Diplomas para os que resistiram

Heleny Guariba
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Heleny Guariba entrará na lista dos ex-alunos assassinados, aqueles que já tinham se formado quando foram alcançados pelas garras da repressão

A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo acaba de atribuir diplomas póstumos a todos os seus alunos que foram assassinados pela ditadura. E foram muitos, 15 no total, três deles meus alunos, dando a essa unidade de ensino o sinistro recorde dentre todas as do país.

Faz cerca de meio século – mas nem por isso empana-se o feito daqueles jovens cheios de desprendimento, que doaram suas vidas à luta pela liberdade.

A cerimônia contou com uma mesa composta pelas mais altas autoridades da Universidade, na figura de reitor e vice-reitora, além do diretor da unidade. Não faltaram as presidentes da UNE (União Nacional dos Estudantes), da UEE (União Estadual dos Estudantes) e do DCE-USP (Diretório Central dos Estudantes da USP).

Trazer os estudantes para a cerimonia foi uma ótima ideia. Eles vieram organizados e comentavam a cerimônia escandindo slogans rimados, dando vida a uma tão triste ocasião, trazendo para o evento a vibração de um ato público. A organização do evento foi impecável: investigou e achou familiares ou outras relações de todos os 15.

Vêm de longe os movimentos sociais que se encarregaram, com pertinácia e brio, de manter viva a chama da denúncia do crime cometido contra esses jovens. Em geral são os familiares que portam a tocha da justiça. Criaram-se, ao longo do tempo, comitês reivindicatórios que processaram o Estado e quem necessário fosse, perdendo ou ganhando, mas a cada passo avançando na luta. Faz meio século, são eventos do início da década de 1970. Aos poucos, o Estado foi tendendo a reconhecer sua responsabilidade nos crimes – mas ainda é grande o número de “desaparecidos”, quando não acusados de suicídio ou de fuga com acidente.

A USP criou sua própria Comissão da Verdade para apurar os fatos, constituída por historiadores e juristas. O resultado foi a monumental edição de um Relatório em 10 volumes, disponível na internet, no qual cabe à FFLCH um volume inteiro, o de número 7. Por ali se vê como foi cruel a repressão que se abateu sobre a escola.

Entre os precursores figurou o empenho extraordinário da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, cujo presidente, o deputado Adriano Diogo, coordenou os trabalhos e deu-lhes visibilidade, ao realizar no auditório da Assembleia Legislativa as sessões que celebraram cada morto. A solenidade, que punha na mesa diretora dos trabalhos os familiares do morto, celebrava sua vida com dedicação. Assisti a duas delas, a de Norberto Nehring e a de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, e posso atestar sua alta dignidade.

No caso da FFLCH, houve alguma hesitação, gerando controvérsias logo esclarecidas, quanto à inclusão do nome de minha amiga Heleny Telles Guariba, aluna de Filosofia. Heleny Guariba, após voltar de um estágio no Théâtre de la cité, de Roger Planchon, na França, estava trabalhando em Santo André, no teatro da Prefeitura, encenando uma peça de Molière, Jorge Dandin. A montagem ganhou todos os prêmios paulistas daquele ano. Heleny Guariba ainda dava aulas e fazia oficinas no seminário de dramaturgia do Teatro de Arena, bem como na Aliança Francesa, disseminando os ensinamentos de teatro brechtiano que tinha aprendido na França.

Hoje seu nome ilustra várias instituições, como o Auditório Heleny Guariba, da Prefeitura de Santo André, em reconhecimento de sua dedicação ao desenvolvimento do teatro local. Na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, fica o Studio Heleny Guariba e em Diadema o Centro Cultural leva seu nome.

Pois bem: seu nome foi incluído na lista dos alunos assassinados, até que se descobriu que Heleny Guariba já tinha se formado. Seu nome foi então retirado da lista, mas muito se discutiu a razão disso. Agora, ela entrará na lista não dos alunos, mas dos ex-alunos assassinados, aqueles que já tinham se formado quando foram alcançados pelas garras da repressão.

São vários afora Heleny, inclusive meus amigos e companheiros de geração Iara Iavelberg, Vlado Herzog e Norberto Nehring. Este último era da Química e por isso talvez entre em outra lista. Estou solicitando para todos, já que também tiveram suas carreiras interrompidas, o título de doutor honoris causa.

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O que significa dialética do esclarecimento?cultura maleta 19/09/2024 Por GILLIAN ROSE: Considerações sobre o livro de Max Horkheimer e Theodor Adorno
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • América do Sul — uma estrela cadenteJosé Luís Fiori 23/09/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A América do Sul se apresenta hoje sem unidade e sem qualquer tipo de objetivo estratégico comum capaz de fortalecer seus pequenos países e orientar a inserção coletiva dentro da nova ordem mundial
  • UERJ afunda em um Rio de crisesUERJ 29/09/2024 Por RONALD VIZZONI GARCIA: A Universidade Estadual do Rio de Janeiro é um lugar de produção acadêmica e orgulho. Contudo, ela está em perigo com lideranças que se mostram pequenas diante de situações desafiadoras
  • A ditadura do esquecimento compulsóriosombra escadas 28/09/2024 Por CRISTIANO ADDARIO DE ABREU: Pobres de direita se identificam com o funk ostentação de figuras medíocres como Pablo Marçal, sonhando com o consumo conspícuo que os exclui
  • O avesso de Marxcultura los soles 14/09/2024 Por TIAGO MEDEIROS ARAÚJO: Comentário sobre o livro recém-lançado de José Crisóstomo de Souza
  • Fredric Jamesoncultura templo rochoso vermelho 28/09/2024 Por TERRY EAGLETON: Fredric Jameson foi sem dúvida o maior crítico cultural de sua época
  • Uma carreira de Estado para o SUSPaulo Capel Narvai 28/09/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: O presidente Lula vem reafirmando que não quer “fazer mais do mesmo” e que seu governo precisa “ir além”. Seremos, finalmente, capazes de sair da mesmice e ir além. Conseguiremos dar esse passo adiante na Carreira-SUS?
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • Direito dos trabalhadores ou lutas identitárias?Elenira Vilela 2024 30/09/2024 Por ELENIRA VILELA: Se ontem dizíamos “Socialismo ou barbárie”, hoje dizemos “Socialismo ou extinção” e esse socialismo contempla em si o fim de toda forma de opressão

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES