Direito e razão prática

Imagem: Jonathan Santos
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Por MARTIN MAGNUS PETIZ*

O apelo à justiça e à misericórdia em “O auto da compadecida”

Em tempos de efervescência das pesquisas empíricas nas faculdades de direito do Brasil, há uma enquete que poderia gerar dados interessantes e representativos de um problema jurídico maior: separando-se dois grupos de graduandos em direito de uma faculdade de elite nos grupos de análise compostos por (A) estudantes de primeiro ano e (B) por estudantes do último semestre, próximos a se formar, qual seria a resposta deles à pergunta “para quê serve o direito”? Parece razoável supor que o grupo (A) daria mais respostas voltadas à realização da justiça do que o grupo (B), provavelmente já menos ‘idealista’, mais consciente e mais ambientado, moldado ao cotidiano, à rotina do direito. Por que será?

O exercício meramente hipotético serve para afirmar um ponto nem sempre levantado quando se discute os rumos do ensino jurídico: que os cursos de direito, atualmente, ainda tendem a colocar em segundo plano nos currículos e no modo de exposição das disciplinas a conexão entre o direito e questões de justiça e de racionalidade prática.

Como mostra José Reinaldo de Lima Lopes, é uma característica da modernidade que as faculdades de direito tenham “jogado para escanteio” essas questões, por inúmeros fatores. Pode-se citar como causa desse fato o projeto de longa data de absorção do direito às ciências naturais (o naturalismo jurídico) na teoria do direito; e a adoção de um modelo de racionalidade instrumental e estratégico no direito, fundado no modelo de sujeito autointeressado, típico da economia, voltado à acumulação de bens materiais.[i]

Neste breve artigo, pretendo expor como direito e razão prática são temas intrincados que merecem ser cada vez mais relacionados. Tomo como cenário uma cena de O auto da compadecida (2000), filme dirigido por Guel Arraes. O filme mostra algumas das várias conexões entre direito e razão prática que, a meu ver, todo bom jurista precisa compreender minimamente para poder se considerar um profissional “bem instruído”, que entende os limites e as possibilidades da sua atuação.

A cena que tenho em mente é a do julgamento de João Grilo no purgatório, ocasião em que se expõe como o direito lida com ações não só para conhece-las e descrevê-las, como um antropólogo pode fazer, por exemplo.

O Diabo, munido de muitas provas, apela “à justiça”; João Grilo, o astuto, “à misericórdia”; e a advogada Nossa Senhora pede que “se leve em conta a pobre e triste condição do homem”, que os leva “a fazer o que não presta, quase sem querer.” Mais do que um conflito entre justiça e perdão, a cena exibe a própria racionalidade que perpassa o direito, própria da relação entre pensamento e ação.

Um julgamento é o exemplo por excelência da função avaliadora do direito na vida dos cidadãos em geral, pois julga as suas ações com base em regras pré-estabelecidas. Para além disso, a incrível capacidade de Ariano Suassuna como intérprete das vicissitudes do Brasil autóctone e profundo, aquele que os juristas das faculdades de elite dos grandes centros não costumam conhecer, oferece elementos adicionais para uma análise da conexão entre direito e razão prática.

No caso, o Diabo acusa de seus respectivos pecados perante Jesus o astuto João Grilo, o cangaceiro Severino, o padeiro Eurico e sua mulher adúltera, Dora, além do Padre e do Bispo, reivindicando suas almas. O Diabo argui muito bem sobre a culpa de cada um e, de fato, o filme mostra até ali como cada um deles foi pecador à sua maneira: Dora, adúltera, não era enfrentada por Eurico, resignado diante do descumprimento dos votos; o Padre e o Bispo se mostram avarentos nas cenas hilárias em que disputam sobre a divisão de doações para a Igreja; Severino “matou mais de trinta” em sua vida; e João Grilo “mentia por gosto”.

No entanto, João Grilo, o astuto, sabe que todo devido processo é mais complexo do que isso, pelo simples fato de que o juiz avalia uma ação humana, e não simplesmente declara um fato. Por isso, ele apela à Nossa Senhora, no sentido de exigir que sua perspectiva sobre os fatos seja levada em consideração: “rogai por nós, pecadores”, ele conclama. O que há de interessante nesse movimento da cena é que a acusação do Diabo inicia solitária, sem um contraponto, e somos levados a acenar favoravelmente aos seus argumentos. Não parece haver salvação para os trágicos acusados. Realmente, todos eles cometeram ações repudiáveis ao longo do filme, e o diretor esconde circunstâncias relevantes até o momento da defesa.

