Dias perigosos

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Por VALERIO ARCARY*

O bolsonarismo pode, se encurralado, tentar a precipitação de um autogolpe. Mas não há, também, qualquer garantia de que uma aventura bonapartista possa ser bem sucedida

O pedido de impeachment unificado foi uma iniciativa inteligente. Apresentado em conjunto por todos os partidos de esquerda com raízes entre os trabalhadores e referência no socialismo, portanto, um mesmo campo de classe, foi um gesto firme, maduro, ainda que simbólico. Porque se trata de uma tática parlamentar que ainda não pode prosperar. Mas tranquiliza, e ajuda um pouco a levantar a moral da militância de esquerda que está inquieta, atormentada, e ansiosa. Todos sabemos que Bolsonaro não vai cair de maduro, e há perigo “na esquina”. Quais são os possíveis desdobramentos da divulgação do vídeo da reunião ministerial para o futuro de Bolsonaro? Confirma a denúncia de uma intenção presidencial de controle pessoal da Polícia Federal, mas não foi nem o primeiro, nem será o último crime de responsabilidade de Bolsonaro, portanto, é insuficiente, por enquanto, para a abertura “a frio” de um processo de impeachment pelo Congresso. Ao mesmo tempo, não se deve diminuir o impacto do discurso-agitação de Bolsonaro sobre a radicalização e coesão da corrente neofascista, que assume a forma de um partido de combate em construção. O fator decisivo da evolução da conjuntura continuará a ser o impacto catastrófico da pandemia. Um cenário devastador está se desenhando no horizonte dos próximos meses. A dinâmica de enfraquecimento de Bolsonaro favorece a luta pela derrubada do governo. Mas este desenlace é ainda incerto, a despeito da tragédia humanitária, porque não é possível sem uma mudança qualitativa na relação social de forças que permanece defensiva. O alinhamento dos militares da ativa com os generais do Palácio indica que a luta contra Bolsonaro será o momento mais perigoso dos últimos trinta e cinco anos.

A oposição de esquerda a Bolsonaro teve agilidade em fazer o giro para o Fora Bolsonaro, e a lucidez de apresentar um pedido em comum de impeachment, mas permanece dividida sobre a tática. Muitos erros, contudo, foram cometidos, sendo o principal, porque é recorrente, a subestimação de Bolsonaro. O governo perdeu força nos últimos dois meses, mas mantém posições. Atribuir aos partidos de esquerda a responsabilidade pela divisão da oposição não é honesto. Quem rejeitou assinar junto com a esquerda o pedido unificado de impeachment é que deve se explicar. Não são ambições pessoais, ou excessos sectários, ou rivalidades partidárias que explicam a divisão. De qualquer forma, quem divide a oposição não é a pergunta chave na conjuntura. Como vamos derrotar Bolsonaro é a pergunta que importa. Podemos nos deixar conduzir pelos acontecimentos. Mas podemos tentar ter a iniciativa sobre os acontecimentos. As posições de força são, evidentemente, decisivas. E estamos em uma situação reacionária, desfavorável, defensiva. Mas as relações de força não são estáticas. Elas flutuam. Podem evoluir para melhor ou pior. A orientação, a ação, a vontade conta muito. Fazem diferença. Nossa política tem como objetivo acumular mais forças. A questão é como. Isso exige discutir qual é a melhor tática, a mais eficaz, a mais inteligente. Há três em discussão. Uma parcela da esquerda combativa defende a ofensiva permanente. Uma maioria das lideranças dos maiores partidos defende a tática da Frente Ampla, inclusive eleitoral, depois que a classe dominante se dividiu e uma fração passou para a oposição. Por último, a Frente Única de esquerda. Qual é a mais correta?

O caminho passa pelo desdobramento de duas iniciativas. Mas uma delas é estratégica: é a Frente Única de Esquerda, porque permite a defesa de um programa comum, e uma saída para a questão do poder. A outra é tática: a unidade de ação ampla, amplíssima, “até doer”, aliás, como em 1984, quando das Diretas Já, nas redes, janelas, nas instituições e, sobretudo, quando possível, nas ruas. A unidade de ação nas instituições entre a oposição de esquerda e a oposição de direita é útil para fortalecer a oposição, portanto, a acumulação de forças. A unidade de ação obedece a um objetivo central: dividir o campo do inimigo. Atrair para a oposição a Bolsonaro o maior número possível de forças que estiveram associados ao plano reacionário que passou pelo impeachment de Dilma Rousseff; apoiaram o governo Temer; terminaram se associando a Bolsonaro na campanha eleitoral; e lhe deram sustentação até o impacto da pandemia. Aqueles que se deslocaram quando Bolsonaro abraçou o negacionismo, e acelerou os planos bonapartistas ao avançar para um controle pessoal da Polícia Federal. Dividir o campo do inimigo é importante. Mas é insuficiente. Porque é preciso entender que a oposição de direita não quer derrubar Bolsonaro. Pelo menos, por enquanto.

