Dahomey

Frame de "Dahomey"/ Divulgação
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o documentário dirigido por Mati Diop

A restituição de obras de arte de povos colonizados é assunto que insiste em retornar, um incômodo que perambula pelos museus ocidentais, sobretudo Europa e Estados Unidos, como signo de fratura – histórica e civilizacional. O assunto é, também, signo da violência colonialista que habitou o planeta nos últimos séculos, e continua a habitar, travestido de novas formas e estratégias. Pois Dahomey, o documentário que a cineasta franco-senegalesa Mati Diop completou em 2024, danifica as percepções que se reúnem em torno desse incômodo, propondo-se, de certa forma, como um incômodo do incômodo.

Em novembro de 2021, 61 anos após o Benim conquistar a independência do império francês, 26 das milhares de antiguidades nacionais saqueadas foram devolvidas pela França ao seu lar africano: 26 entre 7 mil, para ser mais preciso, como informa o filme. Foi um gesto soi-disant altruísta e magnânimo do presidente Emmanuel Macron.

Dahomey começa com sequências assépticas e lentas da remoção dessas estátuas, que habitavam o Museu do Quai Branly, dedicado às “artes primeiras” – projeto ambicioso executado por Jacques Chirac e realizado pelo arquiteto Jean Nouvel, inaugurado em 20 de junho de 2006. São 40.600 m², acervo de 300.000 obras, das quais 3.500 em exposição.

Não é pouca coisa: anos e anos de colonialismo implacável que os franceses – logo os franceses, o berço do iluminismo – engajaram-se sem tréguas, e que sobrevive hoje, espalhado em pequenas posses pelo mundo, quase como uma caricatura. A maior fronteira da França (Guiana francesa), hélas, é com o Brasil. Não se sabe quantos desses 300 mil artefatos são resultado de pilhagens.

Um pouco antes da inauguração do Branly, o jornal Le Monde revelou que inúmeras peças eram provenientes de roubos na Nigéria, compradas em mercado clandestino. Isso não abalou Jacques Chirac, eufórico com a obra (governantes franceses valorizam muito serem lembrados por landmarks culturais).

A primeira narração do filme é uma dublagem soturna na língua Fon do rei Guezô (ou Guézo), que mandou no Daomé de 1818 até 1859. Indignado e perplexo pelo rótulo de “26”, ele se lamenta da longa noite do cativeiro nas cavernas do mundo civilizado – e deixa-se embalar, cercado de cuidados museológicos, para seu retorno à terra natal. Guezô é conhecido pela riqueza que acumulou negociando escravizados que capturava.

Dois próceres reais se juntam a Guezô para a viagem, ambos seus descendentes: Glelê, rei de 1858 e 1889, esculpido com cabeça de leão, e Beanzim, que liderou a resistência contra a invasão francesa de 1892 – representado como meio homem, meio tubarão.

O êxtase estético que Jacques Chirac e os milhões de visitantes experimentam ao contemplar a estatutária “primeira” provavelmente tem pouco ou nada a ver com o significado das peças na sua origem. Uma maneira de situar esse deslocamento seria pensar o sujeito-espectador dos museus ancorado numa espécie de metafísica popular vigente no Ocidente, como sugere o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro – metafísica que enxerga todo saber “outro” como uma versão precária de si mesmo.

É o “perspectivismo”, de acordo com o qual “segundo diferentes etnias, os porcos, por exemplo, se viam uns aos outros como gente. E enxergavam os humanos, seus predadores, como onça. As onças, por sua vez, viam a si mesmas e às outras onças como gente. Para elas, contudo, os índios eram tapires ou pecaris – eram presa. Essa lógica não se restringia aos animais. Aplicava-se aos espíritos, que veem os homens como caça, e também aos deuses e aos mortos”.

Dahomey, nessa ótica, seria um documentário “perspectivista”: as estátuas se veem umas às outras como humanos, e enxergam os humanos como predadores. O percurso da volta, no contrafluxo das pilhagens originárias, dos escravizados desterrados da África, dos emigrantes que buscam trabalho nos países industrializados – é um percurso que se organiza em torno desse mundo agora descentrado, sem o sujeito do conhecimento organizador do olhar que estamos acostumados a ver nos documentários.

Mati Diop não livra ninguém da virada de mesa que documenta: ou melhor, Guezô e companheiros é que não livram ninguém. A recepção das estátuas no Benim, dos festejos na rua à frieza da exibição no palácio – tudo concorre para deixar as estátuas ainda mais perplexas. Uma assembleia estudantil na Universidade de Abomey-Calavi, a principal no oeste africano do país, é o terço final de Dahomey: contradições, heranças culturais, saturação de argumentos – a história, afinal, é o “presente em construção”, constata Guezô.

“Os colonizadores roubaram nossa alma”, afirmou um dos presentes.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]

Referência


Dahomey
França, 2024, Documentário, 67 minutos.
Direção: Mati Diop


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A desqualificação da filosofia brasileirafilosofia brasileira 25/12/2024 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: Em nenhum momento a ideia dos criadores do Departamento de Filosofia da USP foi formar única e exclusivamente leitores e intérpretes de texto filosófico europeu, mas foi o que acabou acontecendo
  • A faca no pescoçopexels-minan1398-694740 19/12/2024 Por MARILENA DE SOUZA CHAUI; LUÍS CÉSAR OLIVA & HOMERO SANTIAGO: Reflexões sobre o novo modelo de pós-graduação das universidades públicas paulistas.
  • Nota sobre o ataque especulativoJoão Carlos Brum Torres 20/12/2024 Por JOÃO CARLOS BRUM TORRES: A disparada do dólar é um ataque especulativo do mais poderoso dos atores políticos do Brasil, o partido do mercado, cujo objetivo é impedir que o atual governo venha a haurir qualquer reconhecimento pelo excelente momento da economia
  • A chantagem do andar de cimaandar de cima 20/12/2024 Por LEDA PAULANI: Campos Neto cumpriu com bravura covarde sua missão pusilânime de iniciar o movimento de reversão das expectativas positivas que se desenhavam para o cenário econômico sob o governo Lula
  • O pobre de direita e a miséria da sociologiadireita 20/12/2024 Por RENATO NUCCI JR. & LEONARDO SACRAMENTO: O termo pobre de direita é um meio de segmentos da esquerda se livrar da responsabilidade que têm pela situação política e social que nos encontramos
  • A sociologia da ficção científicaCultura_ 22/12/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: A Ficção científica é o gênero literário que talvez mais nos faça pensar em saídas para problemas possivelmente insolúveis
  • Quem critica o governo ajuda o fascismo?elenira_vilela 18/12/2024 Por ELENIRA VILELA: Há uma esquerda que gosta de se autoproclamar revolucionária e radical, mas que é apenas sectária e coloca sua auto construção como projeto estratégico
  • Seria possível uma transição gradual ao socialismo?Valério Arcary 25/12/2024 PorVALERIO ARCARY: Para as correntes marxistas que excluíram a hipótese de uma transição gradualista, que tinha um enfoque mais politicamente evolucionista que econômico, o problema teórico permanecia colocado
  • Realismo neoliberalDennis de Oliveira_edited 21/12/2024 Por DENNIS DE OLIVEIRA: O embate ideológico entre defesa do capital e luta contra o capital se reduz a quem defende só os ricos ou quem se preocupa com a pobreza
  • A cultura dos juros altosLuiz Carlos Bresser-Pereira 19/12/2024 Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: A economia brasileira está presa em círculo vicioso da quase estagnação

Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES

Assine nossa newsletter!
Receba um resumo dos artigos

direto em seu email!