É preciso que João Grilo perceba a situação de injustiça em que se encontra para perceber que pode apelar racionalmente à justiça natural: a medida básica para a avaliação das suas ações é a igualdade perante um juiz.[ii] Não é simplesmente o medo de João Grilo ir para o inferno que o leva a isso – embora não se possa descartar que a sua malandragem possui parte no seu apelo –, mas uma questão de racionalidade prática (e de virtude, pois ele não silencia diante da injustiça). Ele sabe que uma compreensão mais completa dos fatos e das circunstâncias de uma ação podem alterar a conclusão de um juízo sobre os fatos. Por exemplo: o Diabo afirmar que Severino cometeu homicídios, por si só, não é condição necessária para a sua condenação, pois se sabe que há hipóteses que “destroem” a descrição “homicídio” caso presentes, como a legítima defesa, o estado de necessidade ou a guerra justa (a última hipótese é a que mais se aproxima da defesa bem-sucedida de Nossa Senhora).

Em artigo clássico, mas nem sempre tão discutido, Herbert Hart (1907-1992), um dos maiores teóricos do direito do século XX, afirma que a função do juiz é usar o direito para decidir com base nas razões e nos fatos disponíveis, pois o direito funciona imputando sentidos a ações particulares após a consideração de razões pró e contra certas consequências jurídicas.[iii] Não podemos ter uma fórmula para resolver os casos jurídicos de modo exato e prévio, pois exceções sempre podem surgir.

Os conceitos jurídicos lidam com a ação humana, que é derrotável e imputativa. Derrotável porque sempre podem surgir razões contrárias à realização do instituto; imputativa porque só sabemos se a ação que se pretendia realmente ocorreu depois de considerar todos os fatos e as razões envolvidas. É por isso que Hart afirma que os estudantes de direito aprendem os conceitos jurídicos estudando “casos padrão” de ocorrência dos institutos, com algumas condições negativas servindo como “exceções” a tais casos para iluminar as condições positivas em que o instituto ocorre, com as suas consequências jurídicas correspondentes.

Exemplos como esse perpassam todos os campos do direito, não só o direito penal. No direito civil, a fraude descoberta meses depois da realização da cerimônia apenas prova que a crença na realização do casamento era falsa desde o princípio: esse erro destrói a ação de “se casar”, e, de repente, a descrição da ação se torna falsa desde o seu princípio.[iv]

Em resumo, um bom jurista – seja advogado, promotor, juiz, etc. – saberá que um fato desconhecido ou uma circunstância ignorada podem mudar a descrição das ações dos agentes envolvidos, mudando as consequências de seus atos e o resultado de ações judiciais. Esses elementos adicionais podem “destruir” uma certa descrição da ação e “produzir” uma nova, com consequências diferentes.

É justamente a esses dois elementos que se presta a defesa de Nossa Senhora, após a sua invocação por João Grilo. Ela traz então novos elementos ao debate judiciário que se desenrola diante de Jesus e do acusador diabólico: (a) o padeiro Eurico se colocou na frente da mulher na hora da morte para protege-la, merecendo ser exaltado pela sua coragem e lealdade; (b) a sua mulher Dora reconheceu seu adultério no mesmo momento, pedindo perdão; (c) o Padre e o Bispo abençoam o seu próprio carrasco, rogando que se salve a sua alma: “Pai, perdoai-vos, pois eles não sabem o que fazem!”, afirma o Bispo, fazendo coro ao ensinamento de Jesus; (d) Severino é reconhecido como incapaz de seus atos, visto como “mero instrumento da cólera divina”, pois viu seus pais serem mortos injustamente por soldados quando criança.

Até aí tudo bem. Mas há um elemento adicional de drama que mostra um outro aspecto muito interessante sobre a relação entre a racionalidade prática e o direito. Pois (e) João Grilo é o que mais tem dificuldade de levantar um argumento que atenue a sua culpa: na “hora da verdade”, João reconhece que “aí é que está lascado, pois com ele era na mentira”.

