Por RICARDO ABRAMOVAY*
Dois caminhos para repensar a infraestrutura brasileira.
A infraestrutura das sociedades contemporâneas será cada vez menos a ossatura e cada vez mais a inteligência do crescimento econômico. Não se trata de oferecer, de forma genérica, os bens públicos para que o setor privado possa expandir suas iniciativas, mas sim de moldar estas iniciativas em direção a finalidades que envolvem os dois maiores desafios contemporâneos: o avanço da crise climática e o aprofundamento das desigualdades. Que isso atinja a própria concepção do que significam e quais devem ser as infraestruturas que estão desenhando nosso destino representa imenso avanço democrático, do qual o Brasil está se distanciando.
O que está em jogo não é só o fato de que a infraestrutura dá lugar a elefantes brancos e corrupção em várias partes do mundo. Megaprojetos padecem costumeiramente de um viés otimista, que, como mostra o trabalho de pesquisadores da UFMG e da USP para o Tribunal de Contas da União, faz com que seus proponentes inflem seus benefícios e subestimem seus custos.
O psicólogo Daniel Kahneman, prêmio Nobel de Economia, chamou de falácia do planejamento a tendência de os responsáveis pelos megaprojetos adotarem os pontos de vista de atores interessados em sua realização sem uma real avaliação das vantagens das alternativas. Pesquisadores da Universidade de Oxford apoiam-se amplamente no trabalho de Kahneman para explicar que os orçamentos inicialmente previstos para a construção de hidrelétricas, por exemplo, não chegam, na maior parte dos casos examinados, à metade de seus custos reais.
Mas as mudanças que atingem o próprio conceito contemporâneo de infraestrutura vão muito além da exigência óbvia de que elas não abram caminho à corrupção, a obras abandonadas e a custos exorbitantes. Duas transformações fundamentais estão em curso.
A primeira dela materializa-se nas discussões que têm lugar hoje na sociedade norte-americana em torno da economia do cuidado. Como resultado do trabalho de inúmeras organizações da sociedade civil, a economia do cuidado não se limita a promover transferência de renda para populações pobres e para os que foram mais duramente atingidos pela pandemia. Esta transferência é importante e teve, nos EUA, como foco principal, as famílias com crianças — o que deve resultar na impressionante redução da pobreza infantil norte-americana pela metade em 2021.
Mas o plano Biden procura erguer formas duráveis para cuidar melhor das crianças, dos idosos e dos portadores de deficiência. Isso significa ampliar os investimentos em creches e escolas, o que permite que as mulheres voltem ao mercado de trabalho, já que boa parte delas haviam sido obrigadas a abandonar seus cargos função da pandemia.
O importante é que o cuidado com as pessoas é uma responsabilidade do poder público e não apenas das famílias e das comunidades locais. É o Estado que oferece as condições materiais e a formação de profissionais para que os idosos e os portadores de necessidades especiais tenham vida digna e, sobretudo, para que as crianças recebam atenção e ensino de qualidade, por profissionais preparados para isso.
No plano Biden, estes itens não são tratados como gastos, mas como investimentos em infraestrutura. Eles são tão importantes como as rodovias, os aeroportos ou a energia. Ao mesmo tempo, eles têm a intenção explícita de se opor à discriminação racial e de gênero que marca tão fortemente o mercado de trabalho. Não é à toa que tratar os investimentos no cuidado com as pessoas como parte da infraestrutura vem junto com a iniciativa de criar um Conselho de Política de Gênereo, ligado à Casa Branca, para promover a igualdade nas políticas externas e internacionais.
A segunda transformação no conceito de infraestrutura tem por eixo central mudar a relação entre sociedade e natureza. Diversas organizações multilaterais (o G20, o Banco Interamericano, a Comissão Global para a Economia e o Clima, entre outras) convergem para a seguinte constatação: o mundo deve investir, entre 2015 e 2030, algo como US$ 90 trilhões em infraestrutura. A maior parte deste investimento será nos países em desenvolvimento, onde se encontram as mais importantes necessidades não atendidas em transportes, energia, comunicações, saúde e educação.
Pelos padrões até aqui predominantes, estes investimentos têm a vocação de agravar a crise climática e a erosão da biodiversidade. Esta constatação é especialmente importante para a Amazônia. Uma análise de 75 projetos rodoviários na região, totalizando 12 mil quilômetros, mostra que todos têm impactos negativos sobre as áreas florestais. É à beira das rodovias que se concentra 80% do desmatamento na Amazônia. E mesmo que não se considerem os impactos sobre a biodiversidade, 45% destes projetos são economicamente inconsistentes, confirmando o viés otimista estudado por Kahneman.
Os trabalhos recentes do World Resources Institute e do Climate Policy Initiative corroboram estes resultados: a ideia de que as infraestruturas convencionais materializadas em megaprojetos criam empregos durante sua construção e estimulam a iniciativa privada depois de prontas — contribuindo, portanto, para o crescimento econômico — é criticada globalmente, e mostra-se particularmente perversa na Amazônia. Os resultados desta forma de conceber e implantar a infraestrutura têm sido a destruição florestal, a exploração predatória de recursos minerais e o empobrecimento da região (e da maioria das pessoas que ali vivem).
A infraestrutura só vai se converter em inteligência — mais que em ossatura — do crescimento econômico se sua definição passar por um questionamento sério sobre quais são os valores ético-normativos em que se apoiam os projetos de infraestrutura. A resposta das organizações multilaterais e dos governos que estão reformulando a visão contemporânea sobre infraestrutura pode ser resumida numa proposição: o valor da infraestrutura do Século 21 está em sua capacidade de regenerar os tecidos socioambientais que, até aqui, as formas convencionais e tão frequentemente predatórias de crescimento econômico têm destruído.
Orientar-se por este valor não significa apenas empenhar-se em zerar imediatamente o desmatamento (na Amazônia e no Cerrado), interromper o ataque aos povos indígenas e desmantelar a cadeia da criminalidade, da grilagem, do garimpo ilegal e das milícias hoje tão fortes na Amazônia. Significa, antes de tudo, criar mecanismos para que a infraestrutura na Amazônia seja, mais que um meio para o trânsito de commodities agrícolas ou para a produção de energia, uma forma de atender às demandas dos trinta milhões de brasileiros que aí vivem e, ao mesmo tempo, fortalecer a economia da sociobiodiversidade florestal.
*Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Muito além da economia verde (Planeta Sustentável).
Publicado originalmente no site Outras Palavras.