunda opção é algo que nem sequer quero considerar. Mas na guerra moderna, o tempo, a velocidade e a “dromocracia” decidem tudo. Os sionistas agem rapidamente, proativamente. Ousadamente. E ganham. Devemos seguir o exemplo deles”. Alexander Dugin foi o primeiro a prever a ameaça existencial latente que o “EuroMaidan” de 2014 representava para a Rússia e, por isso, desde o início da operação especial, tem insistido para que o país deixe de exercer autocontenção.
Os “gestos de boa vontade” e a autocontenção não são apreciados pela Ucrânia, que os vê como uma prova de fraqueza que só serviu para a encorajar a cruzar mais linhas vermelhas da Rússia. Por muito que estas políticas tenham reduzido o número de mortes de civis, ainda não fizeram avançar os objetivos políticos previstos, ao final de dois anos e meio desde o início da última fase deste conflito que já tem uma década. Por isso, talvez seja tempo de finalmente mudá-las, tendo em conta o quão diferente o conflito se tornou desde então.
O nobre plano de Vladimir Putin de uma grande reconciliação russo-ucraniana após o fim da operação especial parece estar mais distante do que nunca, mas ele ainda acredita que é suficientemente viável para justificar a manutenção do rumo, continuando a priorizar os objetivos políticos sobre os militares. Ele é o comandante supremo em chefe com mais informação disponível do que qualquer outra pessoa, por isso tem razões sólidas para isso, mas talvez o exemplo de Israel no Líbano o inspire a ver as coisas de forma diferente e a agir em conformidade.
*Andrew Korybko é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Autor do livro Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes (Expressão Popular). [https://amzn.to/46lAD1d]
Tradução: Fernando Lima das Neves.
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