Por REMY J. FONTANA*
Do reino de um filósofo de coração puro à ruína do país sob um governante desprezível
Sirvo-me de alegorias das mais eloquentes para designar um bom governo, como formulado por um dos mais fecundos e primevos pensadores da política, e a condição de ruína e danação de tantos, como no poema do florentino medieval.
É um tanto decepcionante que na trajetória dos povos e de sua organização social, milênios de experimentação não tenham se aproximado o bastante do ideal de um bom governo, não só em relação às virtudes do governante, mas principalmente no que diz respeito à máquina governativa, seus componentes, suas engrenagens, suas funcionalidades, seu desempenho.
É fato que a baixa performance dos aparatos organizativos que os povos instituem para viver e conviver, em termos minimamente satisfatórios, não deve circunscrever-se ao âmbito das relações de mando e obediência, isto é, em torno do poder, da política propriamente dita; outra dimensão restritiva do bem viver em sociedade encontra-se na economia política, isto é, nas relações entre proprietários e despossuídos, entre exploradores e explorados, poderosos e oprimidos.
Em todas as latitudes encontram-se hoje governantes obtusos, autoritários ou sanguinários, e estruturas governamentais desarranjadas, incongruentes e em baixa sintonia com as gentes, evidenciando que o processo histórico não segue em linha ascendente e contínua quanto à aperfeiçoamentos, nem se apressa em realizar eventuais virtualidades virtuosas. A persistência de guerras, racismo e desigualdades indica que poderes e estruturas, relações sociais e políticas ainda estão distantes de formar o que se poderia designar, no sentido próprio e pleno, civilização, um padrão de civilidade, de bondade, de beleza e de verdade.
Mas fiquemos em nossa paróquia brasileira, neste período macabro e obscurantista, da boçalidade governamental e da mesmerizarão, idiotice ou vulgar oportunismo dos tantos que o apoiam, a sinalizar que a desgraça que avilta o país resulta deste infeliz encontro, deste magma tóxico entre um governo fruto de um acaso perverso e de contingentes que perderam ou nunca tiveram rumo nem responsabilidade, ao instituí-lo. Sem rumo porque não distinguem conhecimento de aparências, opinião fundamentada de preconceitos, realidade de ilusão; e sem responsabilidade, porque nada lhes interessa do destino do país além de pretendê-lo imune à modernidade dos direitos, a laicidade do Estado, a contemporaneidade dos valores civilizatórios.
Que este governo surja de um acaso (sic) requer alguma elaboração. Apenas um olhar tópico e superficial deixaria de identificar uma linha de múltiplas causalidades – entre as quais a desigualdade social, o desemprego, as várias carências que incidem sobre a maioria da população, a violência social e estatal, o descrédito nos políticos, nas instituições, a pobreza cultural e os baixos níveis de consciência cívica e política -, que poderiam explicar por que um personagem tão medíocre, uma nulidade tão aparente, um farsante tão clamoroso pode apresentar-se como destinatário vitorioso das preferências eleitorais para a presidência da república. E mais, sendo um político “carcomido”, do “baixo clero” parlamentar em várias legislaturas, sem talentos, sem destaques e sem escrúpulos, e ainda assim capitalizar o sentimento generalizado antiestablishment propondo uma “nova política”.
O ex-capitão, muito diferente e opostamente ao sugerido na obra do pensador da Grécia Antiga, que submete cada aspecto do Estado a virtude do conhecimento, propugnando um despotismo esclarecido, é um empedernido inimigo da ciência, da cultura, das universidades e das artes, de tal maneira que, da fórmula platônica, lhe resta apenas, em sua orgulhosa ignorância, o despotismo.
Para sermos justos, o grego de Atenas e o paulista do Vale do Ribeira que ocupa o Palácio do Planalto, não apreciam grandemente os artistas; mas enquanto o primeiro tinha maior reserva com os poetas, basicamente pela contenda entre poesia e filosofia e seu ressentimento à Homero; o segundo, além destes, tem bronca de escritores, cantores, intelectuais, cientistas, cineastas, jornalistas e outros mais que são dados a criar ou pensar, pesquisar, expor, representar, pintar, pela única razão de sua desrazão e imbecilidade.
No entanto, se para Platão o verdadeiro estadista se distinguia do falso pelo conhecimento, este não parece ser o caso do nosso atual governante e de seus apoiadores, para os quais a mera opinião, por mais esdrúxula ou disparatada deve ter plena validade, equivalência, ou até prioridade em relação à enunciados lógicos, à argumentos consistentes, a evidências empíricas.
Se da estrutura da linguagem podemos extrair algum indício de verdade, se do uso da retórica se poderia esperar esclarecimento, orientação e bases para uma persuasão respeitável em torno dos negócios públicos, o que pode resultar da linguagem chula deste governante, suas reiteradas ofensas, seus balbucios desconexos, seus palavrões compulsivos, seus renitentes estupros da lógica e recalcitrante mendacidade? E o que dizer das toscas historinhas do bem contra o mal, frequentes nas falas do ex-capitão, reveladoras de sua imatura personalidade, e dos efeitos infantilizadores sobre os que o levam a sério?
Como observa G. Steiner, em Aqueles que queimam livros, existe uma pornografia do teórico, assim como existe uma pornografia da sugestão sexual, ao que poderíamos acrescentar, existe uma pornografia do político, do governante, que Bolsonaro expressa à perfeição. Ou como qualificaríamos a exaltada balbuciação do “imbrochável”, em seus reiterados apelos a banalidades escatológicas, à intolerância obscena, à agressão social e ao ódio político? Há, então, neste personagem uma adequação entre seu entendimento (insuficiente e primário) e as formas de linguagem que utiliza (grosserias, mentiras, aberrações).
E é a esta linguagem, e a esta verborragia que muitos assemelham a sinceridade; que desavisados ou fanáticos a tomam por autenticidade. É esta mesma gente de bem, diga-se bem distante do homem bom de Platão, que só podia reivindicar esta condição na medida mesma em que fosse um bom cidadão, de um bom estado. Seria inteiramente ocioso discutir o que seria bom para um cidadão sem considerar também o que seria bom para o estado. Como sabemos, nossas atuais gente de bem, são as mais agressivas contra as instituições de estado, suas práticas, normas, a Constituição, as que mais as desrespeitam, as que mais as ameaçam.
Os problemas surgem, como vemos agora generalizado no país, quando prevalece, no âmbito da política, uma conversação ordinária, um discurso comum que assume tonalidades emotivas, que coagula percepções, enrijece posições e interdita qualquer diálogo. Nestas condições a disputa política esvazia-se de argumentos para persuasão, que são substituídos por enunciados sentimentais, morais e até religiosos visando a comoção.
Uma estratégia de comunicação política assim instruída revela-se, infelizmente, muito eficaz, dificultando opções por programas governamentais e escolhas eleitorais. Tais expedientes são os recursos preferenciais de demagogos, autoritários e mistificadores, notadamente do espectro político da direita, como entre nós evidenciados pelo atual presidente e novamente candidato, seu entourage e apoiadores.
Esta falta de discernimento da extrema direita, faz com que os valores morais, ainda que distorcidos, apareçam como determinantes do que divide as pessoas, obscurecendo o fato de que os conflitos políticos se devem a desigualdade social, às questões de classe, poder ou prestígio; e então, que só uma democracia poderia acomodar estas clivagens, ou uma transformação social, superá-las.
Não se trata de questionar a legitimidade da opinião de cada um, sua contribuição na construção da decisão política; a democracia mesma favorece a estruturação sistemática de opiniões numa “opinião pública”. Esta questão torna-se crítica, no entanto, quando a “liberdade de opinião” se transmuta em “absolutização da opinião”, quando se transfigura em intolerância política, quando se impugna qualquer critério para discernir “aquilo que é opinável daquilo do que é, por consenso, por instituição, ou por produção de evidências justo ou verdadeiro”, e quando se esvazia ou se anula um sistema de referências, no interior do qual as opiniões ganham plausabilidade, coerência, pertinência ou validade.
Desta forma o sonho de Platão, cuja República tem o subtítulo “Do Justo”, torna-se o pesadelo dos brasileiros, com sua república miliciana, cujo ícone é uma arma e, o inferno de Dante, abre então suas comportas e aprofunda suas valas para abrigar uns tantos de nossos compatriotas.
Nem prosperidade, nem paz estamos tendo, mas seus contrários: economia em frangalhos, povo na miséria, ricos mais abastados, violentos mais agressivos, racismo mais ostensivo, intolerantes mais raivosos, ignorantes mais ignaros, idiotas mais estúpidos, insensatos mais desatinados.
Mas atribuir ao tão desqualificado político que exerce a Presidência uma tal potência, qual um demiurgo às avessas, um rufião, que pudesse instituir e incutir massivamente tais condutas deploráveis, seria torná-lo mais capaz do que é, seria atribuir-lhe competências que não tem. Isto não o exime, entretanto de – a partir da posição que ocupa e conspurca, como principal mandatário do país – agravar tais comportamentos, disseminar preconceitos, rebaixar padrões de civilidade, insultar o bom senso, mentir compulsivamente e premiar a mediocridade em escala industrial e de consumo de massa. Infelizmente, por mais deploráveis que sejam suas decisões, danosas suas omissões, equivocadas, obtusas ou desastradas suas disposições governamentais, elas afetam a sorte da maioria da população.
Como não é um homem de Estado, seja em qual sentido tomarmos esta expressão, como poderíamos designá-lo? Seria apenas um bobo-da-corte, como epitetou Lula em entrevista à principal emissora de televisão do país? A tirada tem lá sua pertinência, mas seria torná-lo um ser inofensivo, ainda que caricato ou grotesco. Um apelido, pois, inadequado para alguém que por ação desastrosa ou omissão criminosa, por linguagem zombeteira ou ultrajante, gestos ofensivos, obscenos ou agressivos aviltou moralidades, tripudiou do decoro, esbulhou direitos, degradou instituições, ameaçou a democracia e tornou a república uma cosa nostra miliciana.
Suas atividades mais salientes incluem passeios de motocicletas com apoiadores, sob a designação de termo inexistente e de mau gosto, motociatas; frequentes férias imerecidas; marchas para Jesus promovidas por pastores políticos e negocistas, saturadas de demagogia e pieguice deslavadas; a conversinha mole no cercadinho do Alvorada, com meia dúzia de fervorosos devotos; e o blah blah blah das quintas-feiras ambientado na biblioteca do Planalto, para os mesmerizados das mídias digitais, que são municiados por precários enunciados, informações distorcidas; instigados por falsas controvérsias e atiçados contra o que julgam ser “os inimigos da nação e traidores da pátria”.
Tal é a agenda do ex-capitão na chefia do país, pois as tarefas que lhe seriam próprias foram delegadas ou açambarcadas por generais-de-pijama e por outros militares de patentes variadas, mas igualmente obcecados por um comunismo inexistente, por tecnocratas sem compaixão ou pelo pessoal do “centrão”, agregação fisiológica que deita e rola nos tapetes do parlamento.
Como pode um governante, a não ser que tenho abdicado de suas funções e seja inteiramente alienado dos problemas do país, perambular tão frequentemente por suas regiões, sem agendas relevantes, sem motivos e sem propósitos que não o de exercitar-se demagogicamente? Atiçando ódio às multidões, afrontando instituições, difundindo suas irrefletidas ou pernósticas convicções, instilando preconceitos nos desavisados ou confirmando-os nos que já os tem?
Que prerrogativas governamentais podem isentar um mandatário de empenhar-se na análise dos problemas do país, no estudo e avaliação de projetos, na formulação de políticas públicas, na interação constante com protagonistas relevantes, sejam da esfera pública ou da sociedade civil, para dar conta das tarefas que lhe são inerentes?
Na afronta aos protocolos do cargo, da ritualística e do cerimonial próprios de altas autoridades e nas atitudes vulgares que lhe são inerentes pretende demonstrar, num esforço vão, que é uma pessoa comum, nivelado com o perfil da maioria pobre da nação, mas o que revela neste intento caricato de autenticidade e de simplicidade é apenas um consumado cinismo, um recurso de baixa marquetagem demagógica, que não respeita a cidadania e avilta a si próprio.
Se não confia nas instituições, antes as hostiliza, como pode encarná-las; se confronta a constituição como pode obedecê-la ou a ela submeter seus atos; se não reconhece a diversidade humana-social-étnica ou de gênero como pode legitimar-se diante da nação; se é ignorante nos assuntos de Estado como pretende administrá-lo; se conspurca o cargo por falta de decoro como pode ocupa-lo; se confunde a vida e os negócios privados com a esfera pública como pode ser um mandatário da República; se não respeita as pessoas ou seus direitos, insultando uns e liquidando outros, como ousa governa-las? Se nos fala de liberdade, enganosa, mas o que promove é a ameaça da servidão verdadeira?
Se despreza a ciência e abomina a arte, se vitupera a cultura e entroniza a morte pela incúria, pela apologia das armas e da tortura; se degrada o ambiente e não atenta à crise climática pela inépcia, pela cumplicidade com os interesses predatórios ou criminosa omissão, o que podemos esperar como nação, o que nos reserva o futuro como povo, que solidariedade podemos receber ou oferecer no concerto das nações, diante das mesmas e dramáticas urgências de nosso tempo?
Se tal é o perfil desta tenebrosa figura, e medíocre e danoso seu desempenho, custa compreender como se sustenta; ou melhor, quem e como, o mantém no cargo. Entre estes podemos encontrar agentes estratégicos, grupos poderosos e instituições pusilânimes, através de cálculos geopolíticos equivocados, interesses corporativos ou de mercado, e complacência e oportunismo, respectivamente.
Com a sustentação de empresários ultradireitistas sem compromisso com o país, que não hesitam em apoiá-lo, inclusive em arreganhos golpistas; militares de crasso reacionarismo; religiosos charlatões e fundamentalistas; milicianos como pau para toda obra; sectários ressentidos de extração social diversa, notadamente das classes médias, eis aí não apenas a base social do “mito”, como também uma deplorável indicação da composição e das orientações político-ideológicas de parte considerável do povo.
Povo, aqui merece uma qualificação: de conceito genérico e de senso comum, tem se prestado a todos os discursos e a todas as invocações, das democráticas às demagógicas e eventualmente às tirânicas. O povo, socialmente não é um todo homogêneo, e nunca estará completamente unido, seja em torno de interesses ou de ideias, valores ou ideologia. Podemos sim, para simplificar, torná-lo próximo ao que entendemos por pobres, gente despossuída, explorada.
Sendo assim, poderíamos inquerir sobre que segmentos dos pobres, e quais classes ou camadas sociais se deram tal governante, que lhes é, em grande parte, contrário a seus próprios interesses; o que nos levaria a perguntar que classe de gente é esta. Sabe-se da eficácia mistificadora da direita extremada e de seu desdobramento em automistificação, o que acaba por conduzir seus seguidores à sujeição inconsciente ou à servidão voluntária na medida mesma que lhe é prometida a liberdade. Daí a contradição, com reverberações masoquistas dos bolsonaristas que supõem conquistar a liberdade invocando o autoritarismo.
Digamos que parte expressiva destes poderiam fazer um estágio no purgatório para redimir-se de seu engano político, tendo a chance de expiação desde que ao arrepender-se fizessem melhoras escolhas eleitorais. Para a terrível danação eterna poderiam ser destinados os bolsominions mais recalcitrantes e fanáticos, tal seu grau de confusão mental e de ações estapafúrdias ou tresloucadas; enquanto o ex-capitão seria tragado por um rio vermelho, que o precipitaria na cava central do inferno. Tais destinações abissais e perdição irrevogável estariam em correspondência com a pulsão de (auto)aniquilamento desta “gente que da lama se abarrota” (Dante, canto VII,127).
Outros candidatos a descerem às profundezas do Círculo VII, distribuindo-se pelas 10 valas infernais seriam as instituições e seus operadores encarregados de conter abusos do poder, enquadrando, interpelando, investigando e processando governantes, mas que por tibieza, cálculos políticos ou condescendência com flagrantes violações à lei, não o fazem. Ao não agirem, cumprindo os deveres de suas atribuições, atenuando as infrações de hoje do governante, no aguardo de reincidências mais graves, que serão por sua vez relevadas esperando alguma outra de maior gravidade, e assim sucessivamente até a consumação do desastre, isto é, até que todos nós nos encontraremos no inferno do arbítrio, da queima dos direitos e na dizimação das liberdades.
Enfim, é o que temos neste estágio regressivo enquanto nação e civilização, em que de “animais políticos” integrados numa “polis” muitos de nossos (com)patriotas tornaram-se “políticos animais” (que passe a ofensa a estes outros seres vivos), aderidos a um projeto de negação da polis ou de uma república, em favor de formas autoritárias de exercício de poder e de degradação das funções públicas. E cuja concepção de pátria resume-se a vagos e primitivos afetos, a uma furiosa e intolerante devoção à símbolos que não compreendem, às cores verde e amarelo, tendo frêmitos pelo verde-oliva, e associando-a à família (âmbito privado) e à religião (âmbito de crenças, fé e, vá lá, transcendência).
Se isto não fosse uma salada indigesta de civismo tacanho e nacionalismo de má retórica, poderia ser um samba do criolo doido que põe para dançar, sem leveza ou graça, os “cidadãos de bem” do conservadorismo tupiniquim, ao som do hino nacional e envoltos pelo lindo pendão da esperança, salve, salve!
Seja de uma forma ou de outra, tal como se apresenta na versão bolsonarista, patriotismo não passa de um engodo, de um subterfúgio, de uma manipulação para encobrir sua natureza de aberração cívica, sua vocação de lesa-pátria, sua pulsão autoritária, sua ordem que é uma desordem violenta e fascistóide.
Quão distante está das características de liderança, segundo os critérios e as recomendações de Platão para um bom governante, quais sejam conhecimento, usar a palavra corretamente para estabelecer a primazia da verdade, discernir entre regimes políticos, temperança e prudência?
O que tem sido a figura deste governante, e o que ocorre com o país? De que espectros quer aquele nos precaver, se em si mesmo é a realidade doentia da qual pretende ser a cura? Se é em si próprio o ressentimento que envenena seus seguidores, tensiona a nação, conflagra o povo e torna tóxica a atmosfera política, social e cultural?
Com a cínica proposição eleitoral de renovação, de uma enganosa “nova política”, foi ungido pelas urnas, em 2018. A instituição de seu governo sacramentou o atraso, a improvisação, a incompetência, a mediocridade. Na batalha das ideias, Bolsonaro e seguidores parecem ter um inesgotável estoque de excrescências messiânicas, que utilizam num tipo de guerra santa, travada sob a inspiração de uma religiosidade doentia e delirante, fora do tempo e de lugar.
O que alguns designam como “jihad bolsonarista”, um ensaio de terrorismo religioso, constitui uma ameaça à laicidade do estado e a diversidade de crenças, a liberdade e a legitimidade das variadas manifestações de fé, intrínsecas à diversidade humana que constituem uma nação. O que aqui periga, como observa Muniz Sodré “é a sanidade dos fiéis à democracia”. De tal sorte que a primeira-dama “e seu consorte parecem querer jogar mais lenha de pau de goiaba na fogueira da demência, evento cuja única perspectiva é a da autocombustão mental (Folha de São Paulo, 28/08/2022).
