Por FLORA SÜSSEKIND*
Trecho selecionado pela autora do livro Coros, contrários, massa
“Eu tento falar da metáfora, dizer alguma coisa apropriada ou literal sobre ela, tratá-la como tema, mas ela, por assim dizer, me obriga a – mais metaforicamente – falar dela do seu próprio jeito” (Jacques Derrida, versão livre de um trecho de Le retrait de la métaphore).
Se há alguma figuração exemplar para a trama brasileira do começo dos anos 2020, seu modelo recorrente – “seja ele um animal, seja ele toda uma ação”[1] – parece emergir do parasitismo. Do campo do pensamento social (Marcos Nobre), da economia (Márcio Pochmann), da ciência política (Luiz Eduardo Soares) ao da arte (Nuno Ramos) e da literatura (Silviano Santiago), em algum momento do governo Bolsonaro, evocaram-se – como imagens espelhadas e organizacionais possíveis para descrevê-lo – a figura do parasita, da relação biológica entre comensal e hospedeiro.
Este texto procura examinar sinteticamente a abrangência e as correspondências que emprestam a esse horizonte imagético papel fundamental na visualização e na compreensão da hora histórica atual. Diante de quadro de “violência, real e simbólica” como o vivido desde a campanha presidencial de 2014 e o impeachment de Dilma Rousseff, e intensificado com a posse de Bolsonaro, “o inominável, o impossível de exprimir” foi “aos poucos reivindicando seus direitos”, como sublinhou Nuno Ramos na Revista Piauí de agosto de 2020.
Nesse sentido, a transposição especulativo-analógica da observação para o campo do parasitismo parece ter oferecido uma via representacional de acesso a esse inexprimível. Por meio desse vínculo imagético, evidenciam-se tanto a densidade e o alcance da malha autoritária encravada nas instituições e na gestão do país, quanto à mecânica de funcionamento dos coros teleguiados de massa (insuflados digitalmente) e das apropriações político-discursivas (com inversão ideológica) — nos dois casos, expressões características da tecnopolítica neofascista.
Contígua e antagônica a esse parasitismo expansivo, impõe- -se, simultaneamente, em especial nos anos pós-impeachment, a percepção de uma série de autodramatizações do processo artístico e literário enquanto geminação, que parecem circunstanciar e confrontar, no campo cultural, o modelo parasitário. E isso por meio de um exercício repetido, e vário, de fabulação duplicada, e pela exposição – nem sempre particularmente estridente, mas criticamente eficaz – de formas distintas de composição por acoplamento.
Entre esses exercícios, o foco irá, inicialmente, para a anatomia (em formato fabular) da trama parasitária, realizada por Silviano Santiago em 2020. Procuram-se compreender, em seguida, as inquietações e recusas que os aproximam, e os diferentes processos artísticos que orientam e distinguem essas formas geminadas, fabulações-em-dobra e contracoralidades enlaçadas à experiência histórica recente do país.
Observam-se, nesse sentido, alguns usos distintos da ventriloquização, como em O que ela sussurra, de Noemi Jaffe, Lígia, de Nuno Ramos, Vaga carne, de Grace Passô. Além de operações de sobreposição imagético-polifônicas — como a conjugação entre moteto[3] e motim, Lima Barreto e as manifestações de 2013, no Moteto para Lima Barreto, de André Vallias, o projeto Odiolândia (2017–2018), de Giselle Beiguelman, a refiguração do uso glauberiano da superposição e da voz over no tríptico[4] Asfixia/Mercadoria/O Comum, de Bia Lessa.
Como terceira trilha de observação, chama-se a atenção para alguns trabalhos que ampliam, também, o seu campo de realização, intensificando, como parte ativa da obra, o rumor do extraquadro. É o que explicita diretamente Ricardo Aleixo em sua poesia recente e o que evidenciam tantos dos trabalhos com dimensão política mais escancarada de Nuno Ramos nos últimos anos — de Cassandra e A gente se vê por aqui a Aos vivos, Dito e feito e Perdido. E é o que realiza Lenora de Barros, em interlocução simultânea com as targets de Jasper Johns e as academias de tiro paulistas, reutilizando alvos usados em exposição e vídeo apresentados em 2017.
Antes de consideração mais detida a respeito dessas dinâmicas singulares de composição-em-desdobramento e de antagonização via geminação, cabe voltar, no entanto, a certas relações entre figura e fábula das quais elas parecem emergir. E aos campos analíticos nos quais a imagem do parasita ganha ênfase, exposição e potencial elucidativo para uma sociedade, como a brasileira, que vem se submetendo, na última década, a um violento e acelerado percurso predatório autofágico. Inclusive no que se refere aos meios para compreender a si mesma e construir coletivamente um horizonte potencial de transformação.
Não se pode esquecer que, ainda em 2016, durante o período de apreciação do impeachment pelo Senado, caberia inicialmente a Dilma Rousseff, pouco depois de afastada da presidência, a sugestão de analogia biológica cuja aplicabilidade à circunstância histórica brasileira parece ter se ampliado ainda mais nos anos seguintes. Avaliando a abertura do seu processo de afastamento como o marco inicial de um ataque parasitário às instituições democráticas, a ex-presidente anunciaria: “Não é uma imagem simplesmente. Ela reflete à perfeição o que é um golpe branco, um golpe parlamentar. É o ataque do parasita. Não mata hoje a democracia, mas se continuar, acaba matando”.[5]
Mesmo variada e empregada com graus diversos de abrangência, brutalidade e destruição, a imagem parasitária foi ganhando, de fato, qualidade hermenêutica particular para a inteligibilidade da história recente e da conjuntura do país. Tanto do ponto de vista de uma compreensão tática da máquina totalitária quanto da percepção coletiva de crescente fascistização que afetou instituições, linguagem e comportamentos, e foi se entranhando pela vida de todo dia. Uma figuração que torna particularmente sensível o mal-estar presente, o desencontro entre experiência histórica e uma fabulação política invasiva e pautada por fortíssima anacronia totalitária, com atribuição de sobrevida para nexos e agentes autoritários regressivos — no entanto insaciáveis e manifestamente indiferentes à agonia do corpo social que lhes serve de hospedeiro.
Ao tratar do “novo radicalismo de direita”, em 1967, Theodor W. Adorno observaria a frequência com que “convicções e ideologias” ressurgem “justamente quando elas não são mais de fato substanciais devido à situação objetiva”. Seria nesse momento, sublinharia ele, que elas assumem “seu caráter demoníaco, seu caráter verdadeiramente destrutivo”.[6] A análise de Marcos Nobre, pesquisador do Cebrap, do contexto brasileiro em março de 2020, definindo Jair Bolsonaro como “basicamente um parasita político”, se encaminharia, de certo modo, em sentido semelhante.
Em O vírus e o parasita, texto publicado no jornal Folha de S. Paulo,[7] Marcos Nobre avaliaria, sob o impacto da expansão da pandemia de Covid-19, a gestão iniciada no Brasil em 2019. Ele a define como uma conjugação entre, de um lado, “incompetência e desinteresse por governar” (os serviços públicos funcionando apesar do governo) e, de outro lado, uma “lógica destrutiva e destruidora”, uma estratégia de desmonte (por dentro) das políticas públicas e de “toda a ordem institucional construída na luta contra a ditadura de 1964 e no longo trabalho de elaboração e implementação da Constituição de 1988 ao longo de três décadas”.[8]
A estratégia desintegradora abrigaria, ao mesmo tempo, um projeto de poder de longa duração, incluindo uma sonhada tentativa de construção de novo regime autoritário concebido como versão ressurreta da ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985. Marcos Nobre registra, nessa perspectiva, o aspecto estratégico desse parasitismo múltiplo e de sua capilaridade no governo e no projeto bolsonarista. Passando do exercício por delegação da presidência, da renomeação esvaziada de programas e projetos ligados a outras gestões, à deletéria ocupação (por militares deslocados de função e ativistas de direita) de estruturas organizacionais estratégicas, que se veem reduzidas a assistir, assim, à própria dissolução.
A observação dos diferentes campos analíticos nos quais, com variações de ênfase, se reativaria a imagem parasitária, no Brasil dos anos 2020, indica a sua incidência e o caráter esclarecedor da retomada dessa analogia biológica. Lembrando, para ficar em exemplificação restrita, que essa imagem cumpriu papel crucial na análise do Estado, e da separação entre governo e corpo social por Karl Marx,[9] no estudo do imperialismo e da acumulação do capital empreendido por Rosa Luxemburgo,[10] assim como, na virada do século XIX para o XX, no exame — vide Manoel Bomfim[11] – das relações entre colônias e metrópoles e de seus efeitos e desdobramentos históricos no Brasil e na América Latina. Registros do forte lastro dessa analogia ao parasitismo no campo das ciências sociais, trata-se, nos três casos, de referências igualmente relevantes para a compreensão de sua reatualização no quadro contemporâneo.
Depois da crise financeira de 2008, reflexões como a do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em Capitalismo parasitário, retornariam, em escala mundial, a essa imagem, sublinhando, mais uma vez, que “a força do capitalismo está na extraordinária engenhosidade com que busca e descobre novas espécies hospedeiras” e “no oportunismo e na rapidez, dignos de um vírus, com que se adapta às idiossincrasias de seus novos pastos”.[12] A busca contemporânea, no Brasil, de uma figura-síntese, capaz de funcionar como imagem e resumo fabular para um contexto político-econômico ultraliberal e com índole abertamente neofascista, sugeriria, igualmente, a diferentes vocabulários disciplinares a reincidência dessa inflexão biológica.
Ao lado da avaliação de Marcos Nobre, quanto à gestão governamental, podemos lembrar, então, nesse sentido, de artigo de Márcio Pochmann, no qual é reforçado, do ponto de vista da economia, diagnóstico semelhante. O artigo é intitulado Brasil, vitrine do rentismo parasitário e foi publicado no site Outras Palavras, em 16 de novembro de 2021.
O ponto de partida, nesse caso, é o fato de, com o empobrecimento do país e a decomposição do mundo do trabalho, “a vida de milhões” ter sido “precarizada enquanto o número de bilionários mais que dobrou”. Incapazes de “gerar riqueza nova”, essas fortunas seriam infladas por meio da financeirização de riqueza herdada e “de fraudes e da pilhagem orçamentária do Estado”. Daí o aparelhamento do setor estatal, comenta Pochmann, favorecendo grupos dominantes e desviando o fundo público em sua direção por meio de “reformas trabalhistas e previdenciárias” e de “emendas obrigatórias e expropriação de funcionários públicos”, entre outras “modalidades do exercício da pilhagem”.[13]
No âmbito do imaginário e da prática cultural, comentários relevantes de Nuno Ramos, Luiz Eduardo Soares e Rodrigo Guimarães Nunes ressaltariam, respectivamente, nessa ascensão ao poder da ultradireita brasileira, a dominância de modos (parasitários) de atuação por inversão, expansão mimética e trollagem.
Em artigo publicado em 21 de janeiro de 2020, no jornal Folha de S. Paulo,[14] e motivado pelo afastamento do dramaturgo e encenador Roberto Alvim do cargo de secretário de cultura do governo Bolsonaro, Rodrigo Nunes trataria, especificamente, da trollagem.[15] Descreve a tática ultradireitista usual (copiada da alt-right[16] norte-americana) para conquistar engajamento massivo – pautas controversas e interações agressivas. Mas com contraparte obrigatória: certa “indistinção entre seriedade e brincadeira”.[17] Alvim perderia o cargo, avalia Nunes, exatamente pela ineficácia no uso dessa ambiguidade tática em personificação demasiado literal de Joseph Goebbels. O que transformaria uma provocação (com texto, cenário e figurino cuidadosamente selecionados) em exposição paroxística do substrato nazista da ultradireita brasileira.
