Memória de um capitão de milícias

Imagem: Palo Cech
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por FLÁVIO AGUIAR*

O giro d’Itália do Usurpador do Palácio do Planalto

De todas as gafes acumuladas do Usurpador do Palácio do Planalto na Europa – de sua solidão auto-satisfeita à menção à Torre de Pizza – nenhum me impressionou tanto quanto a do pisão no pé de Angela Merkel.

A frase dela – “só podia ser você” – foi um tapa que ele não ouviu; ou se ouviu, não escutou; se escutou, não avaliou. Porque, na sequência, veio a gafe maior.

Disse ele, de volta ao Brasil, que ficou impressionado com o bom humor de Merkel, e que gostaria de ter dançado com ela. Foi assim que ele interpretou o episódio do pisão no pé da projetada Dulcineia.

Na hora lembrei-me do romance de Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias, publicado em 1852.

No romance, o protagonista, que alguns críticos consideram um pícaro, é filho de um meirinho, Leonardo Pataca, e de uma saloia, habitante dos arredores de Lisboa, Maria da Hortaliça, que vêm para o Rio de Janeiro, “no tempo do Rei”.

O namoro destes dois começou no navio em que vinham de Portugal para o Brasil, quando o Pataca deu um pisão no pé da Hortaliça. No romance, consta que o pisão foi intencional. Em Roma, teria sido fruto do acaso, pois o Usurpador caminhava de costas para a pisada. Melhor: Freud explica o ato falho que não falha. A Merkel transformou o episódio banal e desajeitado no que se diz em alemão ser um Schicksal, um destino: “só podia ser você”.

Desconfio que foi esta frase que despertou no Usurpador o instinto dançarino. Se de um lado, ela aponta o desajeito, de outro, ela abre a interpretação para o jeito do desajeitado. No romance, não deu outra: ao pisar o pé da Hortaliça, o Pataca deu início a uma cadeia de acontecimentos que, entre traições, desavenças, perseguições, infortúnios, alegrias e muito favor, levaria a um final feliz: o casamento de seu filho, o Leonardinho, o sargento de milícias, com a linda Luizinha.

O mesmo deve ter passado pela mente do infeliz-feliz Usurpador no encontro em Roma. Depois de tanto infortúnio, desconsolo, solidão, rejeição, desprezo sofrido, ele encontrou um pé de apoio, que lhe valeu meia hora de conversa e uma fantasia dançarina ulterior. Melhor, impossível. Ri melhor quem dança por último.

As palavras são um peso na vida das pessoas. Pois o fato é que o Usurpador dançou em Roma. Às custas dos impostos pagos pelo povo brasileiro, mas quem liga? Nada fez de útil por lá, exceto estar ausente do país, quando a gente respira, embora sinta a vergonha que ele é incapaz de sentir. Recebeu o título de cidadão honorário do neo-fascismo italiano. Honrou os pracinhas ausentes no cemitério de Pistóia, na companhia do líder dos neo-fascistas italianos. Honrou-os, cuspindo na sua memória, untando-os, embora ausentes, com seu nojo pela democracia. Comeu salame na rua, porque não pode entrar em restaurantes.

Diante de tudo isto, o que é um pisão no pé alheio? Uma esperança, ainda mais no pé da Grande Dama da União Europeia que ainda reconheceu, insisto: “só podia ser você”. Convenhamos: para um candidato a Romeu infeliz e deserdado da sorte, Julieta nenhuma faria melhor bem.

Eu daria um dedo – nem precisaria ser pisado – para saber o que a Merkel está pensando disso tudo. Além de, provavelmente, passar arnica no dedão do pé.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES