Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*
Comentário sobre a obra gráfica de Glauco Rodrigues
A obra gráfica do pintor, gravador, e desenhista Glauco Rodrigues foi tema da exposição no espaço da Caixa Cultural na Avenida Paulista em São Paulo em 2011. O conjunto de trabalhos expostos reuniu obras da década de 1950 até as últimas gravuras do artista – nascido em 1929 e falecido em 2004.
Iniciada com temas regionais do seu Rio Grande do Sul nativo: o gaúcho em ação no campo, e igualmente com imagens engajadas nas lutas políticas populares de então, a constante da temática brasileira é um fio condutor importante na obra gráfica do artista gaúcho e na referida exposição. Temática que engloba tanto o regional e o nacional-popular do seu período inicial de desenvolvimento artístico, quanto a projeção e mediação ou construção mediática do Brasil na era das imagens eletrônicas e da cultura de massas na segunda metade do século XX.
Com efeito, na sua obra gráfica da maturidade poderíamos afirmar que o artista reelabora em um novo registro a questão estética e política da imagem do Brasil e da cultura brasileira e, por esta via, a questão da imagem na arte contemporânea.
A arte pop é o contexto ou pretexto imediato para a sua retomada da figuração em meados da década de 1960, após fases que repercutiam correntes ou estilos modernizantes e a abstração. Retomada que tem como pano de fundo a formação da moderna sociedade de massas e dos novos meios de comunicação, ou seja, o desenvolvimento no período de uma nova sociedade brasileira, feita de (reais e aparentes) continuidades e rupturas sensíveis, intelectuais, vivenciais, estruturais, etc.
A obra madura de Glauco Rodrigues registra, por meio das transformações na imagem e na autoimagem do Brasil no período, o advento da sociedade de massas, dos novos meios de comunicação na construção da contemporaneidade, um período de transformações econômicas, sociais e culturais marcado pela crise política da ditadura militar, através da qual as elites tradicionais e grupos dominantes com interesses no processo de subordinação econômica da nação buscavam, pela via ditatorial, pelo caminho do autoritarismo e da violência institucionalizada, controlar e dirigir de modo exclusivo processos de mudanças estruturais em curso, importando, para tanto, a ideologia da Guerra Fria internalizada para justificar a destruição da incipiente e imatura democracia brasileira de então (qualquer semelhança com os dias atuais não deve ser coincidência).
As estratégias de hibridização, carnavalização, de fertilizações e choques entre o popular e o erudito, o urbano e o rural, passado e “presente-futuro”, o nacional e o estrangeiro, repetição e singularidade, o original e a cópia, amálgamas, pastiche, etc que caracterizaram na música popular e no teatro, também no cinema e mesmo na literatura, o Tropicalismo, estão a seu modo refletidas, documentadas ou representadas na gravura de Glauco Rodrigues naquilo que o contexto estético e ideológico permitia, ou mesmo exigia, de justaposição ou identificação, tanto irônica como crítica, dos pólos opostos, a representação e mesmo a fusão dos dualismos reais ou imaginários, constitutivos da sociedade e da cultura ou culturas brasileiras, em unidades híbridas, efêmeras, precárias, mas, por vezes, de grande potencial poético e renovadoras.
Um São Sebastião “artesanal”, modelado linearmente, graficamente, como que ao buril, sinuoso, lânguido e barroco, é representado contra um fundo chapado de cores fortes em formas simplificadas, repercutindo alguns dos estilemas da linguagem gráfica pop, e desenhando sucintamente, caracteristicamente a paisagem do Pão de Açúcar e da Guanabara.
A dança, o carnaval, o universo direto ou indireto da poética de massas, da televisão, do cinema, das imagens impressas, do jornalismo cotidiano, são algumas das fontes e dos temas das gravuras de Glauco Rodrigues dos anos 1960 em diante.
Nestas gravuras são retratadas, por exemplo, a paisagem urbana do Rio de Janeiro e suas transformações, em superposições e mesclas temporais, estilísticas e tecnológicas, por meio da crônica histórica em imagens que mesclam, reproduzem, distanciam e aproximam tempos, linguagens e técnicas gráficas diversas.