Nesse momento é que entra em foco uma das grandes questões da conexão entre direito e razão prática: a distância lógica que há entre regras, caracteristicamente universais, visando a abranger alguma classe de casos, e as ações que julgam, sempre particulares. Nossa Senhora levanta a circunstância da pobreza de João Grilo: “a astúcia era a única arma que ele tinha contra os poderosos”, e descreve a miséria pela qual passou em vida. Jesus pondera: “entendo as situações em que João viveu, mas isso também tem limite. Acho que não posso salvá-lo”. No fundo, o problema de razão prática que se coloca, com aplicação fundamental ao direito, é a seguinte, se retiramos o caso da esfera religiosa e levamo-nos para o direito: deve o julgador se deixar levar por seu sentimento de compaixão, ou realmente há uma circunstância que modifique a descrição das ações de João Grilo?

Jesus parece se inclinar pela segunda hipótese; no máximo, a pobreza é uma circunstância que gera compaixão, atenuando, mas não eximindo a sua culpa. Por isso, João Grilo volta à vida, cumprindo uma “sentença alternativa” e mais pesada que a dos demais, enviados ao purgatório. Mas não há um julgamento por benevolência, propriamente dita; isso seria perdoar João Grilo sem uma exceção aceitável que pudesse ser universalizada para outros casos.

A reflexão que permanece é sobre o papel do perdão, da misericórdia ou da caridade (caritas), a virtude máxima da fé cristã, no direito. Em Aristóteles, a equidade não se confunde com nenhuma dessas outras virtudes. A equidade corrige a aplicação literal da lei quando a distância entre o universal e o particular se mostra insuportável. Como diz Alejandro Alvarez, analisando o famoso exemplo de Hart sobre “os veículos no parque”: (i) pode haver um problema semântico quando uma dúvida linguística gera controvérsia sobre se o caso se aplica ou não aos termos estabelecidos no texto da lei; ou (ii) pode haver um problema fático, quando se discute se o caso é excepcional a ponto de suspender a aplicação da consequência jurídica prevista na norma. O primeiro problema expande ou reduz o número de casos sob os quais a regra incide, enquanto que o segundo suspende a regra em certos contextos.[v]

Jesus procura no caso de João Grilo uma justificativa; mas a única que Nossa Senhora consegue oferecer é a circunstância da sua pobreza. O julgamento final segue Aristóteles, mesmo sendo um exemplo religioso: é racional ter compaixão por João Grilo e, por isso, atenuar a sua pena. Mas isentá-lo totalmente seria ato de caridade que desconsidera o seu livre-arbítrio. Nem mesmo a religião pode desconsiderar a responsabilidade dos agentes pelos seus atos. Mas é próprio do bom juiz “lembrar-se mais do bem do que do mal que nos foi feito”, equilibrando a injustiça com uma dose de perdão.[vi]

Os operadores de direito brasileiros bem que poderiam se aproveitar melhor dessa máxima. Afinal, os julgamentos de pessoas em situação de extrema miséria seguem sendo rígidos na mesma linha com que o Acusador do filme analisado gostaria que se aplicasse o direito. No último dia 16, uma pessoa em situação de rua foi presa após furtar uma blusa de frio no valor de 55 reais em Cruzeiro (SP). No momento em que as temperaturas batem recordes no Estado[vii], um delegado de polícia achou justo instaurar prisão em flagrante por furto, com fiança de 1500 reais – obviamente não paga pelo acusado –, e o juiz da Comarca de Guaratinguetá achou por bem manter a prisão, pois “a despeito do fato supostamente praticado sem violência e/ou grave ameaça à pessoa, o autuado possui diversos antecedentes criminais, já foi condenado por crimes patrimoniais, e atualmente responde a processos recentes pela suposta prática de crimes semelhantes.”[viii] Ou seja, para o juiz, a pobreza é circunstância perigosa, pois instiga “reincidência delitiva”, como ele afirma na decisão.

