Considerações sobre a filosofia do futuro

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Por Antonio Valverde*

O intelectual público – erudito, boêmio, livre pensador –, aos poucos, foi sendo substituído pelo professor universitário proletarizado da era digital, adaptado à forma fragmentada do trabalho da linha administrativa toyotista

“Os homens conhecem as coisas que ocorrem. […]. / Das coisas futuras, os sábios percebem as que se aproximam. Sua audição /às vezes, em horas de sérios estudos, / perturba-se. O misterioso clamor / vem-lhes de acontecimentos que se aproximam. /

E, respeitosos, ficam atentos a ele.” (Konstantinos Kaváfis).[i]

1.

Descer aos infernos da tradição filosófica (e voltar) para inaugurar a nova Filosofia, desde o grau zero da escritura e o lutar a “luta mais vã” com termos, linguagens, conceitos, linhagens, ao raiar da aurora, e, no mesmo passo, inventar o problema guia explicitador da necessidade de lançar luzes ao futuro – para além da loteria acumulada da história da filosofia, com resultados mais ou menos anunciados, demarcados. Eis o desafio, o provável desafio de inventar uma nova Aufklärung, assimilada e superada a anterior, a da divisão de águas do século XVIII, principiada no XVII.

Se Eurídice entretecida no mito não pôde retornar do Hades, descer aos infernos da tradição filosófica, em movimento de superar conservando, corresponde a motilidade do logos interrogante de trazer de volta ao imaginário a primeira invenção dos fisiólogos gregos, a pergunta ontológica inaugural, “o que é?”Logo, não mais a interrogação acerca do que tem sido.

Un coup de dés!

2.

O Inferno foi a pior invenção imagética / ideológica da humanidade, no passo em que a humanidade não consegue reconstruir o Paraíso dos primórdios míticos. Contudo, ela tem construído, sob “cerração”, o ruidoso inferno material do tempo presente, espelhado de modo ficcional em distopias tecnocientíficas de regimes totalitários.   

3.

O mórbido Zeitgeist do início do século XXI afigura-se materializado na imagem de um “espectro a rondar a civilização globalizada pela conjugação estrutural-administrada – entre capital financeiro, toyotismo, tecnociência, neoliberalismo/autoritarismo/totalitarismo[ii] e sofrimento psíquico calculado, fruto da brutal exploração do trabalho[iii] e desemprego  –, que, praticamente, adentra todas as porosidades da vida social e da natureza, do tempo e do espaço, em escala planetária jamais representada, mentalmente. A par de um tipo de religiosidade espetacular e mercantil, pautado, de modo nada contraditório, pelo desencantamento do mundo, como observara Weber. Além do pauperismo crescente, sob a ruína galopante dos direitos civis.

Contudo, se “pensar significa transpor”, será possível imaginar e projetar uma filosofia do futuro, que não seja alternância de problemas e de subproblemas derivados de linhagens filosóficas, extraídos do circuito polifônico contemporâneo, que, grosso modo, encontram-se, praticamente, em vias de esgotamento, hauridas, em parte, de suas forças iniciais? Quais modos serão possíveis e razoáveis para idear uma filosofia do futuro, – na Era da quarta revolução industrial – para além dos becos sem saída do Grande Hotel abismo?

– Sob densa cerração.

4.

Em uma primeira consideração acerca da filosofia do futuro ocorre a figura pública do intelectual.[iv] Inventada ao tempo da Aufklärung, de par com a força do conhecimento científico de Newton e de Gauss, e ao fervor revolucionário burguês, sob o contágio da possibilidade da Revolução Francesa. Porém, o intelectual público – erudito, boêmio, livre pensador –, aos poucos, foi sendo substituído pelo professor universitário proletarizado da era digital, transferido da linha de montagem fordista para a forma fragmentação do trabalho da linha administrativa toyotista. A produção serial de papers acadêmicos expressa o toyotismo em regime de introspecção, que tomou assento e fixou cadeira cativa nos departamentos das universidades.[v]

Sem prescindir de Hegel, na vaga da Aufklärung, por mais que tenham sido críticos do Esclarecimentoe contaminados pela virose revolucionária, porém, sem ceder a nenhuma aplicação mecânica do espírito originário da necessidade de mudança do pensamento instituído, intelectuais, ainda não ofuscados pela obsolescência, como Darwin (1809-1882), Marx (1818-1883), Nietzsche (1844-1900), Freud (1856-1939), Einstein (1879-1955), não floresceram ao acaso, mas sob o contexto de desarmes exemplares dos modelos de conhecimento pretéritos, voltados para o front de invenções de novas chaves interpretativas da biologia, do desenvolvimento das forças produtivas, dos usos da razão pela civilização ocidental, dos nexos consciente / inconsciente e da teoria da relatividade geral.[vi]

5.

Para circunscrever o tema,[vii] há que se recordar Kant como precursor de ensaio acerca do vezo da filosofia do futuro, Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik die als Wissenschaft wird auftreten können (Prolegômenos a toda metafísica futura que se apresenta como ciência), de 1783. Kant defendera: “Estes Prolegômenos não são para usos dos principiantes, mas dos futuros docentes, e não devem também servir-lhes para ordenar a exposição de uma ciência já existente, mas, acima de tudo, para inventar essa mesma ciência. […] a busca dela não desaparecerá, porque o interesse da razão universal está nela implicado demasiado intimamente, ele reconhecerá que uma reforma completa, ou antes, um novo nascimento da metafísica, segundo um plano inteiramente desconhecido até agora, se produzirá inevitavelmente, apesar das resistências que, durante algum tempo, se lhe poderão opor”.