Há na esquerda quem se oponha à tática de unidade de ação. Defendem uma ofensiva permanente, porque discordam da apreciação que a situação é reacionária. É uma posição equivocada. Devemos golpear juntos com a oposição burguesa exigindo a investigação dos crimes de responsabilidade de Bolsonaro, e apoiando decisões do STF que tentam limitar a escalada golpista dos neofascistas. Porém, golpear juntos, não é o mesmo que marchar juntos, porque estes acordos são pontuais. Não é possível marchar juntos porque a estratégia da esquerda deve ser derrubar Bolsonaro, e derrotar o neofascismo Nada menos do que isso. A esquerda não pode, portanto, renunciar à luta pela direção da oposição.

Mas há na esquerda, também, lideranças, entre as mais importantes, que pensam o contrário. Há quem defenda que a melhor estratégia é uma paciente Frente Ampla eleitoral, agora nas municipais e, também, para 2022, apostando em um desgaste lento, gradual e contínuo do governo Bolsonaro, para evitar riscos de confrontos antes da hora. Sua palavra de ordem é “não provocar”. Quem aposta nessa estratégia defende que a esquerda deve sinalizar, para as forças burguesas que se deslocaram para a oposição, que aceita a sua direção contra o inimigo comum. Aceitam o papel de “força auxiliar”. Enganam-se sobre o inimigo e, também, sobre os aliados. Parece prudência, mas revela uma incompreensão do que é o bolsonarismo. O bolsonarismo não é uma corrente eleitoral, é o neofascismo. Preparam-se e não hesitarão em precipitar um ataque frontal às liberdades democráticas, quando se encurralados sentirem, antes de 2022. E nem Maia, nem ninguém na oposição burguesa está disposto à confrontação. Esta é a polêmica.

A derrota do governo Bolsonaro só é possível se a corrente neofascista que o apoia for contida, isolada, reprimida e desmoralizada. Há um partido neofascista militante em construção como força de choque ao serviço de um projeto de autogolpe. São inflexíveis, sectários, irados, enfurecidos, portanto, incontíveis. Sua exaltação obedece a um plano de disseminar o ódio e impor o medo. Preparam-se para a luta pelo poder. Apoiam-se em uma corrente de massas reacionária. Não respeitam nada, a não ser a força. E têm como estratégia destruir a esquerda. Toda a esquerda. Os ativistas dos movimentos ambientalistas, feministas, negros, LGBT’s, estudantis, populares e sindicais. Os partidos mais moderados e os mais radicais. Não se deixarão intimidar por decisões do Congresso ou do STF. Só podem ser derrotados por uma força militante de esquerda motivada, combativa, decidida, e inabalável. Enganam-se, dramaticamente, aqueles que calculam que podemos escolher o terreno em que iremos medir forças com o bolsonarismo, e devemos priorizar o eleitoral. A disputa nas ruas não é possível nas condições de quarentena, mas será em algum momento, inevitável. A luta política contra os neofascistas se dará em todos os espaços: nas instituições, nas eleições, mas será decidida pela força social de choque que for mais poderosa na hora das mobilizações de massas. Esta mobilização contra os fascistas só poderá galvanizar as massas populares se, além da defesa das liberdades democráticas, incluir propostas que respondam aos anseios mais sentidos. “Em defesa do Congresso e do STF” vai ser difícil convencer os trabalhadores a sair às ruas.