Em 3 de maio de 2020, também na Folha de S. Paulo, Nuno Ramos voltaria a tematizar essas estratégias em O baile da Ilha Fiscal. O título do artigo remete diretamente à festa de aniversário de seu autor, realizada às vésperas do isolamento sanitário. Aponta, ao mesmo tempo, porém, pela referência ao baile que antecedeu a queda da monarquia, para um outro final — o da Nova República, em agonia terminal desde 2016. Como explicaria Nuno: “Há um patrimônio unificado da Nova República, de Itamar a Dilma, que estamos passivamente deixando rifar, já que ninguém reivindica em sua totalidade”. Lista, assinala Nuno, listando, em seguida, parte das conquistas sociais construídas nas três décadas pós-ditadura civil-militar: “o SUS, a universalização do ensino, a estabilização da moeda, o Bolsa Família, o acesso de etnias minoritárias ao Ensino Superior, a potencialização do Sistema S, a demarcação de terras indígenas”.[18]
É, pois, de modo lutuoso que ele se volta aí para a dimensão destrutiva do bolsonarismo e para a detecção de aspectos característicos de sua atuação: a estridência, o repertório reduzido e uma “potência de agressão disfuncional” – que anuncia e adia, constantemente, ameaças de ruptura mais amplas da ordem democrática. Se a máquina discursiva bolsonarista segue nessa direção “pelo revés, pelo ralo, pelo incêndio, pelo tornar pior e mais violento”, por outro lado, o caráter especular e repetitivo desses avessos sugeriria impotência constitutiva. “Pois a eles basta inverter”, observa Nuno, “vivem de um parasitismo por inversão, mas ainda simétrico, sem criação nenhuma”.[19]
Luiz Eduardo Soares, em Dentro da noite feroz, livro publicado em setembro de 2020, também chamaria a atenção para essa “esterilização por inversão especular”,[20] para o fato de o sentido agregado aos objetos apropriados pelo bolsonarismo limitar-se à “imagem invertida do original”. E de essa “paupérrima estratégia”, que se oferece como estética peculiar, se esforçar no sentido de restringir e obstruir, com esse mimetismo, “o espaço do conhecimento, da argumentação crítica e da criação”.[21]
Como observou Victor Klemperer, em LTI: a linguagem no Terceiro Reich, a respeito da pobreza intencional na apropriação do alemão pelo jargão nazista e dos usos da linguagem em contexto totalitário, trata-se essencialmente de operar trocas no sentido original de certas expressões (fazendo-as funcionar com sentido novo, readaptadas ideologicamente), e de simplificar ao máximo a linguagem cotidiana em slogans de fácil repetição (como na adaptação de divisa nazista contida em slogans como: “Brasil acima de todos e Deus acima de tudo” etc.), mantida, nessas operações, a nítida disposição de desestimular o pensamento.
Assim, as expressões, os conceitos, e práticas culturais das mais diversas são submetidos a esvaziamento e desvios semânticos sistemáticos – como acontece, no Brasil do governo Bolsonaro, com o aviltamento da tematização da escravidão, tratada como fator positivo por Sérgio Camargo (ex-presidente da Fundação Palmares); com a discussão sobre a violência contra a mulher (tratando-se, criminosamente, o estupro como quase dádiva e as feministas como “cadelas”); com a noção de heroísmo, combinada ao louvor à intolerância, como nos elogios a torturadores; ou, ainda, à maneira do que faz a ultradireita norte-americana com o ideário ligado à defesa da liberdade de expressão, também no Brasil ele se viu dessemantizado e banalizado como artifício para expansões autoritárias.
Se é uma incapacidade estrutural de produção autônoma de projetos ou conteúdos próprios o que, como enfatiza Luiz Eduardo Soares, direciona o bolsonarismo para a máxima disseminação de instrumentos que permitam a ele “parasitar para alimentar-se”, esse oportunismo, propagado em escala massiva, ganharia, por isso mesmo, força comunicacional e política, sedimentando jargão[22] próprio recortado ideologicamente do léxico de uso comum. “Surgem novas palavras, palavras antigas ganham um sentido especial, há rearranjos com palavras novas que logo se consolidam como estereótipos”,[23] poderíamos dizer também sobre o Brasil bolsonarista via Victor Klemperer.
A tópica parasitária que emerge nas observações aqui mencionadas (sobre a atuação institucional, a política econômica neoliberal e as estratégias discursivas da extrema-direita) não é evidentemente o eixo único ou decisivo dessas análises, que seguem trama reflexiva própria. Não é de estranhar, no entanto, que a referência ao parasitismo surja nos mais diversos campos de observação.
Entre as manifestações de ódio compiladas por Giselle Beiguelman, em Odiolândia, por exemplo, não faltam referências a vermes e parasitas. Em A ocupação, romance de Julian Fuks – desde a epígrafe de Mia Couto —, irrompe a máscara do hospedeiro (mas ampliando-se o seu uso): “[…] Queria ser conquistado, ocupado da cabeça aos pés, a ponto de se esquecer de quem era antes da invasão”. Epígrafe que funciona como elucidação prévia de poética que seria esboçada no romance: “deixar que ocupem a minha escrita: uma literatura ocupada é o que posso fazer neste momento”. Já num romance como O que ela sussurra, de Noemi Jaffe, contrastando o passado (“cobertor rosa que não serve para cobrir nossos corpos”) às memórias que nele se “contorcem”, a protagonista Nadejda Mandelstam toma inesperada e cruamente para si e para o marido a analogia: “galhos semimortos presos a raízes parasitas, você e eu”.
Quando se adota o parasitismo como eixo imagético há algo de consensual na percepção do oportunismo e da ação predatória que o caracterizam, um consenso que acompanha a expansão semântica da expressão para além da parasitologia. Não é habitual revisitar – de dentro do campo biológico – a variedade de organismos comensais ou provedores e esquadrinhar os enredos biológicos por meio dos quais interagem. Privilegiamos, muitas vezes, nessa associação, mesmo ao desmontá-la, a tipificação figural em lugar das minúcias da fabulação, o que incluiria necessariamente os desdobramentos cruentos e as consequências da ação parasitária sobre o organismo parasitado.
Figura, fábula e absorção
É o que se dá, ao contrário, em Ovos de marimbondo, uma fábula, de Silviano Santiago,[24] texto divulgado em julho de 2020, exercício analógico com dimensões figural e fabular calcadas em texto do biólogo Stephen Jay Gould e em certas curiosidades científicas sobre o processo de gestação dos marimbondos e a crueldade no mundo animal.
Com esses recortes de fonte científica confiável, parece, à primeira vista, reduzir-se quase ao grau zero, aí, a ficcionalização ou a referência extrafisiológica ao parasitismo. Uma pseudorredução de abrangência que funcionará, no entanto, nesse caso, em sentido oposto: como uma espécie de thriller orientado pela exposição dos comportamentos reativos das presas (inclusive tentativas de fuga) e pela descrição das transformações por que passam os organismos quando tomados por comensais oportunistas.
Na série de análises de conjuntura que evocam, no Brasil dos anos 2020, o parasitismo, caberia a Ovos de marimbondo, uma fábula capturar literariamente não apenas a recorrência desse diagnóstico, mas explicitar, ao mesmo tempo, os efeitos de certa concordância estratégica entre figura e trama e de uma hipótese de dobra fabular nele surdamente inscrita.
Em comentários sobre o parasitismo, como os aqui ressaltados, se sobressai idêntica escolha de análogo biológico para a trama brasileira, o seu desenvolvimento fabular seguiria, no entanto, do ponto de vista disciplinar, um percurso analítico propositadamente restrito. A figura relacional é biológica, mas a trama que dela se desenvolve é sociopolítica, econômica ou comunicacional. Os fios fisiológicos do enredo primário costumam se manter entre parênteses. Pois não é de fato ele o foco de apreensão. E sim a malha parasitária com ação predatória sobre a vida social. A suposição é, evidentemente, que caberá ao leitor o desdobramento imaginário dos fios dessa trama dupla (biológica e sociopolítica).
A estratégia adotada por Silviano Santiago, em sua fábula, será criar, ao contrário, o efeito de uma correspondência rigorosa entre figura e fabulação, mantendo-as intencionalmente no campo da história natural. Como se o relato exemplar estivesse absorto em seu próprio universo de referência – a crueldade animal – e, fábula meio ao avesso da fábula, sequer se preocupasse em exercitar às claras sua exemplaridade.
A absorção, no entanto, confere aí aos parasitas a função do “belo animal” aristotélico, do qual a trama, sugere a Poética, deve tomar emprestados encadeamento e proporções. A estratégia da concordância entre imagem e trama e a autoinserção no cenário biológico parecem, desse modo, encerrar Ovos de marimbondo num quase tableau à parte. E se isso, adia projeções pessoais ou coletivas por parte do leitor, intensifica, por outro lado, seu engajamento com um enredo a cujos desdobramentos lhe é permitido assistir meio de fora do quadro.
A opção pelo contraste entre um silêncio aparente sobre a trama brasileira contemporânea (desmentido, ironicamente, pela indicação categorial da forma breve nele empregada) e a descrição minuciosa de dolorosos processos fisiológicos (extraída de Stephen Jay Gould e das ciências naturais) produziria, assim, um (micro)romance cruento de formação, focado na interação de marimbondos e hospedeiros. O caráter de exemplaridade do modelo discursivo utilizado (o da história contada via animais), se aparentemente silencioso, permite, entretanto, ao texto, mesmo mantida estrita correspondência entre figura e fabulação, invadir, por via indireta, “simultaneamente a arte e a realidade”.[25]
Não se pode esquecer que, como Ovos de marimbondo, a peça O rinoceronte, de Ionesco, é, ela também, uma fábula. A escala diminuta dos insetos e larvas, personagens de Silviano, não retira, em absoluto, seus atributos relacionais ou sua abrangência elucidativa. Expõem também implacavelmente, mas mais silenciosos do que os rinocerontes, a expansão totalitária.
A fábula parece olhar e não olhar para o leitor. Apesar de um aceno aqui (“só o ser humano é capaz de compreendê-la em seu próprio interesse e benefício”), outro ali (“Na década que se inicia, o futuro hospedeiro está querendo imitar o estratagema de fuga da lagarta da família das Hapalia, mesmo sabendo que tanto a imitação quanto a fuga são também vãs”), mantém-se certa distância entre o leitor e o relato-tableau. Definido o caráter “fatal” da trama, mantém-se, por outro lado, certa indeterminação: “não tem fecho de ouro nem moral”. E se não há fuga, como adverte a história da lagarta, persiste o enfrentamento entre, “de um lado, a resistência (da presa) e, do outro, a eficiência (parasitária)”.
Um enfrentamento que aponta tanto para a lição de anatomia de Silviano (recortada de Gould e vazada por extracampo nomeado de a “década que se inicia”), quanto para outras estruturas geminadas e fabulações em dobra cujo rastro crítico se distingue na arte e na literatura produzidas no Brasil pós- -impeachment. Em especial enquanto zonas focais a partir das quais, em meio à estridência, se dimensiona – em confronto continuado com ela – a experiência do presente.
