Por TADEU VALADARES*
Considerações sobre o cenário eleitoral brasileiro e os desdobramentos da geopolítica mundial
Especulo. Cada vez mais claro, irmos ou não para o segundo turno dependerá do placar final do voto evangélico e também do voto útil dos ciristas menos apaixonados, concluída a primeira volta eleitoral. Se Lula não conseguir vitória decisiva no próximo dia 2 de outubro, os arúspices pós-modernos quase todos, bem examinadas as vísceras das pesquisas eleitorais, continuam até agora dando a entender que a vitória será nossa.
Mas, em havendo necessidade de segundo turno – coisa que virá ao nosso encontro, tenho quase certeza… – outro ponto decisivo será a margem da vitória quando chegarmos à outra margem do rio eleitoral, dia 30 de outubro. Se pequena, se assim vier a ser, o voto neopentecostal provavelmente será o fator com maior peso no encurtamento de nossa vitória. Sua decorrência imediata chegará com precisão mecânica newtoniana: a transição novembro-dezembro como o ápice da tempestade que nos acompanha desde 2018, permanentemente insuflada pelo ocupante do Planalto.
Ainda assim, difícil que a extrema direita cuja mola mestra é o bolsonarismo opte pelo golpe sob qualquer de suas tantas formas. Mas se golpe dificilmente virá, o clima que nos espera em novembro e dezembro será pontilhado de ameaças de todo tipo, e por significativo aumento da violência tanto em termos retóricos como reais, degenerescências em si mesmas sinalizadoras do que poderá vir a ocorrer depois com a frágil democracia que tentamos proteger para que ela nos proteja.
Pior ainda: caso a margem de nossa vitória no segundo turno seja pequena, Lula começará seu terceiro mandato presidencial em posição frágil, enquanto que o bolsonarismo se converterá de imediato na principal força oposicionista tanto no congresso quando no âmbito da sociedade civil. Fácil imaginar todos os riscos decorrentes de vitória quase em cima da linha de empate. Relembremos Aécio Neves e Dilma Rousseff. Relembremos Pirro. Nesse cenário preocupante que pode vir a marcar o início do novo ciclo, o fantasma de um futuro golpe passará a nos acompanhar, a fantamasgoria sempre ameaçando transmutar-se em horror completo, algo muito pior do que o acontecido em 1964, 1968 e 2016, para não falarmos de 2018. Ainda bem que teremos Lula no Planalto. Menos bom, bem menos, mas ainda assim afinal aceitável, em nome da conjuntura potencialmente catastrófica que convenceu quem deveria ser convencido: também por lá teremos Geraldo Alckmin, o renascido.
Nisso tudo, também não esquecer: a frente ampla a mais não poder, essa que está aos poucos nos conduzindo de volta ao poder – apenas ao executivo… –, muito provavelmente, quase certeza minha, não terá condições de se sustentar ao longo dos próximos quatro anos. O que congrega a todos vive da celebração do momento em que a história, astuciosamente, aparenta ignorar as diferenças e oposições que marcam o corpo social. Diferenças e oposições que, numa sociedade antagônica, apesar de tudo continuam a existir enquanto antagônica for a sociedade.
O que nos congrega a todos, alcançado seu objetivo imediato, evitar o desastre irreparável, a vitória de Bolsonaro e seus fanáticos, tenderá a se desfazer. Em quanto tempo? Arrisco perguntar porque esse arriscar faz parte da especulação: o engendro que já está nos salvando, salvando a todos os nós e a todos os eles, tem cimento e aço suficientes em seus fundamentos, o que lhe permita resistir às intempéries todas até completado o quadriênio? Parece-me que não. Se chegar a vigorar até o final de 2024 já será muito bom.
Isso talvez seja o essencial de nossa difícil equação, se focarmos apenas o mundo chamado Brasil. Mas se nos voltarmos também para a cena internacional, para o externo-interno que igualmente nos desafia e determina, o óbvio, ululante ou não, é que a crise da ordem internacional continuará a ser marcada pela específica bipolaridade da transição do eixo do poder político e econômico global do chamado Ocidente para o polo que se ascendente desde ao menos fevereiro passado, o euroasiático.