Feuerbach foi o pioneiro a nomear de filosofia do futuro, aquela que cumprisse a necessidade de reformar a filosofia, ou antes, a teofilosofia, com o fim conspícuo de suplantar o idealismo alemão, sobremodo, o hegelianismo, registrada em Grundsätze der Philosophie de Zukunft (Princípios da filosofia do futuro), de 1843.[viii]

A filosofia feuerbachiana findou por corroborar finamente ao desmonte crítico da modernidade, pela inovadora concepção antropológica e a consequente crítica da religião. Pois, “Feuerbach havia conclamado a retornar das puras ideias à contemplação sensorial, do espírito ao homem, incluindo a natureza como nova base. […] essa rejeição tão ‘humanista’ de Hegel (tendo o homem como ideia central, a natureza como prius em vez do espírito) teve uma influência muito forte sobre o jovem Marx” (Ernst Bloch, 2005, I, 19, p. 247).

Imbuído da filosofia feuerbachiana, Marx, desde Kreuznach, durante o verão de 1843, alertara em primeira mão: “Na Alemanha, a crítica da religião está, no essencial, terminada; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica. […] A supressão [Aufhebung] da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real” (Karl Marx, 2010, p. 145). Antecipando assim o que viria a ser a conceituação demolidora de ideologia.

Contudo, em os Manuscritos econômicos-filosóficos, Marx ultrapassara Feuerbach. Nos Manuscritos, “a relação ‘do homem com o homem’ não permanece uma relação antropológico-abstrata de cunho geral, como em Feuerbach, ao contrário, a crítica a alienação humana em relação a si mesma (transposta da religião para o Estado) penetra […] no cerne econômico do processo de alienação. […] No lugar do homem genérico de Feuerbach, com sua naturalidade abstrata e invariável, surgiu um conjunto historicamente alternante de relações sociais e sobretudo antagônico quanto à classe social” (Ernst Bloch, 2005, I, 19, pp. 248-249). Principiava por ficarem expostas a (primeira) superação e fratura da filosofia alemã pós-Idealismo e, por extensão, da realidade (miséria) alemã, como brechas para uma “filosofia do futuro”.

6.

Nietzsche, em Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der Zukunft (Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro),interroga e responde, aparentemente, sob fina ironia de si: “Está surgindo uma nova espécie de filósofos: atrevo-me a batizá-los com um nome que não está isento de perigos. Tal como os percebo, tal como eles se deixam perceber – pois é da sua natureza querer continuar sendo enigmas em algum ponto -, esses filósofos do futuro bem poderiam, ou mesmo mal poderiam ser chamados de tentadores (experimentadores). Esta denominação mesma é, afinal, apenas uma tentativa e, se quiserem, uma tentação” (Nietzsche, 2005, § 42).

7.

À distância, o filósofo parece gesticular para dar materialidade à hipótese filósofo do futuro: “Com o mesmo direito poderiam se chamar críticos; e sem dúvida serão experimentadores. Através do nome com que ousei batizá-los, já sublinhei claramente a experimentação e o prazer no experimental: seria porque, críticos de corpo e alma, eles amam servir-se do experimento num sentido novo, talvez mais amplo, talvez mais perigoso? […] – Não há dúvida: esses vindouros não poderão, de maneira alguma, dispensar as qualidades sérias e nadas inofensivas que distinguem o crítico do cético, isto é, a segurança nas medidas de valor, o manejo consciente de uma unidade de método, a coragem aberta, o estar só e responder por si; sim, eles não negam, em si, um prazer em dizer não e desmembrar, e uma certa curiosidade refletida, que sabe manusear a faca de modo seguro e delicado, ainda que o coração sangre. […] Esses filósofos do futuro não só exigirão de si mesmos a disciplina crítica e todo hábito que leve a rigor e asseio nas coisas do espírito; eles bem poderão exibi-los como sua espécie própria de ornamento – e apesar disso não desejam ser chamados de críticos” (Nietzsche, 2005, § 210).

8.

O Alemão dobra a aposta: “serão novos amigos da ‘verdade’ esses filósofos vindouros? Muito provavelmente: pois até agora todos os filósofos amaram suas verdades. Mas com certeza não serão dogmáticos. […] será como é e sempre foi: as grandes coisas ficam para os grandes, os abismos para os profundos, as branduras e os tremores para os sutis e, em resumo, as coisas raras para os raros”. Ao que complementa: “eles serão espíritos livres, muito livres, esses filósofos do futuro – o que tampouco será apenas espíritos livres, porém algo mais, maior, mais alto, radicalmente outro, que não quer ser mal-entendido e confundido? Mas ao dizer isto sinto – para com eles, não menos do que para conosco, seus arautos e precursores, nós, espírito livres! – a obrigação de varrer para longe de nós, conjuntamente, um velho, tolo equívoco e preconceito, que por muito tempo obscureceu, como uma névoa, o conceito de ‘espírito livre’. […] na medida em que somos os amigos natos, jurados e ciumentos da solidão, de nossa mais profunda, mais solar e mais noturna solidão – tal espécie de homem somos nós, nós, espíritos livres! e também vocês seriam algo assim, vocês que surgem? Vocês, novos filósofos?”(Nietzsche, 2005, § 43, § 44).[ix]

9.