É claro que a obra de Ariano Suassuna expõe um julgamento religioso; mas os paralelos com o direito se mostram óbvios. Na primeira parte do julgamento, há uma reflexão implícita sobre a justiça natural, marcada pela igualdade perante a lei como primeira expressão da justiça na vida em sociedade. Como o direito é uma prática que visa ao julgamento das ações, via imputação de consequências jurídicas a partir de regras, deve permitir igualdade de defesa em julgamentos, com alguma separação entre os papéis de juiz, promotor e advogado de defesa, além de um espaço de troca de razões e argumentos. Essa é uma tese geral sobre a natureza do direito, e sobre a necessidade de o bom jurista compreender a relação entre o direito e a justiça.

A segunda parte do julgamento expõe uma chaga da sociedade brasileira para a qual o modo brasileiro de aplicar e pensar o direito segue a fazer vista grossa. Nosso sistema judicial segue julgando e condenando pessoas largadas à própria sorte pela ineficiência da mesma estrutura institucional que falha em garantir-lhes dignidade básica. Para aguçar a sensibilidade de um operador do direito em formação, a obra de Suassuna (que era bacharel em direito) é uma chave de leitura fantástica para quem quer refletir o direito no contexto brasileiro, onde a miséria e a opressão ainda são a tônica da vida de grande parte da população brasileira. Ao mesmo tempo, buscou-se mostrar com a discussão sobre a equidade que há critérios objetivos e racionais para decidir bem no contexto do direito.

O paralelo entre a obra de Suassuna e a crescente retomada da razão prática no direito ajuda a mostrar que os juízos jurídicos não são uma questão de sentimentalismo, mas de justiça. Saber aplicar bem o direito passa por se compreender o que significa agir e decidir bem. Ignorar a racionalidade prática no contexto jurídico será o mesmo que ignorar essas questões, confundindo-se o direito com uma técnica que equipara gente a gado. Se assim for, as nossas sentenças serão (ou continuarão sendo) muito mais pesadas do que a fria e calculista virtude da justiça exige.[ix]

*Martin Magnus Petiz é mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

Notas


[i] A tese foi afirmada muitas vezes, inclusive com sofisticação própria de um historiador do direito de primeira linha, pelo Prof. José Reinaldo de Lima Lopes. Ver LOPES, José Reinaldo de Lima. As palavras e a lei: direito, ordem e justiça na história do pensamento jurídico moderno. 2ª ed. rev. ampl. São Paulo: Editora Madamu, 2021. LOPES, José Reinaldo de Lima. Naturalismo Jurídico no pensamento brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2014.

[ii] José Reinaldo de Lima Lopes lembra em seu Curso (LOPES, José Reinaldo de Lima. Curso de Filosofia do Direito: o Direito como Prática. 2ª ed. rev. e atual. Barueri: Atlas, 2022, p. 370-371) que John Rawls, maior filósofo político do século XX, afirma ser uma condição básica da justiça de um sistema de instituições políticas que as autoridades saibam julgar com base em regras, e não sob influências pessoais, monetárias ou outras considerações irrelevantes.

[iii] HART, Herbert Lionel Adolphus. The ascription of responsibility and rights. Proceedings of the Aristotelian Society, New Series, Vol. 49, 1948, p. 171-194.

[iv] ANSCOMBE, G. E. M. Two errors in action. In: ANSCOMBE, G. E. M. (Ed.). The collected philosophical papers of G. E. M. Anscombe. Vol. 3: Ethics, religion and politics. Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1981, p. 3.

[v] ALVAREZ, Alejandro. Interpretação do direito e equidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2015, p. 205-206.

[vi] ARISTÓTELES, Retórica, I, 13, 1374b.

[vii] NETO, Francisco Lima. Frio bate novo recorde em São Paulo com 9,8°C; zona sul chega a 3,9°C. Folha de São Paulo, 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/05/frio-bate-novo-recorde-em-sao-paulo-com-980c-zona-sul-chega-a-390c.shtml#:~:text=A%20temperatura%20bateu%20novo%20recorde,da%20Prefeitura%20de%20S%C3%A3o%20Paulo>

[viii] FERREIRA, Lola. Justiça nega habeas corpus a homem que furtou blusa de frio de R$ 55 em SP. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/06/19/furto-blusa-de-frio-cruzeiro-sp.htm?cmpid=copiaecola.

[ix] Agradeço a Otávio Almeida, Matheus Della Monica e Gilberto Morbach, que leram uma versão inicial deste texto e compartilharam gentilmente comigo suas visões sobre o escrito e também sobre a obra.

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