Tal formulação indica a dimensão do retrocesso que nos atinge enquanto nação, Estado e país, do qual o bolsonarismo é a condensação, o símbolo, a expressão e a representação. Defenestrado o personagem, ficaremos ainda a nos haver com a plateia, até mudarmos o roteiro, o cenário, a iluminação e o som e a fúria do desatino fascistizante, e abrirmos as cortinas para um novo espetáculo, para uma nova temporada.
Que raízes terá fincado no solo da cidadania que não o ódio, as ameaças, o medo, a virulência, o descaso, os preconceitos? Que memória política, que registros históricos ficarão deste período além do fanatismo, do cinismo, do abuso, da impunidade, do descaso e da indiferença, e sim, da corrupção? O que resultará desta ruinosa governança? De que canto dos escombros deverá levantar-se uma nova energia social iluminada por um ímpeto de reconstrução, por uma ideia de nação, por um projeto de país, por uma utopia de liberdades e equidade?
Em qual momento se condensarão estes ímpetos e estas energias em torno de um recomeço, a despeito de ameaças e dos óbices que serão interpostos contra os que se comprometerem com avanços e transformações, ou ainda a despeito das hesitações que estes colocarem para si mesmos?
Se, alinhados com a pauta democrática e de reconstrução do tecido social, devemos nos dispensar do excesso de confiança e da soberba de estarmos “do lado certo da história”, não podemos contemporizar com o atraso e as iniquidades reiteradas, condescender com autoritários e golpistas, nem tolerar os intolerantes. Mas para dar conta destes propósitos não convém, enquanto protagonistas coletivos, perder de vista onde a vontade se divorcia da força política efetiva.
Transformar a realidade para transformar consciências, tal o eixo estratégico dos que tem desde já e sempre compromisso com um futuro de dignidade e de paz. Mas estes empreendimentos, o primeiro estrutural, o segundo “superestrutural”, não são desprovidos de problematicidade; nem o primeiro se dá por mera vontade ou voluntarismo político, nem o segundo se resolve apenas porque um portador de luz pretenda iluminar a consciência social.
O desafio, e ainda mais a tarefa principal dos que ainda resistem aos esboços da barbárie fascistizante em curso, será não apenas destronar o vil governante pela força de uma vontade política democrática, mas, com ainda maior ímpeto, enfrentar uma realidade infectada pelo irracionalismo, pelo fanatismo, pela mistificação; um empenho de longo curso que se imporá aos que ainda não desistiram de resgatar a maioria de nosso povo dos tenazes da miséria material e cultural.
Mas esta tarefa de esclarecimento não se dará só, nem principalmente, pela difusão de luzes do que sabem para os ignorantes, dos já libertos de enganos e das encenações para os ainda submetidos a escuridões e sombras cavernosas, numa pretensa pedagogia de voluntarismo libertário. A realidade desvendada, a inteligibilidade das coisas e das relações sociais para que se efetivem e formem uma nova consciência, implicam processos complexos e vivências concretas, num processo de conhecimento e de aprendizagem que combine intelecção e emoção, razão e vontade, arte e ciência, produção e cultura, interação e reflexão, informação e sabedoria, doxa e episteme, pathos e logos.
Esta noite da cidadania – que tantos de nós experimentamos neste período, cada um ao seu modo, alguns de forma trágica, outros com desânimo na alma, outros ainda desesperançados do país –, só verá o alvorecer de um novo dia, quando os muitos se reencontrarem, e os poucos se dispersarem, no que tange a convivência civil, segundo parâmetros democráticos e valores norteadores de liberdades, direitos, responsabilidade e respeito de uns para todos e de todos para cada um.
