Eleições americanas — os consórcios de doadores

Imagem: Andrea Piacquadio
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Por ALESSANDRO VOLPI*

A vitória de Donald Trump seria um verdadeiro terremoto financeiro, institucionalmente motivado, que forçaria “os senhores do mundo” a lidar com a política

Após o anúncio da saída de Joe Biden da corrida presidencial, vem emergindo com cada vez mais clareza um conflito dentro do capitalismo financeiro norte-americano. Tentarei aqui resumi-lo e talvez até simplificá-lo.

Após a escolha de James D. Vance como candidato a vice-presidente e a tomada de posição de Elon Musk, as fileiras de apoiadores (e financiadores) de Donald Trump vêm crescendo. Isso pode ser atribuído a um segmento do capitalismo que busca conter o poder desmesurado dos Três Grandes, ou seja, os superfundos Vanguard, Black Rock e State Street, agora decididamente vinculados aos Democratas.

Tanto Joe Biden quanto Kamala Harris tiveram e têm figuras-chave em suas equipes que vêm da Black Rock. Um personagem como Jamie Dimon, o CEO do JP Morgan, o superfundo bancário, há muito cortejado por Donald Trump, está prestes a ser arregimentado pelos Democratas. O presidente da Reserva Federal nomeado por Donald Trump, Jerome Powell, com o apoio da Secretária do Tesouro democrata Janet Yellen, seguiu as estratégias dos mesmos superfundos, comprando seus ETFs [Exchange-traded Funds, fundos de investimento negociados em bolsa, que acompanham o desempenho do índice NDR ̵ Net Dollar Retention].

O condomínio trumpista

Frente a essa simbiose, formou-se um grupo de figuras que querem usar o poder político da presidência de Donald Trump para combater ou limitar o poder excessivo dos Três Grandes. Nesse elenco aparecem alguns grandes fundos de hedge, como o de John Paulson, preocupado com sua marginalização progressiva em um “mercado” dominado pelos superfundos, algumas empresas petrolíferas não diretamente ligadas aos gigantes da energia já nas mãos dos Três Grandes — como Timothy Dunn e Harold Hamm da Continental Resources —, bem como bilionários de longa tradição como os Mellons, irritados com o poder excessivo de Larry Fink (CEO da Black Rock), além de personagens como Bernie Marcus, fundador da Home Depot, gigante com 500 mil funcionários, hostil ao modelo sem fábrica das big tech, cuja criação foi vendida pela Vanguard, Black Rock e State Street.

Entre os capitalistas de Donald Trump estão também donos de cassinos, como Steve Wynn e Phil Ruffin, assustados com o avanço de grandes fundos até mesmo em seus setores, além de personagens típicos do mundo trumpista, como Linda McMahon, fundadora, junto com o marido, da empresa promotora de luta livre e esportes Wold Wrestling Entertainment. Em suma, a possibilidade de sucesso de Donald Trump acabou desencadeando um duro choque dentro do capitalismo americano, que pode provocar uma mudança no seu equilíbrio interno e até mesmo enfraquecê-lo.

Por casualidade, ao percorrermos a lista dos financiadores de Kamala Harris, encontramos numerosos expoentes das finanças, vinculados, em diferentes medidas, aos grandes fundos. Com efeito, destacam-se nomes como o de Reid Hoffman, criador do LinkedIn, vendido em 2016 à Microsoft por 26 bilhões de dólares e, desde então, membro do Conselho de Administração da própria Microsoft, da qual, como se sabe, Vanguard, Black Rock e State Street controlam mais de 20%.

O mesmo Reid Hoffman detém hoje uma participação significativa na Airbnb, onde os Três Grandes são os principais acionistas. Ao lado de Hoffman, está Roger Altman, um financista democrata de longa data, colaborador de Jimmy Carter e Bill Clinton em papéis sutis, e que passou pela holding financeira Lehman Brothers, pelo grupo Blackstone, e hoje é diretor do banco Evercore, do qual a Vanguard detém 9,46%; a Black Rock, 8,6%; e a State Street, 2,6%.

Além deles, temos Reed Hastings, presidente da Netflix, onde a Vanguard tem 8,5%; a Black Rock, 5,75%; e a State Street, 3,8%. E também temos Brad Karp, advogado de confiança de longa data do JP Morgan; Ray McGuire, presidente da Lazard Inc, onde a Vanguard é a maior acionista, com 9,5%, seguida pela Black Rock, com 8,5%. Temos também Marc Lasry, CEO do Avenue Capital Group, o fundo de hedge próximo aos Três Grandes, e Frank Baker, proprietário de uma private equity. Um lugar de destaque entre os doadores de Kamala Harris é ocupado por vários membros da família Soros e vários protagonistas das principais consultorias americanas, como Jon Henes e Ellen Goldsmith-Vein.

Em suma, a nova candidata reuniu um vasto consórcio de doadores que vêem o horizonte das finanças trumpistas como uma ameaça ao monopólio “tranquilizador”, cuidadosamente cultivado pelos superfundos, acionistas chave que são das principais empresas do índice Standard & Poor’s 500. Pode-se reconhecer nesse consórcio uma tropa de defesa dos grandes agentes da gestão global de ativos e da participação acionária daqueles gigantes, contra eventuais choques produzidos por uma vitória republicana, ainda que sob a égide de condicionantes “cruzados”.

A “rédea curta” em Kamala Harris

Kamala Harris apresentou-se na Carolina do Norte como patrocinadora de um programa de defesa da classe média — identificada como aquela de rendimentos anuais de até 400 mil dólares —, comprometida com uma iniciativa de apoio à casa própria popular e sinalizando uma estratégia de contenção da especulação de preços. Em suma, um programa muito genérico, que a candidata democrata definiu como a “economia das oportunidades”. A insinuação de uma iniciativa de impedir a especulação de preços, no entanto, assustou os Três Grandes, que haviam investido nos Democratas, visando evitar um “outro capitalismo” domiciliado no clã Trump.

Assim, o New York Post saiu pouco depois de 15 de agosto, com uma manchete ruidosa, em que Harris era definida como “comunista” precisamente por querer controlar os preços e aumentar os gastos federais. A este respeito, vale a pena sublinhar que o New York Post é propriedade da News Corp., cuja participação inclui Rupert Murdoch e os Três Grandes, estes últimos com mais de 20% de controle. Parece evidente que os superfundos foram rápidos em utilizar um veículo reconhecidamente trumpista para fazer Kamala Harris entender o que não pode fazer. Na prática, ela não pode fazer política contra o monopólio da especulação. De fato, há quem chegue a pensar que Kamala Harris é mesmo um pouco “comunista”.

Mal-entendidos interessados

No La Repubblica, de Roma, de 21 de agosto de 2024, Paolo Mastrolilli entrevistou, muito satisfeito, Bernie Sanders, “o único senador socialista” dos Estados Unidos. A satisfação de Mastrolilli foi resultado da declaração de Sanders de apoio convicto, quase adorador, a Kamala Harris. Partindo do pressuposto de que Donald Trump é um fascista perigoso, Bernie Sanders elogiou Joe Biden, o presidente mais “progressista” da história moderna dos Estados Unidos, e instou as pessoas a votarem em Kamala Harris para continuar o seu trabalho.

É claro, acrescentou Bernie Sanders, que teremos de superar a resistência de 1% da população composta pelos super-ricos que, argumentou ele com franqueza, “nunca estiveram tão bem”. Seria porque os presidentes recentes tenham feito de tudo para lhes facilitar a vida? Bernie Sanders escreveu um livro sobre o sistema econômico norte-americano, atacando os grandes fundos. Parece que em algum movimento ele acabou sofrendo um lapso de esquecimento.

Estamos, portanto, de fato diante de um conflito intestino de um capitalismo que, por um lado, constrói sua fortuna sobre o monopólio financeiro (entendido como uma ferramenta para reduzir o risco para os cidadãos que, agora, teriam idealmente se tornado sujeitos financeiros, por meio de suas políticas), e, por outro, vemos a formação de um bloco que visa debilitar aquele monopólio, na esperança de não ser excluído da bolha inflante, mas que precisa de política, a começar pela política monetária, com taxas decididamente mais favoráveis, com que possa dispor. Para além das narrativas populares triviais, estas eleições comportam uma dura guerra entre grupos financeiros.

