Por ANNABELLE BONNET*
Apresentação do livro recém-reeditado de Victor Neves.
Democracia e socialismo: Carlos Nelson Coutinho em seu tempo é o principal estudo crítico, até o momento, inteiramente dedicado à obra de um dos maiores pensadores latino-americanos do século XX, Carlos Nelson Coutinho (1943-2012).
Em setecentas páginas, Victor Neves, investiga o percurso intelectual do pensador de maneira a oferecer ao leitor, nas palavras de Michael Löwy, “o primeiro estudo sistemático do conjunto da (sua) obra”. Resultado de mais de cinco anos de pesquisa, tal trabalho permite a José Paulo Netto designar seu autor como “o primeiro grande analista do pensamento teórico-político de Carlos Nelson Coutinho”.
Essa leitura constitui, portanto, uma bela oportunidade, na semana do aniversário do nascimento de Carlos Nelson Coutinho, de relembrar sua trajetória e suas ideias. Mais ainda, ela oferece uma ocasião propícia para continuar dialogando com seu legado no século XXI, e preparar caminhos futuros para a superação da forma social capitalista – tarefa reivindicada por Victor Neves no seu estudo, como motivação da sua dedicação pelo pensador.
O especialista segue, para isso, os passos de Carlos Nelson Coutinho, do seu nascimento até seu falecimento. Da sua Bahia nativa até sua ida para o Rio de Janeiro, passando pelo exílio na Itália e pelas suas influências francesas, o autor acompanha Carlos Nelson Coutinho no seu desenvolvimento teórico e político. Percorre, junto a ele, suas diversas rotas e influências teóricas, culturais e políticas, do Partido Comunista Brasileiro até o Partido Comunista Italiano, suas discussões com o pensamento econômico vinculado ao Partido Comunista Francês, sua militância no Partido dos Trabalhadores e no Partido Socialismo e Liberdade, e como cada uma dessas sendas marca sua reflexão teórico-política. Não falta, ainda, o tratamento de variados aspectos de sua remissão perene aos dois grandes filósofos comunistas do século XX, Gramsci e Lukács.
O estudo sistemático de seus textos, entrevistas com atores essenciais da vida de Carlos Nelson Coutinho e o exame minucioso de arquivos pessoais, a leitura da totalidade dos escritos publicados de Coutinho, se encontram combinados a um cuidadoso conhecimento socio-histórico e político dos contextos europeu, latino-americano e brasileiro correspondentes a cada momento da vida do intelectual. Com esse procedimento, Victor Neves explora as diversas influências e representações que forjaram a concepção de mundo de Carlos Nelson Coutinho, pensador destacado da articulação entre socialismo e democracia – ou, remetendo ao título de um de seus livros, entre marxismo e política.
O livro constitui, desse modo, uma verdadeira biografia intelectual, no seu sentido mais pleno. Longe de ser um mero estudo descritivo, a sociologia do intelectual exige, com o devido rigor investigativo armado de um consciencioso aparelho conceitual, alcançar um grande desafio: “entender um pensador no espírito do seu tempo, isto quer dizer, o sentido social da sua época que ele mesmo foi capaz de captar e sintetizar, o erguendo justamente ao nível de “intelectual representativo”. Nas palavras de Antônio Gramsci, citadas por Victor Neves, “escrever sua história significa nada mais nada menos que escrever a história geral de um país de um ponto de vista monográfico” (p. 26).
Através da história da vida e obra de Carlos Nelson Coutinho, é, de fato, mais de um século da história do Brasil que se encontra explorada, assim como a história do proletariado ocidental da segunda parte do século XX. Pensador imerso na história do proletariado, mergulhamos graças a essa biografia dentro da memória coletiva do socialismo, tantas vezes silenciada, simplificada e negada. São examinados os desafios que se propôs a enfrentar, suas diversas expressões concretas, suas contradições e também seus fracassos.
Todo/a pensador/a marxista da segunda parte do século XX teve de enfrentar um conjunto de questões, herdadas pelas novas gerações, e é nessa perspectiva que Victor Neves abraça essa história coletiva. Dentre as mais importantes, o livro destaca as seguintes interrogações: como interpretar as derrotas do assim chamado “socialismo real” do século XX? Existe ainda uma saída possível para superar o modo de vida capitalista? O que podemos aprender do passado e em que marcos é preciso elaborar a emancipação dos trabalhadores e das trabalhadoras? Como nossas derrotas (e nossas vitórias) determinam nossa própria autoimagem e nossos modos de intervir sobre o mundo que queremos transformar? Em que medida a democracia liberal pode ser disputada para por fim à exploração humana?
O autor nos lembra que essa última pergunta aparece, muitas vezes, numa realidade mais imediata, sob a forma de uma afirmação autoevidente, como se fosse desprovida de história e de debates dentro do próprio proletariado. Ele nos mostra, a cada página, que a obra de Carlos Nelson Coutinho é a comprovação do contrário. O pensador se destacou por incidir no processo de confluência em direção a um amplo consenso democrático, pensado como caminho necessário permitindo chegar ao socialismo. Tal teoria e posicionamento não remetem a uma evidência a priori, mas são fruto de um momento histórico, no qual uma concepção do Estado se afirmou e orientou estratégias políticas, plasmando-se no Brasil na assim chamada “estratégia democrático-popular”.
E, como lembra Mauro Iasi, a procura dos fundamentos históricos e sociais dos posicionamentos políticos os mais consensuais, constitui uma etapa fundamental para “compreender o período onde estamos e as possibilidades do seu devir” (p. 19), realizando junto às classes trabalhadoras um inventário de seu próprio percurso. Cabe ao leitor usar as ferramentas, oferecidas por esse livro, para explorar os caminhos percorridos e as possibilidades do devir dessa estratégia.
*Annabelle Bonnet é pesquisadora associada da EHESS, pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFES e professora colaboradora do departamento de filosofia da UFES.
Referência
Victor Neves. Democracia e socialismo: Carlos Nelson Coutinho em seu tempo. 2ª edição. Marília, Lutas anticapital, 2021, 700 págs.