Jair Bolsonaro, nunca será demais insistir, em termos de personalidade política personifica o anti-ideal de governante, que induziu parte dos brasileiros a emulá-lo em baixarias, a imitá-lo em agressividade, em desrespeito a instituições e práticas republicanas, em vangloriar-se da ignorância e de preconceitos. Ressalte-se, entretanto, que estas “anomalias” cívicas e estas tendências regressivas antecedem ao surgimento do ex-capitão como protagonista de destaque na cena política (deteriorada) brasileira.
Como restabelecer um padrão de relacionamento de uns com os outros, regularizá-las com critérios de justiça, respeito e solidariedade, de tal sorte que resulte uma melhor qualidade do sistema político? Como resgatar a política do brejo místico-charlatanesco-miliciano, policial-militaresco onde foi lançada neste período bolsonarista?
Como reinstituir dignidade ao cargo máximo do Estado, depois desta devastação institucional, depois desta apropriação familiar-patrimonialista e clientelística? Como recuperar as funções da presidência delegadas ao fisiologismo do “centrão”? Como reinstituir as prerrogativas do poder civil usurpadas pelos ávidos contingentes da caserna, presunçosos fiadores da saúde da república?
E finalmente, como reafirmar o valor e a necessidade da política, tão negada, e dos políticos, tão aviltados, repondo-os em suas imprescindíveis funções de equacionar a multiplicidade de opiniões e interesses em torno do bem comum, fazendo prevalecer e validar a verdade, a conveniência e a oportunidade no quadro dos assuntos públicos?
É, pois, destes resgates e destas reinstituições que a política pode voltar a ser o campo do agir social, no qual as coisas podem tornar-se diferentes daquilo que são, a começar pelo poder de designar o melhor governo; em nosso caso, um melhor governo do que o deste do ex-capitão, que em má hora e pelos reveses do destino, mas especialmente pelas decorrências do capitalismo predatório e das mazelas do neoliberalismo em namoro com o fascismo, nos coube suportar.
A este ser ignominioso, ao término de seu mandato desastroso, não lhe restará nenhuma dignidade, cabendo-lhe antes uma condição patética, caricatural, como mais uma vez evidenciada nas deturpadas comemorações deste 7 de setembro. Em vez de uma celebração à pátria nos 200 anos de independência, uma reincidência num pathos constituído por propósitos cruzados, confusões caprichosas, frustrações dolorosas e ressentimentos que não se dissolvem, que não dão frutos nem resultados esperados.
Não isenta de ironia, sua responsabilidade por atos e falas nada edificantes, deve-se menos a uma escolha consciente do que a uma fraqueza inconsciente. Ao final sempre poderá culpabilizar os outros por suas insuficiências ou impertinências e, em último caso, ter pena de si mesmo.
A consciência coletiva brasileira, com toda ambiguidade que este conceito comporta, quando e se desanuviar-se das pestilências sulforosas deste período, deverá indagar-se como pôde admitir como governante uma figura tão menor, tão escabrosa, tão ignóbil, destinada a definhar até a morte inglória.
Se esta experiência política resultar em alguma aprendizagem, o país terá algum futuro e seu povo poderá aspirar dias melhores; se nada apreender, as gerações vindouras serão as legatárias de nosso fracasso, devendo voltar ao campo da luta para resgatar a democracia do brejo onde foi deixada.
Que outros tempos se apressem, pois, que nova configuração social institua governantes que sejam um orgulho de uma cidadania mais esclarecida e mais atenta aos fundamentos e práticas sociopolíticas que nos facultem viver com maior justiça, democracia e solidariedade.
Que a memória deste tempo não desvaneça, na algaravia de bufões, rufiões e desclassificados, outras vozes; vozes de resistência e brados de luta por democracia, dignidade e civilidade, e que estas por muitos sóis ainda floresçam.
*Remy J. Fontana, é professor de sociologia aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autor, entre outros livros, de Da esplêndida amargura à esperança militante – ensaios políticos, culturais e ocasionais (Insular).
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