Existem três campos políticos em disputa pela liderança da oposição a Bolsonaro. O que mais se fortaleceu, até o momento, é o de direita liberal liderado por Maia e Dória, essencialmente, pelas posições institucionais de poder que ocupam, e lhes garantem visibilidade, e disputam o apoio nas camadas médias conservadoras com a extrema-direita. Não querem derrubar Bolsonaro, pelo menos, por enquanto. O segundo é o bloco articulado por Ciro Gomes e PDT, com o PSB de Paulo Câmara e Siqueira, o PV (Partido Verde) e a Rede de Marina Silva, em torno de uma plataforma de centro-esquerda, e uma aposta nas camadas médias progressistas. Podem apoiar um impeachment contra Bolsonaro, antes de 2022, mas não estão dispostos a mobilizações nas ruas contra os neofascistas, porque temem ser arrastados como força auxiliar da esquerda, em geral, e do PT, em especial. O terceiro é o da esquerda, liderado pela ação das Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo que acertaram um programa comum, onde o PT é o maior partido, mas sem a hegemonia das décadas passadas, pelo protagonismo de movimentos sociais de moradia, de mulheres, negros, estudantis, LGBT’s, e ambientalistas, além do fortalecimento relativo da autoridade do PSol, e que encontram audiência na classe trabalhadora organizada. Dentro deste terceiro campo dele há defensores das três táticas. O PCdB é uma componente histórico e importante da esquerda, mas tem tentado cumprir o papel de facilitador de uma relação entre os três campos, mantendo relativa equidistância.

Estamos diante do dilema: qual será a contradição social decisiva na luta para derrotar Bolsonaro? As contradições internas na classe dominante, ou a contradição entre as forças do capital e do trabalho? Frente Única de Esquerda ou Frente Ampla? (a) O argumento mais forte em defesa da tática da Frente Ampla é que, se for amplíssima, portanto, incluindo partidos que apoiaram o golpe de 2016, e que não se opuseram ao governo Temer, haveria mais chances eleitorais. Não é verdade. Pode ser que tenha mais votos, mas pode, também, não ser. Não há garantia alguma. Depende de qual for a conjuntura pós-pandemia. E quem pensa que sabe como ela vai ser está blefando. As eleições municipais não serão “normais”. Ninguém pode hoje prever qual será o cenário político nos próximos meses. Ela será definida, essencialmente, pelo impacto devastador da pandemia na forma de uma calamidade sanitária. Será terrível, mas a escala faz diferença. Dezenas ou até centenas de milhares de mortos antes das eleições? A naturalização da tragédia será muito difícil. Portanto, a politização do balanço das políticas públicas será inexorável. O centro da agitação da esquerda deverá ser a nacionalização da disputa eleitoral para colocar no colo de Bolsonaro a responsabilidade; (b) Qualquer acordo eleitoral em primeiro turno para as principais capitais este ano está condicionado pela perspectiva de 2022.  A discussão apareceu na sua forma clara com a insistência de que o PT não deveria ter candidato em 2018, e apoiar Ciro Gomes. O PCdB foi, na esquerda, quem a fez, coerentemente, mas depois recuou. A pré-candidatura de Manuela d’Ávila obedecia a esta tática: pressionar por uma aliança mais ampla que só seria possível se o PT admitisse, mais cedo, que Lula não poderia ser candidato, e aceitasse apoiar Ciro Gomes, em vez de lançar Haddad. O debate da Frente Ampla nas municipais deste ano antecipa a polêmica de 2022 e, portanto, a discussão se é legítimo ou não Lula lutar pelos seus direitos políticos para poder ser candidato. Porque só é possível uma Frente Ampla, se o PT não tiver candidato. Lula já admitiu, hipoteticamente, a possibilidade de renúncia, em função da idade. Mas a questão fundamental é que será muito difícil uma vitória no STF, depois que Moro rompeu com o governo para proteger a LavaJato; (c) a questão da tática eleitoral deve obedecer a um cálculo de estratégia política, e não o contrário. A questão central da luta política é sempre como abrir o caminho para a luta pelo poder. Um governo que respeite a arquitetura da divisão de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário, e no qual as Forças Armadas voltem para os quartéis, seria progressivo, mas não é o bastante. A esquerda tem o direito de querer lutar por um governo de esquerda. A ideia de que uma submissão da esquerda ao centro seria transitória, em uma longa marcha de acumulação de forças, é uma aposta errada. Por várias razões. A principal é que a incerteza da conjuntura não diminui a possibilidade de que Bolsonaro não venha a concluir o seu mandato. Não há razão alguma, tampouco, para desconsiderar a possibilidade de que o bolsonarismo possa, se encurralado, tentar a precipitação de um autogolpe. Mas não há, também, qualquer garantia de que uma aventura bonapartista possa ser bem sucedida.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de As esquinas perigosas da história (Xamã)

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