Proximamente, sob matiz nietzschiano, Gilles Deleuze, em Diálogos com Claire Parnet, respondendo a uma questão de aparência prosaica, “Uma conversa, o que é, para que serve?”, retoma de viés a questão do futuro, pela forma devir, devires. Para Deleuze, “os devires são geografia, são orientações, entradas e saídas”. Assim, “há um devir-filósofo que não tem nada a ver com a história da filosofia e passa, antes, por aqueles que a história da filosofia não consegue classificar”.

Por isso, “devir é jamais imitar, nem fazer como, nem se ajustar a um modelo seja ele de justiça ou de verdade”. Ao contrário, é fruto de um ato solitário de capturar e jungir ao acaso, como num lance de dados, de movimento ziguezagueante, sem método prévio que oriente a ação, “nada além de uma longa preparação”, na forma de ascese solitária, a lidar com o repertório acumulado e sem destino movido a-priori ao surgimento do novo. Pela quebra da representação da filosofia empilhada, fossilizada pela história da filosofia, como um outro, quiçá o grande Outro, a ser reconhecido pela linguagem – por novos termos postos em andamento –, identificada pela invenção de novas armas conceituais críticas a demolir a fixidez do exército filosófico de reserva, no entreato do acidental, ao estilo inovador como um salto no escuro da possibilidade.

Por certo, a partir de descobertas e de porosidades que cada época consegue produzir, como a porosidade de Sartre significara para Deleuze a aragem de vento puro ao massacre de Hegel, Husserl, Heidegger. Um refúgio, um desconcerto fora da ordem, ao mesmo tempo uma promessa contra o repressor sistemático, o obsessor do antipensamento a ser descarrilhado da formalidade da história da filosofia, sem amarras. Desde a possibilidade de começos diante de negligenciados da história da filosofia (referências extraídas de Deleuze, 1998, pp. 2-16), como o clarão Giambattista Vico, que (neste contexto) pode soar como (im)provável anacronismo. O que não é o caso do clarão Ernst Bloch, diante da cerração gerada pelos embates dissonantes da polifonia filosófica, em curso.

10.

O mundo das pesquisas acadêmico-científicas ainda segue, salvo melhor juízo, devedor das invenções daqueles pioneiros, cujas teorias encontram-se desdobradas em peças acadêmicas de compreensão do tempo presente. São ainda os máximos credores das explicações teóricas, em curso. Ao compasso combinado do fato de a ideia de revolução executada pela burguesia, ter perdido aos poucos a sua força original, e derivar a tarefa revolucionária às mãos dos trabalhadores organizados para a luta social.

Contudo a luta proletária dilui-se após o fim da Segunda Guerra Mundial, ao som tonitruante da instalação do Estado do Bem-Estar Social. E o espírito da revolução cedeu lugar à contrarrevolução e à revolta (Marcuse, 1973), levando consigo os ideais utópicos. Antecipados pelos versos feéricos da música pop, the dream is over ou this dream is over, dos anos 1960. Ato contínuo ao Maio de 68, evento político registro do desenlace do Estado do Bem-Estar Social, adentrou a cena da sociedade do espetáculo a produção e o consumo de textos filosóficos, sem o correspondente ruminar aos moldes nietzschianos.

Aos dezenove anos, Marx, entre romântico e irônico, ruminava: “Todo gigante, […], deixa atrás de si um anão; todo gênio, um estúpido filisteu; toda agitação no mar, a lama; e, tão logo os primeiros se retiram, os últimos se apresentam, tomando assento à mesa e esticam sem comedimento suas longas pernas. […] Os primeiros são demasiado grandes para este mundo; por isso são lançados fora. Os últimos, porém, deitam raízes e permanecem, como os fatos nos mostram, pois o champanhe deixa um perseverante e repulsivo sabor final; o heroico César deixa atrás de si o ator Otaviano; o imperador Napoleão, o rei burguês Luís Felipe; o filósofo Kant, o cavaleiro Krug; o poeta Schiller, o conselheiro da corte Raupach; o celeste Leibniz, o aprendiz Wolff” (Marx, 2018, pp. 38 e 40). Marx, o prenunciador Feuerbach…

Pensar uma filosofia do futuro ou apontar para alguma filosofia existente com características de filosofia vindoura mostra-se, sob variados aspectos, de modo problemático, grave e, no limite, a ser demarcado para além do bom e do mal humor.

11.

Há quem sugira o fenômeno do “silêncio dos intelectuais” frente ao drama contemporâneo. Porém, a constatação choca-se com a impositiva questão: que ou quais intelectuais? No mesmo movimento de afirmação do espírito de negação do passado recente, pela contramão, estiveram os artistas de modo geral, nas figuras de pintores, poetas, romancistas – destaque para os realistas –, compositores, escultores, dançarinos, arquitetos, que se esforçaram por romper a ordem convencional e conservadora, ao esforço de projetar outras formas de ver e de enxergar a crise político-social.

Se o espírito da revolução encolheu, se os intelectuais autênticos despareceram e suas críticas enfraqueceram, pode ser que, sob a mais extrema alienação em vista do desenvolvimento da base material, a criatividade artística continue antecipando a crítica da ordem social, mesmo que os artistas desse tempo não atinjam alturas alcançadas anteriormente, como observaram Schiller e, após, Marcuse. Hoje, as artes parecem descrever o tempo, fragmentariamente. Nos anos sessenta do século passado, a Internacional Situacionista (IS), em torno a Guy Debord, lançou a fórmula político-estética de vanguarda: a criação artística de “situações” futuras.

A tarefa filosófica – de uma filosofia do futuro – poderá principiar com a transformação do aterrador Zeitgeist do presente em conceito, de modo a iluminar a própria filosofia, os saberes da tecnociência, da arte e da religião, e, no limite, os saberes práticos, ética, política e economia.

– Acaso, o toyotismo terá penetrado o universo das artes?

12.

Sem ressentimento. É passado o tempo de intelectuais, diga-se, de fibra, com envergadura necessária para sintetizar todas as contradições em movimento, expostas e compreendidas acerca do atual estágio da História, a ponto de explicá-las em chave de análise esclarecedora, capaz de lançar luzes para o presente e ao futuro? O intelectual, que movia o pensamento crítico e inventava horizontes de negação da ordem desapareceu, praticamente.

A questão de superfície a ser colocada é se haverá futuro relevante para a própria filosofia, se produzida pelo tipo de acadêmico universitário proletarizado, em ação. Por certo, a filosofia poderá continuar existindo enquanto existir o logos interrogante. Mas, ao futuro, no sentido da altura intelectual atingida por aqueles que, em passado recente, romperam a servidão às verdades silentes, de trânsito duradouro, parece ter ficado para as calendas. Ao menos momentaneamente.

Se os nomes foram poucos, os seus alcances são incomensuráveis, incontornáveis, vez que as matrizes das teorias inovadoras iluminaram e iluminam o pensamento contemporâneo. Moedeiros falsos, meros fenômenos de mercado, não contam, pois não podem ser considerados intelectuais nem eruditos nos sentidos originais e fortes dos termos. Se intelectuais verdadeiros estivessem em cena, por certo, se evitaria o périplo de dar cabeçadas à procura da inatingível explicitação teórica do que se passa e, sobretudo, acerca da premente questão: o que é o presente? O que o presente deve ao passado? E, por extensão, ao futuro? 

13.

Segundo Lukács, “tão logo a história é impelida para o presente – e isso é inevitável para compreender realmente o presente – esse ‘espaço nocivo’, segundo as palavras de Bloch, torna-se evidente. Como resultado da incapacidade de compreender a história, a atitude contemplativa da burguesia polariza-se em dois extremos: os ‘grandes indivíduos’ como criadores soberanos da história e as ‘leis naturais’ do meio histórico. Ambos são igualmente impotentes – quer estejam separados ou reunidos – quando desafiados a produzir uma interpretação do presente em toda a sua novidade radical” (Lukács, 2012, pp. 323-324).

Enzo Traverso, em Melancolia de Esquerda: marxismo, história e memória, analisa, no detalhe o interesse pelo presente, desde a “melancolia” e a desconstrução da “memória” operária, marcadas pelo fim das utopias, em particular a socialista, durante século XX, escorado em Benjamin, Bloch, Bensaïd. Ao final, Traverso arrisca: “O século XX foi uma era de rupturas repentinas, inesperadas, fulminantes, que escapavam a qualquer causalidade determinística: criou muitos ‘tempo-agora’ (Jetztzeit), em que o presente encontrava o passado e o reativava. Seu fim chegou sob a forma de uma condensação de memórias em que as feridas se reabriram e a história encontrou sua experiência vivida” (Traverso, 2018, p. 456).

A derrocada da utopia, desde imagens a viajarem no tempo, fora apontada por Benjamin, em 1935: “À forma do novo meio de produção, que no início ainda é dominada por aquela do antigo (Marx), correspondem na consciência coletiva imagens nas quais se interpenetram o novo e o antigo. Estas imagens nas quais se procura tanto superar quanto transfigurar as imperfeições do produto social, bem como as deficiências da ordem social de produção. Ao lado disso, nestas imagens de desejo vem à tona a vontade expressa de distanciar-se daquilo que se tornou antiquado – isso significa, do passado mais recente. Estas tendências remetem a fantasia imagética, impulsionada pelo novo, de volta ao passado mais remoto. No sonho, em que diante dos olhos de cada época surge em imagens a época seguinte, esta aparece associada a elementos da história primeva, ou seja, de uma sociedade sem classes. As experiências desta sociedade, que têm seu depósito no inconsciente do coletivo, geram, em interação como o novo, a utopia que deixou seu rastro em mil configurações da vida, das construções duradouras até as modas passageiras” (Benjamin, 2006, p. 41).

14.

Como hipótese, será necessário que uma suposta Filosofia do Futuro principie, de alguma forma – por certo de um procedimento dialético, de interrogação e apuração de respostas –, por deslindar as contradições subliminares das verdades silentes, em circulação, que se impuseram ao percurso da construção da História da Filosofia, paralisando a sua crítica, paralisando o logos interrogante. De modo a (re)introduzir a compreensão e o debate acerca de “universais substancializados em concreção” mobilizado ao pensar maiúsculo, como lembrava Marcuse, em The Unidimensional Man.