A reificação coralizada e a geminação crítica
A consideração desse conjunto de experimentos ativos de acoplamento, na conjuntura brasileira contemporânea, como maneira particular de compreensão e formalização artística, passa necessariamente pela avaliação não apenas da singularidade de cada um desses métodos, das similaridades (ou não) de procedimentos, mas também da circunstância histórica em que isso se dá, de certa simultaneidade de manifestação. Isto é: se vinculadas a trajetórias artísticas e literárias particulares, essas sobreposições ativas, resistentes à fusão, ao fechamento, correspondem, também, de modos diversos, à politização impositiva da hora atual e configuram antagonizações direcionadas a um contexto agressivamente anti-intelectual e hostil a quaisquer práticas culturais com potencial reflexivo ou mobilizador.
Pois assistimos, nos últimos anos, não apenas a um esforço político no sentido da restrição de atividades e de verbas para as áreas de cultura, pesquisa, patrimônio, mas também a apropriações degradadas, quando possível, da experiência artística. A ela contrapondo, para ficar em exemplos conhecidos, ritualizações kitsch da prática da performance (como as da ativista de extrema direita Sara Winter, por exemplo), ideologizações agressivas do humor (reapresentado como bullying), dissolução de usos dialógicos da linguagem (reduzida ao monológico do sermão religioso ou à repetição automática de refrões, cânticos, hashtags e slogans), disputas no campo das manifestações populares (como no uso agressivo de música sertaneja em camarotes na Sapucaí, em 2022, interferindo na escuta das escolas de samba cariocas).
Essas apropriações culturais propositadamente degradadas mantêm-se no âmbito da mimesis por inversão ou por trollagem. Se há processos de apropriação ou reduplicação em experiências de geminação, nesses casos, a referência (artística, política) é, ao contrário, matéria que interfere, que tem voz. E que não se dissolve em padronização tonal ou homogeneizações formais. A distinção dos seus componentes – acoplados, mas não amalgamados – convidando, como se observará, à teatralização interna dessas hipóteses de sobreposição figural e/ou fabular.
O que há é uma polifabulação, o acoplamento (não a solidificação da colagem) de elementos definidos, pré-conhecidos, de vária extração, a outros materiais ou ambiências, segundo proposições e procedimentos bem específicos. O que não é dizer muito. Mas a articulação – posta a nu – desses elementos, dessas estruturas, e da proposição implícita ou inscrita explicitamente na obra certamente os distingue. Lembre-se o jogo entre trama biológica superexposta e a trama quase invisível da “década que começa” no formato fábula brevíssima, e desenfática, empregado por Silviano Santiago.
Assim como, nessas outras geminações, ao lado de eventuais evidências pessoais (uma foto de infância de Ricardo Aleixo em Extraquadro, registros em vídeo do dia da morte da mãe de Bia Lessa em meio aos segmentos fílmicos de Cartas ao mundo) e de recortes artísticos bem particulares (de obras de Glauber Rocha, Óssip e Nadejda Mandelstam, Marcel Proust, Lima Barreto, Jasper Johns, Tom Jobim, Chico Buarque), há uma forte presença do mundo, e o rastro direto, intencional, frequentemente desconfortável, do cotidiano político recente (os clubes de tiro, a bala alojada no corpo, as manifestações de 2013, a mídia corporativa, a luta por moradia, o mercado de arte, o discurso de ódio nas redes sociais). E isso em modos particulares de articulação: imagens e sons sobrepostos por um programa informático, no caso do moteto politextual de Vallias; a escuta ao vivo, via fone de ouvido, da programação da TV aberta, reproduzida cenicamente com mínima decalagem, em diversas performances planejadas por Nuno Ramos – como em A gente se vê por aqui (na qual dois performers reproduziam, na íntegra, a programação de 24 horas da Globo); o contraste entre, de um lado, material pré-gravado, fílmico, e, de outro, performances ao vivo e blocos de ocupação da Avenida Paulista em Cartas ao mundo, de Bia Lessa; a montagem em bruto de falas violentas e intolerância verbal de toda ordem (contra a Cracolândia, contra Marielle Franco e contra os sem-teto) realizada como amostragem crítica por Giselle Beiguelman.
Não é apenas das apropriações com intuito de rebaixamento dos referentes que se diferenciam essas geminações nas quais nada se amalgama plenamente ou cria ordem unida. O oposto do que se dá na obrigatória coesão ideológico-funcional de certas coralidades regressivas construídas por via de aplicativos e redes sociais que operam, por sua vez, no sentido da reificação, do idêntico, e que lucram com o uníssono da adesão, da zoação e do bullying, alimentando e se alimentando, parasitariamente da máquina digital neofascista.
Não à toa, aliás, a denominação “A Besta” adotada pela Liga de Matteo Salvini,[26] da extrema direita italiana, para o dispositivo de monitoramento (em tempo real) de conteúdos digitais e de reencaminhamento, em seguida, dos mais populares como slogans e campanhas virtuais cujos efeitos devem ser automática adesão e redistribuição em massa por meio de coros parasitários digitais. Máquina política semelhante, e de igualmente ampla ramificação via redes sociais, tem sido crucial, no Brasil, na propagação de conteúdos antidemocráticos de todo tipo, por meio dos quais se sustenta apoio cego inclusive à perda de direitos trabalhistas e de conquistas previdenciárias.
Em direção oposta, nos experimentos calculados de acoplamento, não há, em síntese, entre eles, especificidade de meio, método comum de composição, unificação de procedimento ou coros uníssonos. Mesmo quando assumem forma coral, nela se sobrepõem diferentes configurações. Se há convergência é pelo fato de esses experimentos trabalharem todos eles com meios específicos particulares. Não meios impostos sistemicamente pelo campo artístico-literário, mas meios que se impõem e são configurados, ao contrário, pelos próprios trabalhos ao longo de sua realização. E pelo fato de haver – e não apenas no livro de Ricardo Aleixo aqui mencionado – extraquadros ativos que neles se oferecem à observação e à interação com os demais elementos que os constituem.
A conjuntura de fascistização, pandemia e mortes imperdoáveis aos milhares, de militarização, desmonte institucional, de partidos-algoritmos e palavras de ordem e ameaças midiaticamente espetacularizadas, de fato, parece impor parasitas e bestas como padrões imagético-fabulares. Ao mesmo tempo, no entanto, foi possível a formulação de contrapadrões figurais e fabulares, que autoexpõem sua dinâmica de geminação e expõem esse contexto, anexado, por vezes, como matéria bruta. Como os pedaços de locução dos âncoras do Jornal Nacional, remontados por Nuno Ramos em Lígia, como os alvos jogados fora pelos atiradores e clubes de tiro e recolhidos por Lenora de Barros, como a bala que habita silenciosamente o corpo em Vaga carne, de Grace Passô.
Os alvos
Em 30 de julho de 2017, poucos meses antes da abertura, em novembro do mesmo ano, da exposição Pisa na paúra, de Lenora de Barros, na Galeria Milan, em São Paulo, uma reportagem de Renata Mariz, com o título Número de brasileiros que se tornam atiradores para obter licença explode no país registrava: “Nunca o Exército concedeu tantas licenças para pessoas físicas terem acesso à arma de fogo. Dados levantados pelo órgão a pedido de O globo mostram um boom inédito a partir de 2016, quando foram emitidas 20.575 autorizações, 185% a mais que os 7.215 do ano anterior. Com demanda recorde, a tendência é de alta. Somente em 2017, 14.024 cidadãos já obtiveram o aval, média de 2.033 por mês ou 66 por dia”.[27]
A matéria oferecia ainda uma perspectiva de comparação, tendo em vista dados de 2005 a 2017 segundo os quais “o número de pessoas com a autorização válida subiu 395%”, nesse período, passando de “14.865 para 73.615”. Cresceriam também “entidades e clubes de tiro pelo país”, popularizando-se essa modalidade desportiva, assim como a compra, a posse e o porte de armas, assegurados aos seus praticantes e associados, inclusive em meio a políticas de desarmamento.
Foi nesse contexto que a artista começou a realizar experiências com exemplares gastos e descartados de alvos utilizados por academias de tiro, recolhidos por ela. À época da exposição, Lenora de Barros comentaria a respeito de seu interesse especial por “alvos usados” devido à carga adicional de violência que, a seu ver, estaria contida “nessas figuras em decomposição” depois da quantidade de tiros recebidos nos treinos. Ainda mais pelo fato de se tratar, nesses casos, de figuras-alvos, de “corpos que nunca viveram” e que, no entanto, “morreram de forma violenta”.
Outro elemento curioso nessas figuras-alvos, também determinante para sua escolha como matéria para experimentos pela artista, é o fato de as bocas (vazadas pelos tiros) funcionarem aí como focos centrais dos atiradores, o que remete à vasta série de bocas e línguas que constituem, enquanto lugares de produção da linguagem, tópicos imagéticos fundamentais no trabalho de Lenora de Barros. As bocas, lugares focais de direcionamento dos tiros nesses alvos, receberiam refiguração particular numa das seções da exposição Pisa na paúra. Perpassadas por fios estreitos, que atuam como desenhos aéreos na galeria, elas evocam, em “Papo aranha”, tanto as linhas de Fred Sandback, recortando espaços vazios, quanto os métodos policiais de mensuração e decifração da trajetória de balas.
Os alvos seriam elementos fundamentais também em vídeo[28] realizado na mesma época e projetado na exposição da Galeria Milan. Num primeiro momento, são empregados aí como cabeça postiça que recobre o rosto da artista, parada no fundo de uma sala de treinamento, como se à espera da própria execução. O corpo-alvo caminha, então, em direção à câmera, exibindo, a certa altura, a figura viva recoberta pela máscara, para, logo em seguida, ela ser alvejada por tiro certeiro na boca. Nesse momento se recompõe o aspecto habitual do lugar de treino, com vários alvos-cabeças em movimento, o que se mantém até que a máscara-alvo atingida previamente venha ocupar o primeiro plano, tornando visível a sua superfície coberta de marcas de bala.
O caráter impactante do vídeo sem dúvida se amplia num contexto de violência como o brasileiro. Sugere, igualmente, porém, um diálogo estreito com a história da arte moderna, e uma releitura das Targets, de Jasper Johns. Frequentemente vistas sobretudo como iscas para a atenção à fisicalidade da superfície pictórica, e pelo jogo nelas operado entre modos de ver, entre proximidade e distância, visão e tangibilidade, costuma ser esquecida, no entanto, em abordagens críticas dessa série, a dimensão ironicamente cruenta do seu convite à aproximação. Sobretudo nas Targets que contêm pintura e figuras modeladas em gesso, e cujo aspecto tátil parece reforçar uma exigência de proximidade.
Pois, ao se colocarem diante da pintura-alvo, os observadores se veem lançados forçosamente na linha de fogo, atualizando- -se, assim, mesmo que hipoteticamente, uma situação de “exposição e vulnerabilidade”,[29] e a transformação de um lugar de mira em um enquadramento de risco. Como corpo vivo à frente do alvo pictórico, o observador das “pinturas-alvos” de Johns torna-se, desse modo, ele mesmo, o alvo primário.
O fato de, no vídeo, Lenora se posicionar na linha de tiro e aproximar a sua figura compósita de artista-alvo do campo de visão do observador, ao contrário do que acontece nas Targets de Jasper Johns, o coloca de repente não no lugar de alvo, mas na posição igualmente desconfortável de possível atirador, de executor. Endereçando-se abertamente a ele, e em close, o vídeo o introduz na cena, instabiliza o lugar de observação, e o convida, desse modo, como num contracampo imaginário (mas perceptível), a enxergar o quadro de execução da perspectiva do atirador. E, nessa passagem de observador a executor, ele é convidado a reenquadrar, em meio à zona de risco, a resposta ao que vê.
Esse movimento ressalta não só o mal-estar com relação ao lugar de observador ou ao de alvo, mas outras vulnerabilidades também. Pois a exposição ao risco do corpo da artista – em vez da impessoalidade dos alvos bidimensionais – sinaliza, simultaneamente, para outras vítimas potenciais de violência real ou simbólica, acentuadas no país nas últimas décadas – a mulher (contra quem a violência escalou no Brasil) e os trabalhadores da cultura, objeto igualmente preferencial de campanhas cíclicas de ódio e difamação pelos movimentos ultradireitistas. Isso para designar apenas duas possibilidades.
A voz interposta
A exposição do rosto e do corpo de Lenora de Barros sob a máscara-alvo cria, portanto, uma ventriloquização que é responsável, em boa parte, pelo sobressalto que o vídeo Alvos desperta no observador. Em especial no momento exato do tiro, depois de a artista ter se mostrado como presença oculta, recoberta pelo alvo-padrão. Como alguém a ser executado, nós a vimos instalada bem no centro da mira. E sabemos que não há ali apenas uma silhueta. Sabemos quem é o ventríloquo que empresta o seu corpo à cena e torna concreta a violência que sustenta os exercícios armados, os clubes de tiro e a figuração humana dos alvos.
Os exercícios de ventriloquização, em configurações diversas seriam também estruturais em obras como Vaga carne (2016), de Grace Passô, Lígia (2017), de Nuno Ramos, O que ela sussurra (2020), de Noemi Jaffe, entre outras. E aproximam-se do vídeo Alvos não só pelo procedimento adotado, mas também pela exposição de mediação artística bem específica (a não-coincidência de voz e lugar evocando Beckett, a canção de Tom Jobim e Chico Buarque, a história de Nadejda e Ossip Mandelstam) e por uma irrupção mais ou menos direta do extracampo contextual – a bala perdida, oculta no corpo (e as interpelações diretas à plateia), o recorte que expõe a edição do telejornal de maior audiência, a perseverança em tom menor como estratégia de resistência. Distingue-se, no entanto, esse ventriloquismo da tensão enunciativa e das divisões internas da voz que problematizaram a dicção de tantas obras durante a primeira década do período de redemocratização do país.
Pois, naquele momento, as instabilizações da voz e os ventriloquismos, em meio ao projeto de ampliação da cidadania no país (expresso na Constituição de 1988) e à volubilidade lucrativa dos mercados econômicos, pareciam indagar autocriticamente sobre o lugar possível, então, para o intelectual e a produção artística. No começo do século XXI, o contexto é de fim da Nova República, de esgarçamento agônico do pacto social da redemocratização, e de hipertrofia do rentismo e de (desastrosa) tutela militar. Ao qual se acrescentam patente restrição econômica e uma perda potencial de alcance e impacto imediato para a atuação cultural. No contexto contemporâneo, portanto, essas ventriloquizações, para além de procedimento artístico exigente, ganhariam aspecto tático e, como registrou Nuno Ramos sobre os próprios trabalhos, apontariam no sentido da “politização da vida a que, para bem e para mal, o país vem se submetendo”.[30]
Entre os três trabalhos para os quais chamamos a atenção aqui, do ponto de vista da ventriloquização, na peça Vaga carne, de Grace Passô, começa-se por uma cena ocupada exclusiva e inteiramente por uma voz. “No breu, ouve-se a voz”: anuncia de saída a peça, ecoando quase ironicamente o começo muito conhecido de Companhia, de Beckett. Aí se lê: “Uma voz chega a alguém no escuro. Imaginar”.[31]
A primeira ventriloquização é, então, a do espaço cênico por voz acusmática, desmedida, insurrecta, que se projeta voraz no sentido de toda e qualquer matéria: “E vez ou outra, quando percebes que o vidro trincou sem aparente motivo. Ou mesmo a rã que saltou, um dia, em altura incomum. Ou quando a torneira gotejava sem interromper, sem interromper, sem interromper, sem interromper… Vá olhar! Não é de tudo certo, mas é possível que não seja um acontecimento físico da matéria, mas, sim, ela, a matéria, invadida por vozes”.[32]
Pela referência que se quis explícita, já se vê que essa ventriloquização se faz acompanhar de outra, a de princípio de composição não apenas beckettiano, mas que se tornaria fundamental na cena e na literatura contemporâneas — o emprego de voz performativa independente e de alteridades essenciais entre voz e corpo, fonte emissora e locução. Pois Passô parece encenar, simultaneamente, uma flutuação intempestiva da voz por matéria vária, um acoplamento conflituoso (exposto pelos gestos) entre voz e corpo e um metaesquema investigativo sobre os procedimentos que refigura e que conduzem a peça.
Expostos os elementos – a autonomização, o caráter performativo da voz, a não coincidência de ação física e discurso – escolhe-se, como pouso transitório, em Vaga carne, um corpo feminino que parece “inerte”, “sem ação no mundo”. Ocupado pela voz, esta passa a descrevê-lo minuciosamente de dentro, tecendo hipóteses e perguntas sobre sua existência pregressa: “Já nem sei mais como é o corpo desta mulher por fora. Quem é ela? Faz o quê? Está aqui, agora, por quê? Sua coluna parece exausta, dá pra perceber daí? Ela fuma? Ela sempre foi mulher? De que cor ela é?…”.
E segue tentando emprestar movimento a ela, mexendo um dedo, balançando partes do corpo, abrindo e fechando os olhos, ocupando o corpo da mulher com palavras gritadas da plateia: “Vamos ocupar o corpo desta mulher com palavras! Esta mulher aqui é só um microfone, coitada, ela não tem nada a dizer! Gritem palavras, eu boto aqui dentro!”. Não esquecendo que se a versão definitiva de Vaga carne estreia em 2016, sua primeira leitura foi em 2013, no âmbito do projeto Janela de Dramaturgia, em Belo Horizonte, bem no calor da hora das Jornadas de Junho. Difícil não perceber aí nessa voz que oscila entre matéria diversa, nessa fala em fluxo contínuo, que interpela sem descanso – o eco de outras, muitas outras vozes, que ocuparam as ruas, e algo do caráter da demanda febril, da urgência e da indeterminação vividos naqueles dias.
Observe-se o que, nesse contexto, comentaria Grace Passô, em 21 de junho do mesmo ano, sobre a relação entre teatro e insurreição: “Acho que, inclusive fazendo um paralelo com tudo o que tem acontecido no Brasil, a gente vive uma insurreição, uma mobilização humana sem nome. O que existe hoje, com essas manifestações, é um país tentando nomear sentimentos muito urgentes da população. O que as obras de arte fazem é isso também. Não necessariamente nomeiam, mas tentam criar formas para esses sentimentos. Para essa necessidade urgente”.[33]
Os engajamentos materiais intermitentes e as interlocuções sucessivas mantêm a voz em moto-contínuo, inclusive dentro do corpo feminino que a abriga, e no qual descobre um feto em gestação, um pino de cirurgia ortopédica, uma bala jamais extraída: “Parece tão estrangeira quanto eu, aqui, dentro desse corpo. O que faz aqui, projétil? […] Entrei um dia numa arma apontada para uma mulher, quando o projétil explodiu e o corpo dela caiu, eu fugi. Era você a mulher?”.
Com a detecção da bala no corpo, realiza-se incursão determinante do extraquadro no texto, projetando, aí, o cotidiano urbano violento, de balas perdidas e corpos-alvos preferenciais. Um quadro de violência que se ampliaria, durante as manifestações de 2013, com a truculência e o uso desproporcional da força pela polícia militar. E se a menção à bala inativa, absorvida pelo corpo, não terá maior desdobramento imediato na peça, essa descoberta se faz acompanhar, no entanto, de uma espécie de aceleração narrativa.
As interações mais diretas com o público, a incisão autoinfligida ao corpo, os vazios e esquecimentos verbais cada vez mais longos, eventualmente interrompem, todos eles, o fluxo verbal. Vazando-o, assim, à ambiência sonora, ao espaço da cena, e a uma crescente consciência do corpo – “mulher”, “negra”, “aqui” –, que vai ganhando definição e lugar: “Eu já sei quem ela é! Eu já sei! Ela é uma mulher, ela é negra… Espera! Eu já sei! Ela está aqui, hoje, diante de vocês, e ela gostaria de dizer que…”.[34] Todavia se mantém — daí a repetida não-coincidência pronominal (eu/ela) – uma figuração conscientemente cindida, mas acoplada, de corpo e voz.
Em Lígia, de Nuno Ramos, vídeo exibido publicamente pela primeira vez em 31 de agosto de 2017, um ano depois da abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff, também se sobrepõem geminação e desacordo. Pois é uma conjugação entre acoplagem — da canção de 1974 de Tom Jobim e Chico Buarque, e da imagem e da voz dos apresentadores do Jornal Nacional em 2016 –, e desacordo – entre som e imagem, entre dois tempos, entre os dois referentes – o princípio organizador a obra.
Nesse caso, o material inicial de trabalho foram as edições do Jornal Nacional dos dias 16 de março e 31 de agosto de 2016, respectivamente datas do vazamento da conversa de Dilma Rousseff com Lula (sobre a possibilidade de o ex-presidente se tornar Ministro da Casa Civil em seu governo) e da aprovação do impeachment pelo Senado. Sobre a primeira data, há uma anotação no calor da hora, JN, 16.3.2016, depois divulgada pelo artista, que explica dramaturgicamente a escolha dessa edição em especial, para além da significação histórica do vazamento: “Quando Moro divulgou as gravações entre Lula e Dilma, além de tantas outras, o JN tornou-se um prato cheio. Liam ao vivo o pãozinho quente das transcrições que tinham acabado de chegar (as gravações entre Lula e Dilma foram liberadas naquela mesma tarde), mostrando excessiva intimidade, dada a pressa, com a matéria que tinham nas mãos e não no teleprompter […]. Sem perceber, transformaram-se, ao longo da transmissão, em atores e não locutores, num ato falho memorável”.[35]
É o que classifica como ato falho que sugere também o método adotado em Lígia: “Transpondo a fronteira entre narrar e atuar, já não liam – interpretavam, entoavam, faziam mesmo certa mímica facial, sem aquela distância, falsa ou não, que sempre encenam”. A releitura do telejornal de 16 de março pelo vídeo acentuaria, recortando-os, alguns dos gestos que denunciavam a encenação: “As dificuldades de timing, pequenas falhas de áudio, entradas na câmera errada acentuavam isso. Haviam perdido a segurança de sua tribuna e aquele aquário platinado parecia parte integrante da ação que pretendiam narrar de longe”. A exposição involuntária do inegável ativismo da imprensa na defesa e na instauração do impeachment, indicaria, igualmente, a apropriação pelo artista do material audiovisual do dia em que, aprovado o impeachment, as forças de direita conseguem, afinal, a pretendida reorientação política (que não fora obtida eleitoralmente) e a mudança fascistizante de rumo na condução do país.
