Por GILBERTO MARINGONI*
O que está em pauta no debate sobre a revogação da reforma trabalhista não é apenas os direitos de cidadania da maioria da população; é também que Brasil desejamos construir
A campanha presidencial começa com sinais extremamente positivos. A grande novidade é que a agenda da disputa nos últimos dias é a questão do trabalho. Editoriais da grande mídia tentam esconder o assunto. Até aqui tem sido inútil. O tema toca toda a população brasileira, é o fator organizador da economia e envolve direitos sociais, luta pela igualdade, raça, gênero, idade e papel do Estado.
Ou seja, trata-se de um guarda-chuva que favorece a esquerda e abre uma janela de oportunidade para se politizar o enfrentamento a ser travado até outubro. Lembremos que a pauta geral da eleição de 2018 foi a corrupção, algo que colocou a esquerda na defensiva e deu ampla vantagem a julgamentos enviesados que caíam como uma luva para o moralismo conservador de fachada que favoreceu Bolsonaro.
É por isso que os editoriais já gritaram: “Lula tem deixado claro que segue com as mesmas ideias equivocadas para o País. Sem nenhum rubor, explicita que parou no tempo. (…) Recentemente, Lula e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, defenderam a revisão da reforma trabalhista aprovada pelo Congresso durante o governo de Michel Temer”. As alucinadas linhas acima foram copiadas do editorial do jornal O Estado de S. Paulo, no dia 9 de janeiro de 2022. O porta-voz da Faria Lima tenta opor legislação trabalhista a cidadania, como se isso fosse possível. Angela de Castro Gomes, em seu A invenção do trabalhismo sintetiza uma visão abrangente sobre o tema: “A questão da cidadania passa no Brasil pela questão dos direitos sociais”. Podemos dizer que hoje, tais prerrogativas se expressam no direito ao trabalho.
Assim, a ação da grande mídia, da Faria Lima e de outros agentes políticos da direita é brutal: o assunto sequer deve ser discutido. Lembremos os motivos.
A teoria da agenda. Desde que os pesquisadores Maxwell McCombs e Donald Shaw, professores de jornalismo na Universidade da Carolina do Norte, realizaram um minucioso estudo sobre a vitoriosa campanha do republicano Richard Nixon sobre o democrata Hubert Humphrey, nas eleições presidenciais de 1968, tornou-se perceptível que quem define a agenda de uma disputa entra com nítida vantagem na contenda. Mais importante do que convencer o eleitor de uma ideia é arrastar o debate para um terreno favorável a uma das partes. A disputa se tornaria muito mais eficiente com esse deslocamento.
Lula ganhou em 2002 porque os assuntos crise econômica, desemprego, pobreza e apagão de 2001 tornaram-se dominantes. Todas essas pautas em si colocavam o governo FHC e seu candidato José Serra na defensiva. A categoria trabalho pode ser ainda mais ampla, por envolver praticamente toda a vida em sociedade. Peguemos um argumento clássico, uma conhecida passagem de Marx, no livro I de O capital. Lá, ele escreve o seguinte: “O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. (…) Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio”.
E é a divisão do trabalho – começando pelo trabalho intelectual (ou espiritual) e trabalho material – que baliza a organização da sociedade, de acordo com Marx. Ou, simplificando ao extremo – podemos dizer que o trabalho é o grande organizador das relações sociais.
O que está em pauta no debate sobre as leis trabalhistas não é apenas, portanto, os direitos de cidadania da maioria da população (como se isso fosse pouco). É que Brasil desejamos construir. Quando Getúlio Vargas juntou várias leis dispersas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, sua meta era moldar uma sociedade industrial que teria como pré-condição de existência um contingente de trabalhadores disciplinados, organizados e com ingressos (salários) definidos. Seria a base da expansão do mercado interno. Sem este, com regras definidas, não existe indústria manufatureira, não existe desenvolvimento e não existe cidadania sob o capitalismo.
A agenda do trabalho entra na campanha por força do elevadíssimo desemprego interno, da precarização laboral e da oportunidade mostrada pela ministra do Trabalho da Espanha, a dirigente comunista Yolanda Díaz, de rediscutir a reforma de 2012 em seu país. Entra por ser a grande saída da barbárie neoliberal, da informalidade, da falta de regras e leis e do aumento da opressão social.
É impossível prever os rumos dessa disputa. Ela dependerá da pressão social, da ação das centrais e do movimento sindical, das demais organizações do movimento popular, dos partidos que formam a frente encabeçada por Lula, a começar por sua agremiação, o Partido dos Trabalhadores. Repetindo: debater a categoria trabalho significa debater direitos sociais e políticos, cidadania, mercado interno, prioridades econômicas e organização do Estado. Juntamente com o questionamento do teto de gastos, podemos ter uma campanha altamente politizada e que se volte para os dramas reais do dia a dia das pessoas.
Desnecessário dizer que assuntos como nova âncora fiscal para contentar a Faria Lima e as demais ruas do país, como tem falado o ex-ministro Nelson Barbosa, a marola feita por setores da própria esquerda num tema desimportante como a escolha do vice na chapa de Lula e as tentativas de se desgastar a ex-presidenta Dilma Rousseff, na prática, criam ruído às portas de uma jornada difícil e possivelmente violenta, mas na qual os setores progressistas largam com nítida vantagem.
Como diria James Carville, ex-assessor especial de Bill Clinton, numa frase memorável: – É o trabalho, estúpido!
*Gilberto Maringoni é professor da Universidade Federal do ABC.