Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
É necessário atender à esperança de mobilidade social por conta própria, inclusive com educação financeira, dos mais pobres
A definição mais citada de “financeirização” caracteriza-a como “o papel crescente das motivações financeiras, dos mercados financeiros, dos atores financeiros e das instituições financeiras no funcionamento das economias domésticas e internacionais”. Essa definição destaca a centralidade das finanças na economia contemporânea e pressupõe a influência de agentes e instituições financeiras em quase todas as esferas da sociedade em uma abrangência absurda.
Essa reação contra uma evolução sistêmica do capitalismo faz lembrar o ludismo. Foi um movimento de trabalhadores ingleses, ocorrido no século XIX, durante a Revolução Industrial, no qual os participantes protestavam contra a industrialização e a mecanização através da destruição de máquinas de algumas fábricas e ameaças aos seus donos.
O nome do movimento viria de Ned Ludd, sem se saber se era um nome de um líder sindical ou se era fictício, usado para preservar o anonimato dos participantes. O nome surgiu em 1811, quando foram quebrados mais teares e cartas ameaçadoras foram enviadas contra a adoção irrefreável da evolução tecnológica.
Os ludistas abominavam as máquinas por roubarem empregos e reduzirem os salários tal com os reacionários contemporâneos contra o avanço da história com a (mal)dita “financeirização”. Paradoxalmente, a exploração dos trabalhadores na Revolução Industrial foi marcada por condições de trabalho precárias, ambiente insalubre, jornada de trabalho excessivamente longa, salários baixos, falta de direitos (a férias, licenças médicas ou aposentadoria) e trabalho infantil.
Hoje, propor a reversibilidade do tempo – o capitalismo financeiro retomar ao capitalismo industrial – não é só um anacronismo, mas também uma estratégia de luta trabalhista equivocada. “Conduzir para não ser conduzido” é uma postura crítica diante a ideia de “financeirização”, uma forma caricata do sistema financeiro, como resumirei aqui.
O conceito de “financeirização”, apesar de sua ampla utilização para caracterizar o capitalismo contemporâneo, merece diversas críticas. Primeiro, exige ser menos dogmático e praticar a Economia Positiva – o que é – em vez de Economia Normativa – o que deveria ser – ao analisar o conceito de uma emergência sistêmica a partir de interações de múltiplos componentes sem um comando central.
É uma configuração dinâmica – e não resultante de planejamento estatal. Surgiu gradualmente após a adoção do regime de câmbio flexível, a abertura ao comércio exterior, a atração de empresas transnacionais, enfim, a globalização neoliberal.
Esse conceito de “financeirização” ampliou-se excessivamente, sendo aplicado a uma variedade de fenômenos com relações tênues, levando à sua diluição e perda de precisão analítica. Críticos identificam “financeirização” em qualquer mudança social, econômica, política ou cultural recente, sem uma clara delimitação diante o realmente abrangido pelo conceito: as funções entrelaçadas das finanças pessoais, corporativas, públicas, bancárias e internacionais.
sem delimitar seu escopo, não o diferencia de outros processos contemporâneos, como “comodificação” (transformação de mercadorias em commodities), mercantilização, neoliberalização, privatização, desnacionalização, globalização, digitalização e precarização – entre outros “ão”…
Os denunciantes da “financeirização” colocam ênfase na experiência do capitalismo anglo-americano, isto é, na economia de mercado de capitais em lugar de economia de endividamento público e bancário, dominante nos demais países. Isso já limita a aplicabilidade do conceito a outras realidades, desconsiderando a diversidade de trajetórias e manifestações do fenômeno em diferentes contextos geográficos e históricos de predomínio de renda fixa em lugar de renda variável.
O debate sobre a produtividade do “setor financeiro”, reducionismo ao colocá-lo à parte do sistema financeiro, cujos componentes são todos os setores institucionais – indivíduos, empresas, governos, bancos e resto do mundo –, não esclarece nem faz a crítica necessária à costumeira “denúncia de financeirização”.
Enquanto alguns autores, acertadamente, defendem a financeirização representar uma mudança na forma de acumulação capitalista, com a capitalização e o recebimento de lucros (dividendos ou ganhos de capital com vendas) por meio de canais financeiros, outros, equivocadamente, a consideram um processo parasitário, extrator de valor da economia produtiva sem gerar riqueza real.