E a reconquistar o uso adequado da razão objetiva, que é a forma crítica distanciada do que ocorre no mundo, desde o cotidiano, a interrogar de pelo que é, em realidade, para ascender às categorias universalizantes, acima da própria cotidianidade. Em movimento de desarmar aos poucos a resiliência da razão instrumental, operada em vista dos meios, e somente para fins intermediários, menores. Não destinada aos fins éticos, estéticos e políticos, que a humanidade jurou perseguir e atingir a partir do Esclarecimento.

Pois, somente a razão objetiva, por ser crítica, consegue formular e, no limite, alinhar a possibilidade de efetivação filosófica, de conseguir dispor tais fins como horizonte transcendente – em sentido próprio – do aparente sumidouro de valores na cotidianidade. Mas, por ser em o cotidiano que tudo de humano se dá ao caso, há que interpenetrar a posição crítica da razão objetiva aos conteúdos prosaicos de tal medida de tempo.

Quiçá em parte, seja esta uma tarefa da filosofia do futuro: a sua (re)invenção desde a interrogação de “o que é?” como os primeiros gregos o fizeram, ao inventarem a ontologia. E, no mesmo pique, com coragem histórica exemplar, ensaiar o abandono do castelo de cartas de conceitos gerados de situações ao domínio da conjugação capital-toyotismo-tecnociência-neoliberalismo/totalitarismo. Para gerar um novo front. Situação para qual as filosofias em curso parecem não oferecer nenhuma compreensão razoável, menos ainda a crítica plausível e completa. Salvo, por aposta, a filosofia de Ernst Bloch.

15.

O espírito genuíno de máxima agudeza crítica frente às filosofias circulantes, pautado pela necessária compreensão do presente, sob nova base ontológica, apresenta-se como exigência fundamental para a devida projeção de uma filosofia e de sua correspondente práxis, – transformadoras da vida. De sorte que a primeira remeta a segunda e vice-versa, repensadas como foram em suas concepções originais, atreladas entre si a partir das categorias da História do presente. Contudo, a maioria das filosofias em circulação, imbuídas de acento acrítico, ainda operam ao nível do campo ideológico, sem considerar o dinamismo da base material-tecnológica da sociedade atual, a moldar o pensamento comum em diapasão com a expansão do controle social, aquém da constatação dos frankfurtianos.

Acerca do dinamismo e da expansão, a filosofia deva teorizar e elevar a crítica para categorias universais. Vez que a ideologia mudou de “hábitos” e materializou-se, ultrapassando a barreira da distinção e de seus nexos causais entre infraestrutura e supra- estrutura, no âmbito da polivalente e caleidoscópica sociedade do espetáculo, como deslindara Debord.

Afinal, tudo é ideologia. Porém, grosso modo, a ideologia parece – aos desavisados – seguir refletindo de forma invertida e idealizada a base material do desenvolvimento do modo de produção vigente, desde a convergência entre o teto ideológico e a base material. Para Debord, “a ideologia é a base do pensamento de uma sociedade de classes, no curso conflitante da história. Os fatos ideológicos nunca foram simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, como tais, fatores reais que exercem uma real ação deformante; tanto mais que a materialização da ideologia provocada pelo êxito concreto da produção econômica autonomizada, na forma de espetáculo, praticamente confunde com a realidade social uma ideologia que conseguiu recortar todo o real de acordo com seu modelo” (Debord, § 212, 1997).

– Debord na cabeça! A contravenção da filosofia em torno aos efeitos purgativos do Maio de 68.

16.

Apropriar-se e ultrapassar de modo crítico o nível ideológico parece ser um dos desafios projetivos da filosofia contemporânea de passagem rumo a (uma) Filosofia do Futuro, sob forte cerração. Com o fim conspícuo de pensar o movimento real da sociedade, no sentido de que pode se tornar próprio da filosofia a crítica efetiva da ideologia materializada.

Se em verdade for almejada a supressão da vitória do positivismo, demarcada pela filosofia analítica, a tecnociência, a tecnobiologia, o behaviorismo (tornado psicologia experimental) e, de modo complementar, pela neurociência, por mais que aparente não compor parte do quadro positivista de conhecimento científico ou pseudocientífico.

Sem olvidar, no limite, o neoliberalismo e o toyotismo. De modo a retomar o espírito genuíno da dialética inventada por Platão, reinventada por Hegel, finalizada (em aberto) por Marx, na forma da pergunta inaugural acerca de “o que é”, como fundamento da ontologia. A ferramenta pergunta direta pode fornecer a alternativa, desde o horizonte de cerração, a turvar a compreensão do que se passa frente ao acúmulo de trabalho morto, de pesquisa científica e de sua aplicabilidade tecnológica, de par com a apropriação e a destruição da natureza ao limite da irreversibilidade. Além da monstruosidade da mais-valia universalizada.

– Vê-se que se trata de problema ético-político, e a política antecede o ser.

17.

Ensaiando. O que é o problema ético da dominação material planetária através do fator econômico, sob a maré neoliberal? O que significa o adentrar e o destruir das formas mais ou menos tradicionais de organização da vida social e, complementarmente, destruir a natureza, em vista da produção e do consumo de bens supérfluos, que em parte significativa, são dispensáveis à própria manutenção da vida, biológica e social? Por que todas as porosidades invadidas figuram como exigências inevitáveis da ordem ampliada e sem limites da ordem econômica? O que as filosofias contemporâneas têm oferecido na forma análise crítica radical, de modo a apontar para a linha da (in)viabilidade prática de superação dos problemas gerados pelo sistema econômico, reforçando, assim, parte da alienação humana em curso, como se fosse o destino humano a cumprir-se?