O trabalho de edição do vídeo, incluindo imagem e som dos telejornais da TV Globo, se deu de modo mais sensível em sua camada sonora, recortando-se algumas sílabas das falas dos apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos para recompor com elas a canção Lígia, que passa a substituir, assim, na voz dos jornalistas, o texto do Jornal Nacional. A sobreposição a ele da canção, em andamento entrecortado (pelo trabalho de edição), evoca, de certo modo, a batida sincopada da bossa nova. Chama a atenção, por outro lado, para o descompasso entre o sonho feliz de modernização do período original da bossa nova (já objeto de lamento tardio no período de composição da canção Lígia) e a exposição agressiva – via telejornal – da destruição de um pacto social de certa amplitude e de um interregno democrático de três décadas.
Colocou-se, assim, no ar, durante um mês, um Jornal Nacional outro, no qual os apresentadores cantam Tom Jobim e Chico Buarque e sinalizam em direção a alguns fins – da Nova República, das políticas de inclusão, do respeito às urnas, nos quais não parece caber, de fato, qualquer lugar para a bossa nova ou para qualquer uma de suas infraepifanias cotidianas. Repetido diariamente o vídeo no horário exato de transmissão do Jornal Nacional, amplia-se – via redefinição de conteúdo – a exposição do inequívoco engajamento ideológico dos esgares e da pseudodramaticidade dos apresentadores. Cantada, por outro lado, pela voz em geral hipertrofiada da TV Globo, Lígia passaria, no trabalho de Nuno, da melancolia pessoal ao luto cívico, ganhando o estatuto de oração fúnebre coletiva, e uma forte dimensão de dissenso em meio ao falso consenso parlamentar e midiático em torno da deposição da presidente eleita e da redução de direitos penosamente conquistados.
Já quando o romance O que ela sussurra, de Noemi Jaffe, é publicado em 2020, o quadro de apropriação política do país pela ultradireita se ampliara, com a eleição de Jair Bolsonaro, a expansão da tutela militar e uma crescente instabilidade das instituições democráticas. É uma dupla ventriloquização que dialoga aí com esse quadro – Nadejda Mandelstam emprestando a voz aos poemas do marido durante 25 anos (antes que sua publicação em livro fosse autorizada na URSS), e a ficcionalização dessa dicção desdobrada que se converte em tema e método narrativo desse romance histórico.
“Uma subversão silenciosa, que de alguma forma foge ao controle do regime, como esses aviões que, voando tão baixo e rápido, escapam aos radares mais poderosos”[36]: o sussurro tático como forma de preservação e divulgação de obras diversas. A repetição, mesmo das formulações mais simples, funcionando como exercício de resistência. Como no episódio apenas parcialmente inventado do ônibus, quando depois de uma mulher esbarrar em Nadejda e pedir desculpas, ela diz: “Somos fortes como o diabo”. E logo em seguida todos ali passam a repetir a mesma frase, “como um coro inofensivo, porém resistente que, com essa frase, sustentaria um império, deteria um exército e implodiria um regime”.
É isso o que a memorização por Nadejda dos poemas de Ossip Mandelstam sugere a Noemi Jaffe. A força dos gestos quase imperceptíveis de resistência, a voz que se oferece como hospedeira para o texto de outro e que forja, em seguida, um lugar narratorial meio lateral, como figura interposta em sua própria história. No entanto, quando a voz ficcionalizada é a de Anna Akhmátova, é de Nadejda que se fala.
Repete-se o procedimento-guia da narrativa e ventriloquiza-se, desta vez, a vida da outra. Repete-se, igualmente, com outro destinatário (Nadejda), o que distingue o primeiro segmento do romance. Do monólogo endereçado por Nadejda ao marido (e entrecortado por pedaços de poemas de Mandelstam) passa-se, ao final, a outro, endereçado a ela por Akhmátova-personagem. O que altera, em parte, o foco geral do próprio romance que se encerra em modo semiepistolar: “Sobreviva a nós todas, Nadjenka, Nadjucha e seja a dor da risada rouca, por nós que, de tão menos pedra, só temos a força necessária para morrer”.[37]
Em Vaga carne, uma voz sem nome, sem pouso, insurrecta, em busca de configuração, mantem-se em campo cindido mesmo depois da breve cena de reconhecimento do corpo (feminino, negro) que habita. Em O que ela sussurra, uma voz interposta narra e renarra pelo outro. Em Lígia, a voz intercalada é a do telejornal remixado, expondo ao avesso o autoritário ativismo midiático, e é, também, a da canção de Tom Jobim e Chico Buarque lamentando, com andamento entrecortado, não só um amor difícil, mas a própria bossa nova já impossível em 1974. Um entrecruzamento vocal com a amplitude ironicamente nacional do programa de TV, e a dimensão íntima do samba-canção, refigurando, assim, em registro dissensual, o canto fúnebre.
Coros-do-ódio
Se a ventriloquização desdobra e conflitua calculadamente a enunciação, em alguns exercícios de geminação crítica, esse movimento se direciona, via sobreposição e montagem, para formas distintas de coralização. No caso do projeto tripartido a que Giselle Beiguelman deu o nome de Odiolândia, por exemplo, constituem-se três vastas falas-arquivos a partir da compilação de comentários publicados nas redes sociais sobre as ações de ocupação da Cracolândia pela Polícia Militar entre 21 de maio e 9 de junho de 2017, sobre a execução da vereadora carioca Marielle Franco em 14 de março de 2018, e sobre o incêndio e o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em São Paulo, no dia 1º de maio de 2018, prédio abandonado e ocupado desde 2003 por movimentos de moradia.
As três datas, expressivas do aumento da virulência policial, da violência política, e da fascistização da opinião pública, e ainda anteriores à eleição brasileira de 2018, apontam também para ela e para a base massiva de apoio construída digitalmente pela ultradireita, que costuma ser ativada com peculiar intensidade em acontecimentos de grande repercussão pública como esses. Como em outros trabalhos de Beiguelman, muitos deles voltados para práticas artístico-conceituais do arquivo, essas compilações receberiam mais de uma formatação. A primeira parte de Odiolândia foi originalmente realizada como videoinstalação incluída na mostra “São Paulo não é uma cidade: as invenções do Centro”, realizada no Sesc 24 de maio em 2017. O vídeo[38] participaria de várias outras exposições e tem como característica fundamental não exibir qualquer outra imagem a não ser a reprodução de alguns dos comentários sobre as ações policiais na Cracolândia que circularam pela internet. Eles vão passando sequencial e horizontalmente pela tela escura enquanto se ouvem áudios reais das ações da PM, tiros, helicópteros, vozes de moradores de rua e de policiais, latidos de cães, gritos, rajadas de balas.
A segunda parte desse trabalho, tematizando o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes no centro do Rio de Janeiro, teve leitura performatizada no Museu de Arte do Rio (MAR) em dezembro de 2018. E a terceira parte de Odiolândia, com amostragem de discursos de ódio contra os movimentos sociais por moradia, por ocasião do desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, foi parcialmente lida na Rádio USP[39] pela artista e pesquisadora e divulgada à época também em página do seu site.
No final do ano de 2018 os três segmentos seriam publicados em formato-folheto pela n-1 Edições, construindo-se aí três longas falas corais compostas de frases[40] recortadas de manifestações, todas elas, movidas pelo ódio, pela rejeição violenta a qualquer forma de alteridade, pelo preconceito regional, social, racial, pela xenofobia, pela homofobia, pela misoginia. E, simultaneamente, acompanhadas de irrestrita defesa da militarização, de execuções, extermínio, e de pautas como a liberação do porte de armas, a pena de morte, o fim da maioridade penal. Daí o título do trabalho, sublinhando o ódio, como explica Beiguelman: “O título do trabalho nasceu do teor das mensagens postadas pelo público. Majoritariamente favoráveis ao tratamento policial da questão e ao uso da força e de armas de fogo contra os dependentes, elas expressam também o desejo de ver as mesmas políticas aplicadas a outros grupos. Nordestinos, sem-terra e gays são alguns dos seus alvos”.[41]
Na montagem de cada um dos segmentos corais, Beiguelman parece evocar as falas de “cidadãos de bem” de André Sant’Anna, assim como certos procedimentos característicos das dramaturgias do real, e apropriações em bruto de matéria documental, como as realizadas, por exemplo, por Kenneth Goldsmith. Evoca talvez também as diversas reutilizações críticas de falas empregadas durante a votação do impeachment pelo Congresso brasileiro. Como na peça Abril[42] (2016), de Gabriela Carneiro da Cunha e Erik Rocha, onde uma mulher vai se afundando (até naufragar) numa cama enquanto ouve os sins histéricos oriundos de uma tv ligada sem parar, trabalho que seria encenado pela atriz Carolina Virguez no Castelinho do Flamengo.[43] Como no livro Sessão, com poemas montados a partir dessas manifestações de parlamentares e publicado pela Editora Luna Parque em 2017.
Em sintonia com essas apropriações – “desassociadas de nomes e imagens”[44] – o “cordel” tripartido de Giselle Beiguelman comporia uma obra-arquivo a que ela mesma se refere como “ovo da serpente”, no sentido de constituir um repositório significativo da tópica e da retórica da intolerância e do autoritarismo no país, nos anos de 2017 e 2018. A montagem sequencial dos três fluxos textuais (com breve intervalo de tempo entre as ocorrências) e a evidência de sua interrelação retórica sublinha a maturação em processo desse “ovo”, mas contrasta, por outro lado, à tripla trama, um modo semelhante de fabulação por autorreprodução intencionalmente parasitária nas três variantes. A reduplicação quase inercial de conteúdos aumenta a sua velocidade de construção e expansão, mas também a possibilidade de autofiguração como monólogo a várias vozes desses coros-do-ódio.
Montagem, moteto, motim
É de outra ordem a coralidade trabalhada por André Vallias em Moteto para Lima Barreto. Não que nela não se enuncie, veemente, a antagonização a elementos estruturais a esses coros-de-ódio, e à sustentação que emprestam ao autoritarismo brasileiro. O poema de Vallias constitui um palimpsesto polifônico no qual confluem e se interrelacionam dois tempos – o do começo da república e o do fim da “Nova República”. Nele alternam-se as vozes de Numa Ciro, Paulo Sabino e Vallias, e sobrepõem-se três conjuntos distintos de materiais.
Há, de um lado, as invocações verbivocovisuais a uma série de nomes — reproduzindo alguns dos pseudônimos usados por Lima Barreto Jonathan, Xim, Horácio Acácio, Inácio Costa, Pingente, Barão de Sumaret, Eran, Amil, J. Caminha, S. Holmes, Phileas Fogg, Ingênuo, Tradittore. Alguns deles já conhecidos, outros ainda duvidosos, outros determinados pelo pesquisador Felipe Botelho Corrêa, que reuniu, em 2016, um conjunto de escritos inéditos[45] do escritor, sublinhando que, se prática corrente à época, impunha- -se o nome fictício sobretudo nos “textos satíricos de comentários sociais ou políticos”.[46]
Há, igualmente, um conjunto de trechos selecionados de crônicas do escritor publicadas em 1917 e 1918, nas quais o impacto da Revolução de 1917 é evidente, chegando Lima Barreto a encerrar uma delas, de maio do ano seguinte, com “A face do mundo mudou. Ave Rússia!”. As fontes das citações são “Vera Zasulitch”, divulgada na revista Brás Cubas em 14 de julho de 1918, “São Paulo e os Estrangeiros”, publicada em O Debate em 6 de outubro de 1917, “No ajuste de contas…”, publicada no dia 11 de maio de 1918 no periódico A.B.C. Os trechos recortados são comentário histórico que, se entranhado ao Brasil da República Velha e aos primeiros levantes e greves operárias, iluminam, igualmente, as mobilizações de massa de abrangência nacional de junho de 2013, o esgarçamento do pacto social de 1988 e a resposta de novo oligárquico-militarizada a esse contexto com o golpe de 2016 e a posterior eleição de candidato da ultradireita.