Luta de titãs pela frente. De um lado, o bloco Ocidental ou ‘metaocidental’ que se espraia desde os EUA e o Canadá até a Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Austrália e Nova Zelândia, passando pelo Reino Unido, União Europeia, OTAN, Israel e muito mais. No outro polo, bem menos estruturado ainda, os dois grandes parceiros da aliança sem limites, China e Rússia. Além deles, vários outros países, muitos deles ainda timidamente consultando seus arúspices. Destaque óbvio para a Índia, espécie de fiel da balança. E muitas expectativas quando ao “BRICS em expansão”.
No imediato, e desse imediato em muito dependerá a forma do futuro, ninguém sabe como e quando começará a terminar a segunda guerra europeia, pós-dissolução da URSS, a que hoje opõe Kiev a Moscou, a OTAN e a UE à Confederação Russa, os EUA sendo o determinante em última instância da posição “ocidental’, enquanto que a China discretamente serve de contrapeso. A guerra anterior, que levou à dissolução da Iugoslávia a partir de 1991 e à criação do Kosovo e da Sérvia como sucessora da Iugoslávia, continua como foco de tensões que a cada tanto ameaçam eclodir noutro conflito militar.
Algo similar pode vir a ocorrer se Moscou não perder a guerra, mas o resultado terá sentido inverso. A guerra na Ucrânia, muito mais arriscada do que a da Iugoslávia. Isso porque pode metamorfosear-se em verdadeira guerra europeia, no limite o jogo sendo jogado com a possibilidade de emprego de armas nucleares táticas, porta que, uma vez aberta, pode gerar não a mera dissuasão, mas sim o aniquilamento teorizado pela doutrina da Mutual Assured Destruction.
Articulada a esse cenário militar que vai beirando o impensável, vemos no dia a dia o aguçamento da guerra econômica de atrito, protagonizada pelos Ocidentais em sentido amplo contra a Rússia, esta cada vez menos discretamente apoiada pela China. O resultado líquido dessa ascensão ao limite que ninguém sabe qual seja: o agravamento galopante da crise econômica que, iniciada em 2007/2008, não chegou a nos abandonar, crise longa, agravada pela Covid-19, crise que pode alcançar vinte anos, crise que pode favorecer, no plano militar, ações que podem nos conduzir à Terceira Grande Guerra, provavelmente a derradeira. Sobrarão contendores?
Esses dois mundos – o brasileiro e o da geopolítica e da geoeconomia mundiais cada vez mais aquecidas – formam, em sua totalidade contraditória e nas interações complexas e sombrias de seus tantos elementos, o mar tenebroso em que, devidamente capitaneados por Lula, navegaremos por quatro anos. Sabedores, todos nós, que muitos são os monstrengos se escondem e se manifestam tanto no plano interno quanto no mundial. Sabedores, todos nós, que os rumos do mundo continuarão mortalmente indefinidos por décadas mais.
Recordando a para mim surpreendente expressão usada por Lula no encontro de São Gonçalo, de muita “mão de Deus” estamos necessitados, Isso, se monoteístas formos ou caso nos dispusermos a pensar o político, a política, a conjuntura e a história imediata com a linguagem da religiosidade popular sempre algo ingênua. Mas, exatamente porque a ingenuidade não nos conduzirá a nenhum lugar diferente do que é desastre anunciado, prefiro, confesso, confiar bem mais nas mãos de Lula.
Até mesmo por uma razão singela: não temos timoneiro que se lhe possa comparar. Ciro, Ciro, Ciro, dizem alguns. Mas Ciro, nesse registro também, oscila como o eixo do mundo quando tocado pela mão de Deus. Só que, no caso de Ciro, é ele que oscila, tocado por suas próprias mãos espirituais ou por ondas cerebrais algo estranhas, entre o patético e o ridículo.
Como na faixa a ondular na praça deserta em que só o vento corre, a cena conclusiva de A hora final de Stanley Kramer: “Ainda há tempo, irmãos”.
*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.
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