O esquema político-econômico dos Democratas tem sido, até agora, muito compreensível. Jerome Powell, presidente do Fed, anunciou diversas vezes que as taxas de juro americanas permaneceriam elevadas. A história de Jerome Powell, nesse sentido, é muito interessante. Colaborador de Nicholas Brady, secretário do Tesouro de Bush (pai), ligou-se ao Grupo Carlyle e criou o seu próprio banco de investimento privado, antes de ingressar no conselho da Reserva Federal, juntamente com Jeremy Stein, por nomeação do presidente Barack Obama.

Nomeado por Donald Trump em fevereiro de 2018 para presidir a Reserva Federal, em substituição a Janet Yellen — considerada demasiado próxima dos democratas —, foi confirmado por Joe Biden e, durante sua presidência, abraçou a linha de combate à inflação com uma política monetária restritiva, que certamente favoreceu os grandes detentores de ativos geridos — os Três Grandes, na verdade — removendo a liquidez dos mercados e, ao mesmo tempo, ajudando a apoiar a dolarização seguida pelo próprio Joe Biden para financiar os seus enormes gastos federais, construídos sobre dívida.

Altas taxas e geopolítica

É claro que os Estados Unidos querem realmente continuar drenando poupanças de todo o mundo para financiar a sua economia, mas para pagarem taxas tão elevadas, a fim de atrair poupadores globais, necessitam que o dólar seja a única moeda mundial, aceita tanto em termos financeiros como em termos geopolíticos. Nessa perspectiva, Joe Biden preferiu o caminho do aumento dos gastos federais para financiar a recuperação de uma economia doméstica produtiva, fomentada pelo dólar forte, em lugar de uma dinâmica competitiva facilitada por taxas de juro mais baixas.

Também por esta razão, na cúpula da OTAN de junho de 2024, proclamou-se a possibilidade de adesão da Ucrânia, com o apoio imediato de uma Europa feliz com o seu atlantismo que lhe impõe o dólar como meio de financiamento aos Estados Unidos, às custas dos europeus. Se os Estados Unidos mostrarem os seus músculos e os “aliados” europeus se alinharem, o dólar continuará a ser a única moeda do Ocidente, e a economia americana poderá voltar a produzir, em lugar de ser apenas movida a papel.

No entanto, as agências de classificação, propriedade dos grandes fundos, baixaram a classificação da dívida da França “socialista” porque é melhor prevenir do que remediar. A OTAN, os boletins das agências de classificação e a política externa agressiva são três elementos-chave do “modelo” Democrata, que não pode admitir qualquer forma de isolacionismo e deve perseguir a primazia militar mundial, de acordo com as declarações da própria Kamala Harris.

A hostilidade de Donald Trump com a OTAN é, pelo contrário, sinal de uma oposição política plausível ao projeto Democrata, e expressa a ideia de que a aliança militar não pode ser usada para fins econômicos e monetários, para os quais seriam necessárias outras estratégias. O candidato republicano, na conferência dos “mineradores digitais” de Nashville, declarou seu apoio ao bitcoin e às criptomoedas, anunciando o estabelecimento de uma reserva estratégica ad hoc e de um Conselho Presidencial sobre o tema.

Ele argumentou, alterando suas antigas posições, que as criptomoedas podem representar um recurso para a economia americana, capaz de proteger o próprio dólar dos riscos do progressivo abandono internacional. Donald Trump não gosta da política de taxas elevadas da Reserva Federal, que gera um dólar demasiado forte para as exportações das empresas de bandeira americana, sobrecarregadas pelo custo do crédito, e que correm o risco de limitar o spread do dólar, porque é excessivamente oneroso para os seus usuários, especialmente em países emergentes.

Donald Trump e o projeto de uma nova centralidade monetária norte-americana

Nesta perspectiva, o bitcoin e as criptomoedas tornam-se não apenas um objeto sobre o qual construir operações especulativas, talvez lideradas por fundos de hedge próximos do próprio Donald Trump, mas também um meio para definir um novo instrumento monetário “ideologicamente” mais popular e antiestatal, que possa manter a centralidade monetária americana, passando-a para o nível digital.

Neste sentido, Donald Trump quer “americanizar” a criptografia monetária e, coerente com uma atitude semelhante, fez saber que não voltará a colocar em circulação as criptomoedas apreendidas pelas autoridades federais, que somam quase nove bilhões de dólares, para constituir a reserva estratégica acima mencionada e evitar choques aos cerca de 50 milhões de americanos detentores desse tipo de ativo.