O poema de Vallias vocaliza alguns desses trechos de crônicas barretianas. E vão se sucedendo os comentários de Lima Barreto. Sobre a Proclamação da República: “as patrulhas andavam, nas ruas, armadas de carabinas”, “a fisionomia da cidade era de estupor e de temor”, “ela vai aos poucos acentuando as feições que já trazia no berço”. Sobre a plutocracia e sua “influência seguida, constante, diurna e noturna, sobre as leis e sobre os governantes, em prol do seu insaciável enriquecimento”, drenando “para as suas caixas-fortes todo o suor e todo o sangue do país, em forma de taxa alta de preços e juros de apólices”. Sobre a hipocrisia religiosa, os doutores do direito e seus enlaces oligárquicos: “nunca os argentários do Brasil se fingiram mais religiosos do que agora”, “há de se fazer uma reforma social contra ‘o Direito’ de que são sacerdotes, pois o seu deus já está morto”.
As observações barretianas entrecruzam os dois tempos (inicio da República e agonia da Nova República) e os colocam em mútua projeção. À leitura fragmentada dos trechos e à invocação nos nomes fictícios de Lima Barreto (fazendo dele legião) se acrescentaria, ainda, terceiro componente do moteto – uma série de poemas de Vallias contemporâneos ou ligados diretamente às Jornadas de Junho de 2013: “poema civil n-1”, “modernidade”, “simetria”, “madeira de lei”, máscara”, “opróbrio”.
Neles estão presentes, em contexto outro, o do século XXI, refigurações de tópicos semelhantes aos das crônicas do começo do século XX: o controle do Estado pelos “argentários” (o “Ex/tado”, “tá tudo dominado”), a brutalidade policial contra pobres, pretos, insurgentes (“que a lei da madeira dura/ mais que a madeira de lei”), a conjugação de dois “Belo Monte” (o arraial de Canudos, na Bahia, e a hidrelétrica no Rio Xingu, no Pará), a condenação de Rafael Braga, catador de latas de Vila Cruzeiro, pelos protestos de junho de 2013, característica da seletividade penal no país (“opróbrio/ o preto pobre/ preso para ser/ o bode expiatório”), ecoando o temor, as carabinas, os “chacais e hienas a serviço dos burgueses” descritos por Lima Barreto. Todas essas refigurações operam, do ponto de vista de uma semântica histórica, como quase rimas que intensificam os nexos indicados nessa dupla fabulação. E permitem, assim, projeção heterocrônica também do diagnóstico barretiano quase sussurrado no moteto: “a época é de medidas radicais”.
Se o acoplamento dos dois tempos é elemento fundamental da composição-por-geminação do poema, a sua coralização vai, perceptivelmente, bem além da duplicação fabular em eco. Daí a lista de “Lima-Barretos” com outras máscaras. Daí o adensamento da dimensão sonora, para além das três vozes-guias, incluindo composição de Marlos Nobre e outras inserções brevíssimas. E há a preocupação (própria, também, ao moteto) com a complexificação da trama vocabular – a palavra dita e lida, visível ou apenas falada, em situação de sobreposição, em percurso espiralado ou em modo-cartaz.
Pois o Moteto para Lima Barreto – obra montada eletronicamente – se apresenta como coralidade ativa, estrutura autoexpositiva (em eco e em diferenciação) dos componentes que o definem e segmentam. Cumpre, assim, função de complexificação também no âmbito de investigação continuada do poema como estrutura interrelacional e intermidiática aberta. E de sua dimensão épico-crítica (vide Totem e Oratório), o que constitui aspecto fundamental do método de André Vallias.
A voz over e a coralização
Com foco em recorte geográfico semelhante ao que originou o primeiro segmento de Odiolândia – o Largo do Paissandu, no centro de São Paulo – Bia Lessa trabalharia, no entanto, com coralidades bastante diversas em seu tríptico fílmico Asfixia/Mercadoria/O comum. A começar das variações que distinguem cada um dos filmes, mesmo com o trânsito de determinadas imagens e referências entre eles e a tensão entre distopia e utopia que percorre os três.
Resultante da impossibilidade de intervenção presencial regular nos prédios localizados no Largo do Paissandu durante os anos 2020–2021, a configuração desse projeto – geminando lugar real e lugar digital – emergiu como resposta a essa conjuntura, optando-se pela ocupação virtual dos espaços abandonados, degradados ou subutilizados da região por meio de exposições, projeções, instalações realizadas exclusivamente por animação digital.
A essa escolha se fez acompanhar outra – a experiência, salvo engano, inédita no trabalho da diretora de criar, ao longo de todo o tríptico, um foco intermitente de locução realizado com a própria voz. Isso se faz em diálogo intencional com a voz over adotada por Glauber Rocha em filmes como Claro e Di, ou no programa Abertura. A exposição da voz autoral, no caso de Bia, fazendo dela componente ativo a mais em meio ao vasto processo de compilação e montagem realizado no tríptico fílmico, pensado, a certa altura, como refiguração em simultaneidade (sem qualquer progressão ascensional ou infernal) da estrutura tripartida dantesca.
Em vez de hipertrofiá-la, essa inclusão faria dessa voz mais um dos recortes, foco sonoro que vai se coralizando, a princípio pela sobreposição das falas fílmicas e das do próprio cineasta, às quais vão se juntando outras e outras, dramatizando-se, o que, a princípio, poderia se afigurar como exclusivo rastro pessoal ou, ao contrário, apenas citacional. O rastro pessoal persiste, mas se vê submetido, como todos os demais materiais, a metódica teatralização.
A mudança inicial de meio de realização do que era um projeto de ocupação e exposição ativaria, necessariamente, outras camadas de contraposições – a fundamental, em todo o trabalho, seria entre recortes da filmografia e do pensamento insurrecto de Glauber Rocha e questões e obras do presente que se mostram particularmente iluminadas por eles. Em cada série de contraposições e ecos especulativo-imagéticos (distopia/utopia, mercadoria/rarefação, a extinção e os motivos-para-que) se há vozes que interrompem outras vozes ou sobrepõem-se a elas incessantemente, há também coros contra coros – como o dos moradores de rua e dos policiais, no começo, os das diversas manifestações religiosas, o de movimentos ativos de libertação na África (registrados por Glauber) e a aporia das pilhas e pilhas de acumulações diversas.
E há intra/infracoros contra (e sobre) intra/infracoros, pois, no interior de cada uma dessas zonas de coralização, não há, igualmente, coesão que sustente pares opositivos simples. Mesmo as tensões entre distopia/utopia, essenciais à construção do tríptico, também atuam aí como dobras mútuas. As figuras que percorrem a paisagem urbana do primeiro quadro (sem dúvida predominantemente distópico) do tríptico são elas mesmas geminadas – os corpos compósitos, feitos de pedaços de outros corpos, de outras coisas, os rostos expondo a diversa extração de cada componente. Evocando-se, por vezes, pela gritante explicitude do recorte, algumas das fotomontagens de Grette Stern, inclusive na concepção das figuras compósitas. A gritante explicitude do recorte, da montagem, a visibilidade do corte se manterão em todo o tríptico e serão fundamentais no jogo com as reproduções de trechos fílmicos recortados (eles também) em pano e papel durante as performances presenciais no Sesc Paulista.
Mesmo no âmbito dos projetos urbanos, no qual se contradizem belamente Paulo Mendes da Rocha e Guilherme Wisnik, por exemplo, as falas são mantidas inconclusas – como todas as demais, aliás. O que parece interessar a Bia Lessa aí, é sobretudo o fluxo intenso, é a ativação continuada de recombinações. Então, certas imagens e recortes de falas voltam e interagem com outros, enquanto vão esboçando diferentes zonas de reflexão, diferentes hipóteses de fabulação. Como no interior das figuras feitas de recortes do primeiro segmento. E a apresentação ininterrupta de materiais, se foge à coleção, não foge a rearticulações – pois as estruturas geminadas que organizam os filmes têm a função de manter potencialmente em-processo a recombinação.
Não à toa mesmo o meio fílmico ganharia contraste e refiguração com a possibilidade de retorno às atividades presenciais. No espaço de exposições do Sesc Paulista, o tríptico pré-filmado (ampliado em escala imensa e num quase looping por meio de projeção contínua ao longo do dia), se viu geminado a performances ao vivo e materializações distintas de trechos e de obras referidas. Uma linguagem (cinemática) em confronto e em suplementação por outra (cênico-expositiva). A sequência fílmica se vê redefinida, assim, pelos recortes teatralizados, pelas interferências desobedientes à organização audiovisual prévia, recortando de novo o que parecia já editado. E, geminação a mais: o extraquadro, o fator rua. Pois as performances passam a deixar o espaço expositivo e incorporar a circulação de fim de semana da Avenida Paulista, desdobrando, em tripla fabulação, o fílmico em performativo, e o expositivo em manifestações-relâmpago pelo espaço urbano.
O extraquadro
A rua, fundamental no projeto de ocupação do Largo do Paissandu, e nos recortes glauberianos, irrompe, pois, de novo, de forma ativa, na versão expositiva do tríptico de Bia Lessa. Os alvos descartados por academias de tiro têm, como se viu, papel determinante no vídeo Alvos e atuam como suporte e lugar de trânsito para os desenhos no espaço da exposição Pisa na Paúra, de Lenora de Barros. Desde 2018, Nuno Ramos vem trabalhando de modo sistemático com a interferência e o desacordo entre campo e extracampo numa série de performances a que chamou genericamente de Aos vivos, que incluem as duas versões de “A gente se vê por aqui”[47] (2017 e 2018), os três “Aos vivos: debates”[48] (2018) e Dito e feito[49] (2021).
O método habitual é a inserção, com breve intervalo temporal, e em contexto distinto, de texto oriundo de algum extracampo audiovisual – televisivo (debates eleitorais, a programação da TV Globo), fílmico (Terra em transe), em vídeo (falas captadas nas ruas em Dito e feito). O texto de referência e o contexto de reinserção são anunciados previamente, e a repetição se dá, então, em tempo real, a partir de áudios recebidos via fone de ouvido.
Ao contrário do que ocorre, em geral, nos espetáculos do Wooster Group, por exemplo, que costumam expor visualmente os referentes quando jogam com a reencenação, no caso dessas performances idealizadas por Nuno sabe-se, mas não se vê, obrigatoriamente, qual é a fonte das repetições veiculadas a partir dos fones de ouvido. Sabe-se, também, que os áudios vêm, sequencial e instantaneamente, de um contexto extraquadro. E é dos vacilos, das hesitações, do delay entre transmissão e retransmissão, áudio e ação cênica, quadro e extraquadro que se alimentam esses trabalhos.
Procedimento semelhante (mas com proposição algo diversa) seria adotado pelo artista, ao lado de Eduardo Climachauska, em Cassandra 1, performance realizada pelos dois artistas na Galeria Anita Schwartz no dia 9 de junho de 2018, das 12h às 18h. Nesse caso, o extraquadro era oferecido pela edição do jornal O globo do dia da performance, que era lido pelos dois, voltados para as paredes da galeria, de costas para o público, sem qualquer interação com ele. A leitura era contínua até se depararem, subitamente, com alguma expressão indicativa de tempo ou duração. Nesse momento havia, então, uma breve interrupção, registrada numa espécie de cronômetro, e voltava-se, em seguida, ao jornal e ao registro da passagem do tempo.