Sísifo, herói absurdo do trabalho, metamorfoseado, afigura-se indistinto da pedra que empurra morro acima.

18.

Ao início do século XX, alguns filósofos de inspiração marxiana se debruçaram sobre a dificuldade teórica e prática de criticar o modo de produção capitalista e a urgência política de dilatação do regime socialista, considerada a invenção político-filosófica relevante do século XIX. Assim, dentre as filosofias em circulação – aos ventos de uma presumível nova aragem histórica –, talvez a mais destacada para um horizonte futuro seja a de Ernst Bloch. Por recompor a possibilidade de a filosofia ultrapassar o próprio superego, sob o espírito renovado da utopia concreta, amalgamada da ontologia do “ainda-não-ser” ou “ainda-não consciente”. De modo a ir além da tradição consolidada pelo acúmulo de sabedoria, projetada e cumprida desde a forma História da Filosofia e de seus planos multiplicados: ética, estética, conhecimento, lógica, linguagem, método, política, filosofia da ciência, metafísica, ontologia, filosofia da religião, filosofia das ciências humanas e (a extraviada) filosofia da educação. Em movimento de saltar para frente em um novo front.[x]

Convenha-se que o edifício de labirintos de planos se erguera sobre bases sólidas: da mais fina argamassa mítica e da dureza mineral dos rasgos de racionalidade registrados nos poemas homéricos, particularmente, na Odisseia, antes do advento “oficial” do poder crítico da razão, a Filosofia, por volta século VI a. C. Assim, a Filosofia, arcada sob tanto peso e glória, fruto de expansão capilar, dada a porosidade do conhecimento próprio de seu conteúdo, de par com a teologia cristã, a arte e a ciência, poderá, afinal, por hipótese efetivar-se? – Se ainda for o caso.

Eis o desafio possível a ser lançado à filosofia contemporânea, antecipada que fora pela invenção de Hegel, aos fôlegos da projeção e da efetividade do Espírito Absoluto, ao final da projeção de seu completo giro histórico-filosófico. Marx pensou o futuro da filosofia, apostando: “Assim como a filosofia encontra suas armas materiais no proletariado, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais. […] a cabeça dessa emancipação é a filosofia, o proletariado é seu coração. A filosofia não pode se efetivar sem a suprassunção [Aufhebung] do proletariado, o proletariado não pode se suprassumir sem a efetivação da filosofia” (Marx, 2010, pp. 155-156).

– Contudo, a hábil arquitetônica da efetivação da filosofia pelo enlace com o proletariado, parece encontrar-se adiada ou suspensa.

19.

Em passo crítico, imediatamente posterior a Hegel, o desafio fora explicitado por Marx desde a compreensão ontológica da materialidade histórica, sintetizada pela premissa: “não podeis suprimir a filosofia sem realizá-la”(MARX, 2010, p. 150). Após, fora aclarada pela 11ª tese ad Feuerbach: “os filósofos até hoje interpretaram o mundo, diferentemente, resta transformá-lo”, em tradução adaptada.[xi] Imbuída de tal perspectiva, a meados da segunda metade do século passado, sob o impacto político da Revolução Russa, circulou pela Europa, com ecos fracos fora dela, a noção de uma “substituição” da filosofia, – frente as afirmações da ciência e da tecnologia , que, em processo de metamorfose, viria a ser metafilosofia.

Roland Corbisier (1914-2005), um dos fundadores do ISEB, de inspiração hegeliana, para o verbete “Filosofia”, registrou: “No limiar da maior revolução de todos os tempos, a revolução social e tecnológica, estaria a filosofia em crise, na iminência de sofrer uma metamorfose ou de ser substituída por outras formas de reflexão e de conhecimento? A indagação é legítima, e filósofos como Henry Lefebvre, sustentam que a filosofia em crise será superada e substituída pela metafilosofia. Outros, como Heidegger, acreditam que, com a reconversão da metafísica, operada por Marx, (sic), a filosofia alcançou sua extrema possibilidade, entrando na fase terminal. (Assim), o ‘vir-a-ser filosofia do mundo’, seria também ‘um vir-a-ser mundo da filosofia’” (Corbisier, 1974, p. 71).

– Noção, aparentemente, desaparecida do radar filosófico. Ou não?

20.

Todavia, qual filosofia poderá oferecer oportunidade de romper com os liames circunstanciais e não, gerados pela própria produção filosófica, em escala, e projetar uma nova aurora filosófica, das muitas que ainda não raiaram? Se admitidas as várias luzes acendidas pela razão na História, desde a filosofia grega antiga, assimilada e expandida pela luz da revelação cristã, durante a Antiguidade Tardia e a Idade Média. À sua vez, o Iluminismo, que negava as luzes cristãs, cumpriu somente em parte seu desígnio, o da emancipação humana in totum et totaliter, cuja denúncia de não efetivação adveio da precisão da filosofia marxiana, que parece ser a última nova luz a problematizar as anteriores, sem ainda ter obtido efetividade real, se por acaso vier a realizar-se.