O (mal)dito “setor financeiro” é considerado improdutivo “ao se apropriar de parte do valor gerado na economia real sem contribuir para sua produção”. Quem diz isso desconhece como a alavancagem financeira é crucial para a economia de escala ao elevar empregos e multiplicar renda pelos maiores investimentos.
Na realidade, a “financeirização” contribui para o crescimento econômico ao facilitar a alocação eficiente de capital, em nível global, inclusive precificando os diversos desempenhos das transnacionais pelas cotações das participações acionárias globalizadas. Além disso, oferece gestão do dinheiro, para todos, e novos instrumentos financeiros, como o fundamental hedge cambial para atuação nessa economia global.
A “financeirização” é acusada como culpada pela maior concentração de renda e riqueza, aprofundando a desigualdade socioeconômica. Não se fala do registrado enriquecimento de todas as faixas da Pirâmide da Riqueza no século XXI. Segundo o Global Wealth Report 2024 do Crédit Suisse-UBS, em 2000, 75% dos adultos no mundo tinham riqueza média abaixo de US$ 10.000; em 2023, caiu para 39% e foi ultrapassado por 43% possuidores entre US$ 10 mil e US$ 100.000.
A pobreza é superável, embora a desigualdade não seja: o 1,5% dos 3,8 bilhões de adultos no mundo são milionários em dólares e concentram 47,5% da riqueza mundial de Pessoas Físicas. Foi estimada pelo Global Wealth Report 2024 em US$ 488 trilhões, sendo 54% dela compostos por ativos financeiros, a maioria desses em ações.
A “financeirização” levaria a uma mudança na distribuição de renda, favorecendo o capital em detrimento do trabalho, como isso não tivesse ocorrido sempre… A crescente possibilidade de recorrer a crédito para financiar moradia, educação e consumo, em um contexto de salários estagnados e políticas de bem-estar social precarizadas, possibilita a mobilidade social, mesmo se aumentar a desigualdade.
Por isso, o sistema financeiro, composto inclusive pela clientela de “empresas não-financeiras” (sic), em sua busca por lucros, exerce forte influência sobre governos e instituições internacionais. Adotam políticas públicas de modo a defender os interesses de todos os possuidores de dinheiro aplicado (“recursos de terceiros”), mas isso, de fato, ocorre em detrimento do bem-estar social dos mais pobres, necessitados de assistência social como a Renda Básica Universal (RBU)?
A dependência de fluxos de capital voláteis e a pressão para atrair investimentos estrangeiros levam à implementação de políticas de austeridade fiscal com efeito colateral de aprofundar a desigualdade em caso de redução de gastos sociais. No entanto, os críticos não verificam, empiricamente, se o aumento do IDP (Investimento Direto no País) propicia a produção local de bens industriais e serviços diversos, para explorar o mercado interno, gerando empregos e renda.
Preferem insistir na pressuposição de a busca por retornos rápidos e especulativos, no mercado financeiro, desviar recursos de investimentos produtivos, prejudicando o crescimento econômico sustentável e a geração de empregos, impactando negativamente a distribuição de renda e as oportunidades de ascensão social. Este é um erro de análise ao não se distinguir entre os mercados primários de emissões de ações e debêntures e os mercados secundários de cotações dos valores de mercado diante os valores intrínsecos.
Em resumo, a financeirização, de acordo com os críticos com “desconhecimento de causa”, isto é, de como de fato funciona o sistema financeiro, representaria “tudo de ruim” na atualidade. Os “denunciantes do capitalismo” não analisam os contra-argumentos: as funções básicas desse sistema não são úteis?
O leitor da literatura de “crítica cega” não compreende todos os mecanismos pelos quais esse processo sistêmico se desenrola. Sente a necessidade de aprofundar a análise – e pensar se há, de fato, alternativas para mitigar seus impactos negativos.
Diante o sistema financeiro, todos os seus participantes (clientes “bancarizados”) deveriam ter sim Educação Financeira para tirar proveito do novo contexto de direito à cidadania financeira. A esquerda não levantou a bandeira de luta pela mobilidade social, via empreendedorismo com direitos estabelecidos para os trabalhadores por conta própria, possibilitando a direita populista a empunhar… É necessário atender à esperança de mobilidade social por conta própria, inclusive com educação financeira, dos mais pobres.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]
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