Em 2022, na performance Perdido, manteve-se essa leitura continuada, mas com alteração significativa no lugar atribuído ao extracampo (do qual não se extrai mais o texto) e na pluralização de pontos de fuga auditivos. Neste caso, realizou-se a leitura completa de Em busca do tempo perdido durante 21 dias consecutivos, e ao longo de 8 horas diárias, na Biblioteca Mário de Andrade. Por meio de alto-falantes submersos em sete aquários, cada um com um peixe-espectador, projetava-se ali a maior parte da leitura. Ao longo da qual, a cada vez que surgia a palavra “tempo”, o leitor em atividade, naquele momento, devia repeti-la em outro microfone, ligado a um grande alto falante localizado na rua da Consolação. Ao mesmo tempo, um motociclista, percorrendo o centro de São Paulo, estivesse onde estivesse, era avisado e devia gritar imediatamente “tempo” por meio de um megafone.
Nesse conjunto de performances de Nuno Ramos, é como segmentação de tempos (no entanto concomitantes) e acoplamento-em-desacordo de contextos (nem todos disponíveis visualmente, é claro) que se apresenta essa invocação – “ao vivo” – do extraquadro. Seja como fonte informacional, seja como lugar de escuta e repercussão. Sublinha-se, assim, com a urgência do tempo real, não apenas uma cisão na enunciação, na fonte emissora (que obedece também a áudios ou fontes outras), mas também na consciência mesma da inserção de performer e observador no tempo comum, na vida comum, eles também em decalagem. O contraste, mesmo mínimo, o atraso, mesmo mínimo, nessas repetições, sublinhando a cisão entre contextos, contemporaneidades, no entanto vivos e copresentes. As segmentações temporais impondo, desse ponto de vista, a experiência necessariamente cindida da hora presente.
É para reforço semelhante da função do extraquadro que sinaliza diretamente o poeta Ricardo Aleixo em livro publicado em 2020 pela Impressões de Minas Editora. O próprio título escolhido aponta nesse sentido, é claro. Mas, também, o uso dos intervalos, dos brancos, as colunas paralelas intrapáginas, a diagramação quase vazando as margens, as expansões internas entre poemas. Como acontece com um trecho mínimo (“todo/o tempo// e agora”) do texto que empresta o nome ao livro e que vai se desdobrando, belamente, nas múltiplas variações que constituem “O tempo todo tudo muda”.
Nesse sentido, Extraquadro[50] dialoga com toda a trajetória do poeta, e suas reinvenções – via performance, via recortes (muitas vezes intencionalmente ao acaso) dos próprios poemas em novas vocalizações, via variações textuais tópicas, experimentações sonoras, musicais. O livro parece travar talvez interlocução particularmente intensa, porém, com Impossível como nunca ter tido um rosto,[51] divulgado em 2016.
Impossível como nunca ter tido um rosto apresenta uma exposição quase programática de formas diversas de reenquadramento e vazamento interno no âmbito de cada poema. Em Rosto, por exemplo, toda a hipótese de figuração se indetermina a cada uso de parênteses (eles mesmos intencionalmente deslocados nas linhas), que vão apontando para o seu silêncio, a sua indefinição, para possível desdobramento, descolamento, falsa impressão. Inclusive, ao final, quando se imagina – em paradoxo – uma imagem possível: “) O rosto possível, dadas as/ circunstâncias (/ Impossível como nunca ter tido um rosto)”.
Em As únicas coisas, trata-se do que está “entre”, do que desliza entre as coisas, do intervalo da transformação, da interrupção de um movimento, do que “existe e ninguém vê/ nem ouve isso//que existe. /Isto.” O próprio poema se definindo como isto que está entre, como um quase extracampo que recorta o quadro e se apresenta como dobra, como dentro/fora. O que ganharia síntese intervalar também em Timbre: “tudo passado/ a intervalos golpes/ de asas tensas//timbre que/ retine no vácuo do// zero/ ao um”.
Esses procedimentos, a investigação metódica de vácuos, intervalos, parênteses, das irrupções gráficas do silêncio e das formas de corte e recorte também orientam o livro de 2021. Esse “rumor/das imagens/ umas contra/ as outras/umas rentes/ às outras/ umas dentro/das outras/ umas” (como expunha metapoeticamente Passagens). Observam-se, então, em Extraquadro, desta vez com o foco explícito na tensão campo/extracampo, nova série de experimentos parentéticos (em Mim mesmo”, Mecânica popular, À tua espera, Sem chão, A recusa da musa), de usos dos vazamentos intervalares (Quase épico, Programa), do espaçamento (Aquele por quem esperavam), e interrupções (Me dis, Mesmo qu), além de tematizações diretas do silêncio (como em Meu corpo) e da cisão dramatizada da voz (vejam-se Igual como? e Houve casos em que o passado veio mais de uma vez).
Há, no entanto, refiguração bastante particular, em Extraquadro, dessa poética intervalar, dessas tensões que habitam o espaço gráfico dos seus poemas. Pois aí se nomeiam e se expõem literalmente (vide foto na contracapa) vazamento e extracampo de outra ordem. No poema de abertura do livro, Quase épico, Aleixo inventa foto inexistente, expondo a elegante valentia de pai e tio passeando, nos anos 1920, pela Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, em caminho “reservado aos brancos”. No poema Extraquadro, é também de uma foto, e de algumas exclusões oferecidas por alguns extracampos, que se trata. Mas aí a foto não é imaginária.
O poema Extraquadro é fundamentalmente a descrição de dessa foto. Ela tem endereço (Rua Grão Pará, 589), localização (São Lucas) e legenda definida (Sociedade Recreativa Palmeiras) a data é indeterminada (1966, talvez), e parte do grupo de crianças que brincam ali está identificada com precisão (“os filhos do zelador”).
A foto se faz presente no livro, permitindo inclusive verificação. A imagem inclui adultos e outras crianças (brancas) ocupando a mesma roda, o mesmo brinquedo coletivo. No entanto, o poema deixa claro — é, e não é ela, o extraquadro. A foto (descrita) expõe, nela, a exclusão (no enquadramento) da casa do zelador — só se vê o clube. Ela expõe risos e, no entanto, não expõe o luto do Brasil da ditadura militar de 1964, que assombra, ausente, a foto. Ela organiza todas as crianças na mesma “roda” e, no entanto, racismo, desigualdade social e autoritarismo político a faziam girar de fato. Tudo isso compõe um outro extraquadro. Como fizera, de formas diversas, em poemas como Rondó da ronda noturna, Meu negro, Conheço vocês pelo cheiro, Brancos, entre outros, Ricardo Aleixo sobrepõe esses extracampos aos demais componentes do poema. E os impõe, assim, como fatores decisivos à composição, e à sua leitura.
A ênfase no extracampo no livro de 2021 de Aleixo, a expansão para a rua da exposição Cartas ao mundo, os restos do clube de tiro como matéria expositiva, o motoboy gritando “tempo” pelo centro de São Paulo — todas essas ações expõem uma presença quase bruta da hora histórica na experiência artística e crítica que o tempo de agora, que o Brasil da “década que se inicia” (para voltar à fábula de Silviano Santiago) impõe.
Voltando, mais uma vez a ela, e à malha parasitária hipertrofiada por meio da qual se dá a ler aqui a conjuntura brasileira, é evidente que essa visualização (por imagem interposta) não foi gratuita. Como registrou Victor Klemperer em seu estudo sobre a linguagem do Terceiro Reich, cabe observar o quanto era usual, na Alemanha nazista, chamar os judeus de “raça parasitária”, derivando dessa associação racista injuriosa todo um conjunto de expressões negativas, referentes inclusive a ações regulares de extermínio. Entre elas, a designação da guarda residencial (instituída no fim da Segunda Guerra Mundial) como “equipe de combate aos parasitas do povo”, e o nome da empresa diretamente responsável pelo envio de gás para os campos de extermínio que passou a ser “Sociedade Internacional de Combate a Parasitas”.
Logo no começo do governo Bolsonaro, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, tentou sem sucesso aplicar associação idêntica aos funcionários públicos brasileiros. Os meios bolsonaristas tentaram fazer o mesmo em assédio constante a artistas, intelectuais, movimentos sociais, aos sem-teto e sem-terra, a quilombolas, indígenas, bolsistas de pesquisa e assim por diante. Ressurgindo invariavelmente nesses coros do ódio – como expõe o trabalho de Giselle Beiguelman – a expressão “parasita” como qualificativo ou diagnóstico indicativo de exclusão. Nos dois casos, do ministro e dos coros digitais neofascistas, a estratégia – sabidamente semelhante à adotada pelas lideranças nazistas – não prosperaria na escala desejada por esses agentes da ultradireita.
Ao contrário, e nem tão paradoxalmente assim, a analogia ao parasitismo ganharia, de fato, aplicabilidade e relevância, nos últimos anos, como procurou-se observar aqui, quando o objeto de referência tornou-se o próprio governo iniciado no país em 2019. E incluídas, nesse campo analógico, as colônias de figuras disfuncionais implantadas nas diversas instituições públicas, assim como as políticas econômicas rentistas e de desmonte em larga escala do que é público. Uma percepção que forçosamente se ampliaria com a situação de descontrole pandêmico. O coronavírus, parasita intracelular, e as milhares de mortes motivadas por ele sinalizando, involuntária e lutuosamente, para consequências imediatas, no país, do desdobramento bolsonarista do golpe de 2016.
A esse quadro, confrontaram-se, manifestações artísticas e literárias que, jogando com “hospedeiros” ou fazendo-se de “hospedeiras”, inventaram, via procedimentos distintos de acoplamento e geminação crítica, dinâmicas composicionais conduzidas pela consciência material, pela variação, e por desacordo metódico. Trabalhos que não se pretendem, e nem são, simples respostas miméticas a outras obras com as quais, todavia, realizam explícita interação. Tampouco reproduzem especularmente esse contexto que, entre suas perspectivas fundamentais de visualização, tem nitidamente uma delas em formas diversas de relação assimétrico-parasitária.
No entanto, como observamos aqui, oferecem a esse contexto e a essas interações quadro contrastivo dotado de singular potência desconstrutora. Além de qualidade prática inegável, pois afirmam, também, em circunstâncias de semiparalisia aporética, formas cruciais de autonomia. Relembro, nesse sentido, mais uma vez, o final de Ovos de marimbondo – inclemente e indeterminado – e destacando, acertadamente, a temível eficiência do parasita.
Encerro, também este ensaio, em contexto de confronto ativo – e de inequívoca percepção de uma atuação expandida da ultradireita no país. Sinalizando (de modo ainda parcialmente surdo), porém, sobretudo para a radicalidade (talvez passível de desdobramento extraquadro) da dinâmica dissensual desses experimentos artísticos.
*Flora Süssekind é professora de literatura brasileira na UniRio e pesquisadora da Casa de Rui Barbosa. Autora, entre outros livros, de Literatura e vida literária (Jorge Zahar).
Referência
Flora Süssekind. Coros, contrários, massa. Recife, Cepe Editora, 2022, 664 págs.
Artigo publicado originalmente no Suplemento Pernambuco [http://www.suplementopernambuco.com.br/in%C3%A9ditos/2966-coros-contra-coros-a-tecnopol%C3%ADtica-parasit%C3%A1ria-as-formas-geminadas-de-fabula%C3%A7%C3%A3o.html].