Vez que a filosofia nietzschiana ofereceu um profundo balanço crítico do uso da razão no Ocidente e a crítica da decadência burguesa, tão somente. quiçá dentre as linhagens marxianas, sobremaneira a do nomeado marxismo “ocidental”, como hipótese, a filosofia de Ernst Bloch possa ao menos apresentar o ensaio de um novo front,a repor o desafio referido, com razoabilidade, em nova chave: a da docta spes, “a esperança compreendida”, nome fantasia da ontologia “ainda-não ser” ou “ainda-não consciente”.Pois, a “filosofia da esperança compreendida se situa, […], per definitionen no front do processo do mundo, isto é, no trecho mais avançado, muito pouco refletido do ser, da matéria movida utopicamente aberta” (Bloch, I, 16, p. 198).

21.

Konstantinos Kaváfis: “Os homens conhecem as coisas que ocorrem. […] Das coisas futuras, os sábios percebem / as que se aproximam. O tema do futuro, por certo, tivera relevância menor na Antiguidade se contraposto ao tempo atual. A propósito,“Varrão, em sua primeira tentativa de produzir uma gramática latina, esqueceu o futurum” (Bloch,I, “Prefácio”, 2005, p. 16). Hoje, o problema do futuro aponta para o afunilamento da via crucis de o Grande Hotel abismoda filosofia, sob os arcos da confluência obstinada de capital financeiro, toyotismo, neoliberalismo / autoritarismo / totalitarismo, tecnociência, destruição da natureza, revanche religiosa, brutal exploração visceral do trabalho, precarização do trabalho, frente a única virtude que restou na caixa de Pandora moderna: a docta spes, prospectada porErnst Bloch.

Haverá possibilidade de uma nova Aufklärung principiar da docta spes? De preferência, de par com a ética da responsabilidade, cunhada por Hans Jonas, que, como a filosofia de Bloch, fora concebida sob plena cerração.[xii]

*Antonio José Romera Valverde é professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP.

Publicado, originalmente em Peruzzo Jr., L. (org.). O futuro da filosofia, Curitiba, CRV, 2019.

Referências Bibliográficas

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VIEIRA, A., História do Futuro, organização e tradução José Carlos Brandi Aleixo, Brasília, UnB, 2005.


[i] Konstantinos Kaváfis (1863-1933), poeta de língua grega, nascido e falecido em Alexandria, Egito, inspirado em passagem de Filóstrato: “Pois os deuses percebem as coisas futuras; os homens, aquelas que ocorrem; e os sábios, as que se aproximam (FILÓSTRATO, Vida de Apolônio de Tiana, VIII, 7), e sob ascese epicurista, escreveu o poema “46. E os sábios, as que se aproximam”, In KAVÁFIS, K., Poemas, tradução Isis Borges B. da Fonseca, São Paulo, Odysseus, 2006, p. 135.

[ii] Marcuse antecipara a questão nos anos trinta do século passado, no texto “O Combate ao Liberalismo na concepção totalitária do Estado”, em que se lê: “Existe uma comprovação clássica para o parentesco interno entre a teoria social liberal e a teoria totalitária do Estado… (MARCUSE, 1997, p. 53).”

[iii] Dardot e Laval, em A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, (2016), analisam, interdisciplinarmente, o neoliberalismo como uma “racionalidade global”, não apenas ideologia e economia, além do propósito de destruir as aquisições democráticas e os direitos civis. Com destaque para o cálculo do sofrimento psíquico a ser transformado em desejo como fator de aumento da força produtiva do trabalhador.  Deixando para trás as propostas do liberalismo clássico e a dos utilitaristas Bentham e Stuart Mill. 

[iv] “Os grandes pensadores, de Galileu a Freud, não se contentaram com as descobertas solitárias; eles buscaram, e encontraram, um público. Se eles parecem muitos distantes, um padrão muito elevado, o meu parâmetro é a última geração dos intelectuais americanos. Eles também se dirigiram a um público, o mesmo não ocorreu com a geração seguinte. […] Os intelectuais independentes, que escreviam para o leitor educado, estão em extinção; […] Uma ironia caracteriza esta investigação de uma geração ausente. Os intelectuais ausentes da vida pública são principalmente aqueles que atingiram a maioridade nos anos 60 – um nome curto para as sublevações que duraram quase quinze anos. […] Tornaram-se sociólogos radicais, historiadores marxistas, teóricos feministas, mas não exatamente intelectuais públicos (JACOBY, 1990, pp. 19 e 21).” A propósito, pela chave semiológica de análise, Roland Barthes registrou: “Perante o professor, que está do lado da fala, chamemos escritor a todo o operador de linguagem que está do lado da escrita; entre os dois, o intelectual: aquele que imprime e publica sua fala. Não há nenhuma incompatibilidade entre a linguagem do professor e a do intelectual (muitas vezes elas coexistem num mesmo indivíduo); mas o escritor está só, separado: a escrita começa onde a fala se torna impossível (BARTHES, 1975, pp. 25-26).”

[v] O premiado romance Ruído Branco, de Don De Lillo, de 1985, retrata a vida medíocre de professores universitários norte-americanos, desesperados por surfar na onda toyotista da produção de papers. Cátedras acadêmicas especializadas em Elvis Presley e Hitler cumprem o papel de inovar a pesquisa e obter as graças de agências de fomento. Porém, os professores são consolados da solidão pelo consumo superimposto de mercadorias, que preenchem falsas necessidades, na antessala da loucura.

