Por TARSO GENRO*
O controle político das redes não é necessariamente a condição para a vitória, mas apenas uma das condições que podem influenciar o seu desfecho
Os que aceitaram votar num defensor da tortura eventualmente podem ser desculpados pelo primitivismo da sua visão de mundo – fundada na ignorância e no preconceito – que repousava no seu inconsciente. Não podem ser desculpados, todavia, os que tem inteligência para sentir que o cheiro de morte e o magnetismo doentio – que exalam os atuais donos do poder – repetem todos os dias a brutalidades das velhas ações e das velhas ameaças.
Theodor W. Adorno, em Aspectos do novo radicalismo de direita (Unesp), escreveu que Jean Amery, “refletindo sobre a experiência dos intelectuais nos campos de concentração” – para reconhecerem o que era o mundo à época – “não exigiam nenhuma análise semântica, nenhuma sintaxe lógica: bastava olhar para a torre de vigilância ou sentir o cheiro de gordura queimada que vinha do crematório.”
O debate da graça (indulto ou anistia) concedida ao deputado federal Daniel Silveira revela nas redes uma contradição entre – de um lado – o volume do engajamento dos ativistas organizados na defesa das posições extremistas de direita e, de outro, os reflexos limitados do seu “trabalho”, na formação de uma opinião majoritária nas escolhas sobre a eleição presidencial.
O exame deste espaço imaterial de fluxos da opinião mostra a existência de dois universos paralelos de luta política. Eles ora se unem, compondo uma totalidade, ora se fragmentam, alterando o equilíbrio entre as forças em confronto. Não são universos estanques e ambas as facções enviam mensagens – de um espaço para o outro – através da fala dos seus líderes ou daquilo que os seus representantes formais ou informais, interpretam como seu pensamento.
O primeiro universo – das redes – ainda que de forma instável, tem sido mais fluente para circulação do golpismo, do ódio e do preconceito, e o segundo – o espaço da disputa democrática tradicional – tem sido o mais reflexivo, mais concretamente ligado à vida cotidiana das dificuldades da vida comum, entristecida pelas carências para sobreviver com dignidade.
Por dentro deste espaço – ao contrário do que ocorre nas redes, onde se reproduz majoritariamente o ódio à democracia – é que flui de forma mais racional o debate liberal e democrático, voltado para as eleições: o anonimato nas redes impulsiona os esgotos morais escondidos na consciência fascista; os holofotes da política, na luz da democracia liberal, exigem certas mediações civilizadas para que os indivíduos – à luz do Direito – possam ser ouvidos na sociedade civil com certo respeito civilizatório. Deu-se bem, Daniel?
Em 23 de abril o professor e pesquisador Emerson Cervi mostrou com dados de monitoramento e análise, que Bolsonaro “ganhou de lavada nos ambientes digitais o embate sobre a punição ao deputado da sua base”. Este anulara a separação entre a voz do esgoto – protegida pelo anonimato – e os universos de combate político na legalidade democrática.
Ao atacar diretamente o STF, quando percebeu que as redes poderiam ser mais eficazes se diretamente enfrentassem a mais alta Corte da República à luz do dia, o deputado-réu quis ampliar no espaço público a voz do seu Chefe, já sedento por um golpe miliciano inclusive contra o Exército, se for necessário, para se manter no poder.
Emerson Cervi, no entanto, em seu mesmo estudo, relativiza esta vitória “bolsonarista” nas redes, imputando-a ao fato de que os direitistas extremos são mais organizados e preparados, materialmente, para um embate desta natureza. Eles já criaram meios artificiais superiores aos que detém os seus adversários\inimigos políticos, fazendo um manejo mais organizado dos mecanismos tecnológicos que dispõem para a “guerra”, mas seu alcance é incerto.
Fora das redes sociais o resultado na formação da opinião revela que o ritmo frenético das redes não é necessariamente determinante. O cientista político Antônio Lavareda, analisando a última pesquisa do IPESPE (de 6 de maio) chama atenção para o fato de que 56% desaprovaram o perdão a Daniel Silveira, contra 29% que estão de acordo. Para 35% dos entrevistados, a medida vai diminuir a chance de voto em Bolsonaro; para 20% vai aumentar e não ocorrerá nenhuma alteração na opinião de 31%.
Os resultados permitem observar que as possíveis consequências do gesto, mais prejudica do que favorece o candidato Bolsonaro. Vê-se, diz o articulista, “que embora desperte um debate relevante do ponto de vista judicial e político, seus efeitos não impactam a arena eleitoral”. A conclusão, com a qual concordo, mostra que o controle político das redes não é necessariamente a condição para a vitória, mas apenas uma das condições que podem influenciar o seu desfecho.
Atenção, todavia: as redes têm uma conexão imediata e limitada com a luta eleitoral democrática, embora tenham uma importância estratégica para criação das condições para um enfrentamento caótico entre a democracia e o golpismo, este, o meio mais eficaz para subverter o regime liberal-democrático, com a instalação do caos social e político. E mais: isso não é só desejo do “esgoto” fascista, mas uma possibilidade permanente de solução, sempre cortejada pelos mais fortes sujeitos políticos das classes dominantes do país, quando seus interesses e privilégios são minimamente ameaçados.
A esquerda precisa compreender que estes dois níveis de disputa – nas redes e no espaço político liberal-democrático tradicional – compõem um só universo, articulado por uma série de vínculos culturais e institucionais, que formam os novos territórios da política.
A disputa hoje está situada num tempo humano em que tudo é urgente, no qual se fundem além do que o supérfluo e o necessário, a mentira e a verdade. A “impressão” da busca pelo novo e a impaciência, perante o trabalho histórico para construir uma vida renovada, não suporta mais as longas narrativas dos ciclos dotados de uma certa paz social.
A brilhante estética de luta dos velhos tempos, que conduziram a vitória do discurso político de Lula e lhe elegeram à Presidência, volta brilhantemente depois do seu novo lançamento. E deve permanecer. Mas a guerrilha das redes tem uma outra estética e uma nova linguagem que corresponde aos novos tempos, tanto de dominação do capital como da resistência às suas manifestações mais opressivas.
A combinação destas duas formas de linguagem nos seus distintos territórios onde verte a política é o que dá durabilidade, hoje, ao autoritarismo e à emergência ao fascismo. E a sábia combinação, da nossa parte, para a resistência e a ofensiva política nestes mesmos territórios difusos, onde a guerra é semeada pela extrema direita, é o que pode garantir a vitória do povo, no sentido da República e da democracia.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).