Notas
[1] Referência a comentário muito conhecido de Aristóteles na Poética: “uma coisa bela – seja um animal seja toda uma ação – sendo composta de algumas partes, precisará não somente de as ter ordenadas, mas também de ter uma dimensão que não seja ao acaso”. Aristóteles. Poética. Tradução e notas de Ana Maria Valente. 6.ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, p. 51.
[2] Ramos, Nuno. “Sai Antígona” In: Revista Piauí. Edição 167, agosto 2020. Cf. https://piaui.folha.uol.com.br/materia/sai-antigona/
[3] O moteto (de mot: palavra, em francês), composição coral marcada pela sobreposição de vozes independentes e em configurações rítmicas distintas, pelo uso de textos seculares e sagrados, pelo plurilinguismo (frequentemente latim e francês) e por uma experiência polifônica baseada sobretudo na palavra, como a própria designação genérica sugere.
[4] Assinalo que tive a oportunidade de acompanhar, ao longo dos anos de 2020 e 2021, o processo de realização desse trabalho por Bia Lessa, a quem agradeço a interlocução.
[5] Cf. Bárbara Silveira e Felipe Paranhos, “Sobre Temer no poder, Dilma vê “parasita” que “se continuar, mata a democracia”, matéria reproduzida do UOL em Metro 1 no dia 28 de junho de 2016.
[6] Adorno, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. Tradução Felipe Catalani. São Paulo: Editora Unesp, 2020, p. 48
[7] Nobre, Marcos. “O vírus e o parasita”. Ilustríssima, Folha de S. Paulo 18/3/2020. Acesso online no link a seguir:
[8] Id. Ibid.
[9] Ver, nesse sentido, em especial, A guerra civil na França (1871), de Karl Marx. (Marx, K. A guerra civil na França. Seleção de textos, tradução e notas Rubens Enderle; [apresentação de Antonio Rago Filho]. São Paulo: Boitempo, 2011).
[10] Luxemburgo, Rosa. A acumulação do capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. Trad. Marijane Vieira Lisboa. 2ª ed. Coleção Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1985. Ver, também, Loureiro, Isabel. “A menos eurocêntrica de todos: Rosa Luxemburgo e a acumulação primitiva permanente”. In: Rosa Luxemburgo: ou o preço da liberdade. Jörn Schütrumpf (Org.). São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2015, pág. 97-107.
[11] Refiro-me, em particular, a A América Latina: males de origem. O parasitismo social e evolução. Rio de Janeiro, Paris, Garnier, s.d. (1905), de Manoel Bomfim.
[12] Bauman, Zygmunt. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010, p. 9-10.
[13] Cf. Márcio Pochmann, “Brasil, vitrine do rentismo parasitário” IN: Outras Palavras, 16 de novembro de 2021.
Link para acesso: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/pochmann-brasilvitrine-do-rentismo-parasitario/desigualdades-mundo/pochmann-brasilvitrine-do-rentismo-parasitario/
[14] Lembrando que Rodrigo Nunes não emprega aí explicitamente qualquer analogia ao parasitismo, sintetizo, em linhas gerais, algumas das observações sobre trollagem contidas em “Alvim errou a mão na trollagem nazi inspirada na direita dos EUA” In: Folha de S. Paulo, 21/1/2020. A analogia apareceria, porém, em entrevista do professor da PUC-Rio a João Vitor Santos em 15 de fevereiro de 2022, na qual faz breve referência à análise de Marcos Nobre do governo Bolsonaro.
Links para acesso: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/01/alvim-errou-a-mao-na-trollagem-bolsonarista–inspirada-na-direita-dos-eua.shtmlcom.br/ilustrissima/2020/01/alvim-errou-a-mao-na-trollagem-bolsonarista–inspirada-na-direita-dos-eua.shtml e https://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/608123-bolsonarismo-como-identidade-coletiva-a-logica-sacrificial–e-a-brutalizacao-dos-afetos-entrevista-especial-com-rodrigo-nunesentrevistas/608123-bolsonarismo-como-identidade-coletiva-a-logica-sacrificial–e-a-brutalizacao-dos-afetos-entrevista-especial-com-rodrigo-nunes
[15] Troll, trollar, trollagem (do inglês to troll) são expressões populares, há décadas, no mundo gay, indicando as caçadas ao léu em busca de parceiros amorosos, que seriam incorporadas, nos anos 1990, ao vocabulário da cultura digital, para designar os provocadores sistemáticos da internet, cujas falácias, desestabilizações e redirecionamento de discussões costumam estimular indignação, engajamentos multidirecionados e interações belicosas.
[16] Alt-right: alternative right, traduzido como “direita alternativa”.
[7] Cf. “Alvim errou a mão na trollagem nazi inspirada na direita dos EUA” In: Folha de S. Paulo, 21/1/2020.
[18] Ramos, Nuno. O baile da ilha fiscal. In: “Ilustríssima”, Folha de S. Paulo, 3 de maio de 2020, acessível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/05/brasil-enfrenta-duplo-apocalipse-com-bolsonaro-e-coronavirus-reflete-nuno–ramos.shtml
[19] Id. Ibid.
[20] Soares, Luiz Eduardo. Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 71-72.
[21] Id. Ibid.
[22] Algumas expressões ativadas pela prática linguística reacionária brasileira, e convertidas em estereótipos socialmente atuantes com a ascensão política de movimentos extremistas de direita, foram fundamentais igualmente na construção de seus alvos de assédio coordenado: as mulheres independentes, os homossexuais, o jornalismo, o trabalho intelectual. São exemplares, nesse sentido, expressões como “ideologia de gênero”, “extrema imprensa”, “marxismo cultural”, “mimimi”, “feminazi”, “heterofobia”, “humanos direitos”, e assim por diante.
[23] “Klemperer, Victor. LTI: a linguagem no Terceiro Reich. Tradução de Míriam Bettina Paulina Oelsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p. 75.
[24] Cf. Silviano Santiago, “Ovos de Marimbondo, Uma Fábula”, Suplemento Pernambuco, 25 de julho de 2020.
[25] Lembrando aqui a concepção brechtiana de fabulação, objeto de reflexão do dramaturgo, entre outros textos, em Pequeno Organon para o teatro. Cito trecho de comentário a esse respeito de Jean-Pierre Sarrazac em O futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002, p. 34.
[26] Ver, a esse respeito, a síntese realizada por Giuliano Da Empoli em Os engenheiros do caos (São Paulo: Vestígio, 2019).
[27] Mariz, Renata.“Número de brasileiros que se tornam atiradores para obter licença explode no país” In: O Globo, 30/7/2017.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/numero-de-brasileiros-que-se-tornam-atiradores–para-obter-licenca-explode-no-pais-21645849
[28] Alvos, de Lenora de Barros, 2017. Ficha técnica: vídeo, cor, estéreo, duração: 6’20’’. Produção e edição: Marcia Beatriz Granero. Assistente de produção: Luiza Calmon. Finalização: Yuri Amaral. Fotografia: Fabio Bardella. Desenho e mixagem de som: Gustavo Vasconcelos.
Link de acesso: https://vimeo.com/438535592com/438535592
[29] Craft, Catherine. Jasper Johns. Parkstone Press UK, 2009, p. 35-36.
[30] Ramos, Nuno. Fooquedeu (Um diário). São Paulo, Ed. Todavia, 2022, p. 192.
[31] Beckett, Samuel. Companhia e outros textos; tradução Ana Helena Souza. São Paulo: Editora Globo, 2012, p. 27.
[32] Passô, Grace. Vaga carne. Belo Horizonte: Editora Javali, 2018, p. 15.
[33] Cf. Caroline Maria, “Manifestações: o Teatro e o Brasil, por Grace Passô (atriz e dramaturga)”:http://df.divirtasemais.com.br/app/noticia/programe-se/2013/06/21/noticia_programese,142510/veja-comentario-da-atriz-e–dramaturga-grace-passo-sobre-o-teatro-e-o-b.shtml2013/06/21/noticia_programese,142510/veja-comentario-da-atriz-e–dramaturga-grace-passo-sobre-o-teatro-e-o-b.shtml
[34] Vaga carne, p. 52.
[35] Ramos, Nuno. “JN, 16.3.2016” In: Fooquedeu (Um diário). São Paulo, Ed. Todavia, 2022, p. 38-39.
[36] Cf. Noemi Jaffe, op. cit.
[37] Id. Ibid.
[38] Link para acesso: https://museu2.tainacan.org/repositorio-da-literatura-digital–brasileira/odiolandia/-brasileira/odiolandia/
[39] O programa da Rádio USP e uma lista de comentários podem ser acessados neste site: https://www.desvirtual.com/grupos-de-odio-contra-os-sem-teto/
[40] Exemplos de frases compiladas por Beiguelman: “Lugar de bandido é na vala. Já foi tarde.”; “Invasor é pior que erva daninha, por onde passa deixa sua marca.”; “Morte de político é limpeza no país.”; “Tá achando ruim? Abre as portas da tua casa para os sem-teto morar, então.”; “Queria ver a cara dela agora, derretendo no inferno.”; “Seria melhor se estivesse cheio de venezuelanos, haitianos, bolivianos.”; “Sejamos sensatos, tem que matar, senão, não resolve.”; “Que coisa linda. Deixa a gente aqui do interior fazer isso com os sem-terra, mas usando a 12 com chumbo 3T.”
[41] Cf. https://jornal.usp.br/cultura/cracolandia-e-destaque-na-1a-bienal-de-arte-digital/
[42] No dia 17 de abril de 2016 aconteceu a votação na Câmara dos Deputados que deu início ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
[43] Abril. Direção: Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha. Dramaturgia: Eryk Rocha, Gabriela Carneiro da Cunha, Carolina Virguez, Julia Ariani e Bruno Carneiro, em parceria com os dramaturgos da farsa de todos os dias. Atuação: Carolina Virguez. Sinopse: “Fazer cessar o estado de fechado; Fazer cessar o estado de inatividade de certas coisas; Desunir, alargar; Fazer funcionar ou circular; Destapar; Desembrulhar ou rasgar; Escavar para tornar fundo; Tornar acessível; Dar início a; Dar uma oportunidade de; Abrir. Abriu. Abril. Um diálogo cênico entre o teatro e o cinema de gênero onde através da moldura televisiva uma mulher vê um mundo de horror. Novos e velhos fantasmas de sempre assombram novamente o mês de abril”.
[44] Beiguelman, Giselle. Odiolândia. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 9.
[45] Barreto, Lima. Sátiras e outras subversões: textos inéditos; organização, introdução, pesquisa e notas. Org: Felipe Botelho Corrêa. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[46] Id. Ibid., p. 13.
[47] A gente se vê por aqui teve uma versão apresentada no 31º Festival de Arte de Porto Alegre em 2017 e outra na 5ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, em 2018.
[48] Aos vivos: debates, série de três peças realizadas nas datas dos debates eleitorais para a presidência em 2018: Debate nº 1 – Dervixe, Debate nº 2 – Antígona e Debate nº 3 — Terra em transe. Apenas a primeira, como se sabe, reproduziu de fato simultaneamente um debate. Os demais foram cancelados por conta do episódio da facada que permitiria ao candidato Jair Bolsonaro justificar a sua não-participação.
[49] Dito e feito, performance realizada entre os dias 15 e 18 de junho de 2021, no Instituto Ling em Porto Alegre.
[50] Aleixo, Ricardo. Extraquadro. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2020.
[51] Aleixo, Ricardo. Impossível como nunca ter tido um rosto. Belo Horizonte, Edição do Autor, 2015.
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