[vi] Marcuse alargara a imagem do intelectual ao apontar para o engenheiro, o tecnólogo e o técnico que, ao engajarem-se política e criticamente, – vez que o drama contemporâneo é o da integração à ordem administrada capitalista -, poderiam colocar em parafuso o funcionamento das instituições administrativas, se elaborassem uma nova tecnologia não instrumental. Além de projetarem agências de produção que não explorassem, perdulariamente, a natureza, e promovessem a pacificação da existência, sob a tendência de Eros vir a dominar Thanatos, em uma civilização libidinal para o futuro próximo.

Ilustrando. “[…] o homem encontra a natureza tal como é transformada pela sociedade, sujeita a uma racionalidade específica que se converteu, num grau cada vez maior, em racionalidade tecnológica e instrumentalista, subjugada às exigências do capitalismo. E essa racionalidade acabou influenciando também a própria natureza do homem, agindo contra os seus impulsos primordiais. Para recordar apenas duas características das formas contemporâneas da adaptação de impulsos primordiais às necessidades do sistema estabelecido: a orientação social da agressividade, através da transferência do ato agressivo para instrumentos técnicos, reduzindo assim o sentimento de culpa; e a orientação social da sexualidade, através da dessublimação controlada, da indústria da beleza plástica, o que acarreta uma redução do sentimento de culpa e promove, portanto, uma satisfação ‘legítima’ (MARCUSE, 1973, pp. 63-64).”

            “A libertação da natureza é a recuperação das forças estimulantes da vida na natureza, as qualidades estéticas de ordem sensual que são estranhas a uma vida desperdiçada em intermináveis desempenhos competitivos; elas sugerem novas qualidades de liberdade. […] A natureza, quando não é deixada a si mesma e protegida como ‘reserva’, é tratada de um modo agressivamente científico; existe para ser dominada; é uma matéria livre de valor, um material. Esta noção de natureza é um a priori histórico, pertinente a uma forma específica de sociedade (MARCUSE, 1973, pp. 64-65).”

[vii] Ao contexto da civilização luso-brasileira, a primeira e talvez única  obra de envergadura a pensar o futuro é a História do Futuro, do jesuíta Pe. Antônio Vieira (Lisboa, 1608-Salvador,1697), que, nas palavras do Organizador da obra, fora “aprovada pelos censores e com licenças do Santo Ofício e do Paço veio a lume, em Lisboa, em 1718, publicada pela oficina de Antonio Pedrozo Galram, a obra do Pe. Antônio Vieira História do futuro: livro anteprimeiro. Prolegômenos a toda história do futuro, em que se declara o fim e se provam os fundamentos dela. Matéria, verdade e utilidade da história do futuro (VIEIRA, 2005, p. 19).” Vieira, que, segundo Fernando Pessoa, é “imperador da língua portuguesa”, antecipara a história do futuro nos quatro volumes de A Chave dos Profetas (Clavis Prophetarum), (VIEIRA, Loyola, 2014). Em História do Futuro há uma projeção do sebastianismo e do V Império português, calcado na interpretação dos livros proféticos, subjacente à tese: “Nenhuma coisa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que as notícias dos tempos e sucessos futuros.” E o teto ideológico da Inquisição, cujos braços findaram por atingir Vieira, o mantendo prisioneiro entre 1665 e 1667, após, absolvido pelo papa Clemente X. E o futuro se abriu.  

[viii] Os Princípios da Filosofia do Futuro foram antecedidos de dois textos, intitulados “Necessidade de uma reforma da Filosofia” e “Teses provisórias para a reforma da Filosofia”, de 1842 (FEUERBACH, 2002, pp. 13-18 e pp. 19-35, respectivamente).

[ix] Não convém parafrasear Nietzsche.

[x] O termo militar front saltou para a literatura com o romance Im Westen nichts Neues (Nada de novo no front), do veterano da Primeira Guerra Mundial, Erich Maria Remarque, publicado em dezembro de 1928. Em verdade, o romance de Remarque se contrapunha a outro anterior, In Stalhelgemittern (A tempestade de aço), de Ernst Jünger, de 1922, – um elogio da guerra. O de Remarque intencionava desencorajar os jovens de participarem de guerras.  

[xi] As “Teses ad Feuerbach”, escritas durante a primavera de 1845, nunca foram desenvolvidas de modo a transformar-se em livro, como pretendido por Marx, publicadas postumamente como adendo a Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemão, de Engels, em 1888. Eis duas traduções da “11ª tese: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, diferentemente, cabe transformá-lo (MARX, 1978, p. 53).” Outra, “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, o que importa é transformá-lo (MARX, 2007, p. 535).” A propósito, conferir a fina análise, desmonte e assimilação das Teses à filosofia da esperança, In BLOCH, “19. A transformação do mundo ou as Onze teses de Marx sobre Feuerbach (BLOCH, 2005, I, 19, pp. 246-282).”

[xii] “[…] a virada do século coincidiu com a transição do ‘princípio esperança’ para o ‘princípio responsabilidade’. […] O ‘princípio responsabilidade’ surgiu quando o futuro ficou turvo (TRAVERSO, 2018, p. 38).” – Mais turvo.

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