E nelas são também retratadas o “homem brasileiro” na sua especificidade e em seus tipos característicos. Mais precisamente, na especificidade dos tipos físicos, raciais, dos movimentos, dos gestos, da postura, enfim, da linguagem corporal representada. Um sentimento de familiaridade se desprende das imagens de Glauco Rodrigues, um reconhecimento de que é de nós, brasileiros, precisamente que se trata.
Ora, os amálgamas ao mesmo tempo fundem e distanciam seus elementos. Nas superfícies claras e precisas destas gravuras um efeito de contemplação, de distância e uma espécie de “estranhamento familiar” são dados. A contemplação cria um “outro” no qual, paradoxalmente, reconhecemos a nós mesmos, algo do que fomos e do que somos como memória viva, na dimensão da memória do presente, e como figuras no / do tempo e espaço.
A utilização de fontes gráficas e fotográficas na criação destas obras, o uso da linguagem da gravura refletindo, superpondo em camadas as mudanças nas tecnologias da imagem (da xilogravura e da litografia, até a serigrafia e a fotografia e suas diversas relações, espelhamentos, retomadas, transformações, etc.), e, portanto, na imagem ela mesma, sua identidade e função, a citação – recriação de imagens ou elementos de imagens do passado, da história da arte brasileira como a citação do célebre O Derrubador Brasileiro (1879) de Almeida Júnior, por exemplo, de fontes cotidianas, da cultura de massas, etc., duplicam no plano da linguagem, da forma estética e dos procedimentos artísticos os conteúdos híbridos assinalados. A representação aqui se espelha e se desdobra a si mesma, e se questiona de modo sutil.
O que aqui chamamos “corpo do Brasil” nos remete a algumas observações de Gilda de Mello e Souza num célebre ensaio sobre a obra de Almeida Júnior (1850-1899).[ 1] A autora via no pintor paulista e seus tipos caipiras não apenas a representação familiar ou “pitoresca” dos tipos físicos característicos, mas a figuração dos gestos, das posturas, aquilo que ela denominou, citando Marcel Mauss, de as “técnicas do corpo”.
Almeida Júnior soube retratar o caboclo brasileiro, o caipira de São Paulo, nas suas posturas corporais próprias, únicas ou específicas e nos detalhes dos gestos característicos. Para além do anedótico, da documentação exterior da paisagem e do tipo físico, das vestimentas, da arquitetura local, etc., é a familiaridade, a intimidade do gesto e da expressão corporal captada e recriada pelo pintor o que individualizava a sua representação e adicionava, assim, à linguagem pictórica estabelecida, uma nota original que recriava, de formas mais ou menos sutis, a linguagem artística vigente, de fonte europeia, tendo em vista a fidelidade ao tema nativo.
Tratava-se de uma inflexão da norma, mas no caso, crucial, pois determinava do interior da obra uma nova configuração da linguagem, como observou Gilda Mello e Souza, ou ao menos, uma abertura de possibilidades para tal.
Podemos afirmar que a questão da arte brasileira no exemplo de Almeida Júnior, como examinado por Gilda Mello e Souza, ganhava uma inflexão diversa: ela surge no que poderíamos denominar de interstícios ou intervalos dos estilos e ideias, mesmo aquelas “fora do lugar”, surge dos próprios materiais representados, ou, fenomenologicamente, das coisas elas mesmas, na medida em que, reverberando na sensibilidade do artista, elas o obrigavam a ajustar ou modificar a linguagem pictórica ou a norma estilística para expressar uma experiência inédita.
Seria certamente demasiado insinuar que adentramos aqui a pré-história da Antropofagia e do Tropicalismo. E, no entanto…
No contexto do século XX tardio em transição, a imagem do Brasil na obra gráfica de Glauco Rodrigues por um lado se faz corpo, algo como, na sua familiaridade, um dado (quase) inerte ou matéria (quase) bruta da nossa experiência particular.
Ao mesmo tempo, nestas obras, o corpo do Brasil se transforma em imagem, anunciando a pós-modernidade e nela a questão das relações, dos amalgamas, tensões e conflitos entre imagem e experiência: algo como uma espécie de “sociedade do espetáculo” híbrida e brasileira.
*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.
Versão revista e ampliada de artigo publicado em 2011 no extinto blog Malazartes.
Nota
[1] Souza, G. de M. (1974). Pintura Brasileira contemporânea: os precusores. Discurso, 5(5), 119-130.