Mais que tudo, declarou que substituirá os dirigentes da SEC (Securities and Exchange Commission), autoridade supervisora da bolsa, a começar por Gary Genser, que sempre foi hostil a esse tipo de instrumentos de pagamento. O próprio Donald Trump também mencionou a possibilidade de unir logisticamente sistemas de Inteligência artificial altamente intensivos em energia com mineradores digitais, para otimizar a exploração de picos de energia que, de outra forma, seriam dispersados, lutando, ao mesmo tempo, pela liderança mundial em inteligência artificial e mineração.

Nessa mesma linha, Donald Trump indicou que as compras governamentais de bitcoin devem atingir 4 ou 5% do volume total disponível. A estratégia das stablecoins também se coloca em uma perspectiva semelhante: as empresas que emitem stablecoins atreladas ao dólar devem comprar o equivalente em títulos do governo norte-americano. Assim, ao substituir o circuito do eurodólar pelo das stablecoins, os Estados Unidos recuperariam, de fato, o controle dessa monstruosa massa monetária de dólares espalhada por todo o globo, que agora é predominantemente controlada pelos mercados de valores.

Uma posição tão clara pode ser lida como mais uma controvérsia do capitalismo desenfreado contra os Três Grandes que usam bitcoin para criar ETFs, mas sempre demonstraram grande desconfiança em relação ao cenário criptográfico geral, porque o bitcoin e as criptomoedas reduziriam o monopólio de liquidez detido pelos próprios Três Grandes, graças à poupança gerenciada.

A multiplicação dos instrumentos de pagamento favorece aqueles que estão fora do monopólio de liquidez e abre espaços, mesmo em termos especulativos, fora das escolhas da Vanguard, da Black Rock, da State Street e do seu braço armado, o JP Morgan. A posição assumida por Donald Trump em Nashville visou, mais uma vez, construir um consenso em relação ao candidato republicano por parte daquela vasta parcela dos americanos que não se reconheciam no modelo “Democrata” dos grandes fundos, capazes de reduzir os riscos por conta do seu status de monopólio e, portanto, capaz de garantir políticas de saúde e segurança social não apoiadas pelo Estado a milhões de americanos.

As criptomoedas são uma parte do paradigma libertário e do espírito “competitivo” do capitalismo que Donald Trump que, apoiada pelo candidato Vance, se dispõe a invectivar em tom patriótico contra a Wall Street da elite. É provável, à luz disto, que além de Gary Genser, da SEC, Trump, se vitorioso, também afaste Jerome Powell, precisamente por conta da sua política de taxas elevadas, atualmente alimentada por uma enorme quantidade de emissões de curto prazo, acionadas para manter altas as taxas de longo prazo sem depreciar os títulos.

Assim, a vitória de Donald Trump seria um verdadeiro terremoto financeiro, institucionalmente motivado, que forçaria “os senhores do mundo” a lidar com a política, talvez modificando a estrutura superior do capital financeiro; uma “remodelação” necessária para enfrentar as tensões com a economia comunista chinesa; coisa por agora completamente inconciliável com o pacto Democratas-Três Grandes.

Progressismo não é sinônimo de “esquerda”

Quase toda a imprensa italiana, incluindo Il Manifesto, celebrou a candidatura de Tim Walz como vice-presidente em termos de escolha “de esquerda”. Esta é uma definição decididamente arriscada para um personagem que está substancialmente alinhado com Kamala Harris em questões de política econômica e financeira. Não é por acaso que, para corroborar aquela proposição, os meios de comunicação italianos citaram as declarações de Donald Trump e o apoio de um Bernie Sanders cada vez mais confuso.

A verdadeira questão é que para a imprensa italiana “esquerda” é um sinônimo estrito de “progressismo”; uma categoria que, na verdade, combina amplas aberturas em direitos e liberdades com uma profunda fé capitalista. Portanto, Harris-Walz vs Trump-Vance deveria ser definido em termos do choque entre capitalismos, sem introduzir o termo “esquerda” e sem ter que mencionar o apoio de Dick Cheney a Harris, que até mesmo se declarou a favor do fracking.

*Alessandro Volpi é professor de historia contemporânea na Universidade de Pisa.

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente em Fuori Collana.


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