Eleições na França — uma vitória que não houve

Imagem: Studio 31
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Por FREDERICO LYRA*

A reorientação social e institucional autoritária não precisa necessariamente da extrema direita no poder

Uma decisão eleitoral

Por volta das 20h30/21h do dia 09 de junho de 2024, pouco depois do anúncio oficial que confirmava a vitória da extrema direita encabeçada por Jordan Bardella, de apenas 28 anos (pela primeira vez alguém que não possui sobrenome Le Pen), nas eleições para o parlamento europeu ocorridas naquele mesmo dia, o presidente Emmanuel Macron resolveu roubar a cena e anunciar uma surpreendente dissolução da assembleia nacional na qual possuía não obstante uma frágil maioria.

Um frisson tomou conta da imensa maioria da população, inclusive dos seus aliados e simpatizantes mais próximos. Ninguém entendia o porquê daquela decisão de aparência precipitada, ninguém imaginara que aquilo fosse possível. Todos, porém, suspeitavam que no fundo o presidente não sabia exatamente o que estava fazendo. Houve queda na bolsa de valores parisiense. Alguns sentiram a dissolução com um espanto próximo àquele do anúncio do confinamento em 2020 por ocasião da covid-19.

Na época falou-se em guerra, e desde então (ou talvez desde antes) vem-se governando a sociedade como se fosse uma guerra. Outros lembraram logo da dissolução proposta por George Pompidou a Charles De Gaulle no calor das barricadas do Maio de 68, mas logo se deram conta que não havia nenhum paralelo com a situação insurrecional dos anos 1960. A única semelhança, ainda que a envergadura dos personagens envolvidos seja bastante assimétrica, seria a vontade dos respectivos líderes de manter a aparência de estar no centro e controle de toda situação.

Se é verdade que a possibilidade da dissolução da assembleia nacional vinha sendo ventilada na imprensa, nada indicava que o presidente tomaria essa decisão. Muito pelo contrário, a concretização da vitória do Rassemblement National (RN) na eleição para o parlamento europeu indicava que o mais racional seria exatamente o contrário. A possibilidade da extrema direita obter a maioria absoluta na assembleia nacional nunca havia sido tão grandes. A prudência e moderação, traços tradicionais para quem se posiciona como um político de centro, eram demandadas. Era necessário ganhar um pouco mais de tempo.

Porém Emmanuel Macron, errático e impulsivo, não corresponde a este perfil, ele é quem melhor encarna o que tem sido chamado de “extremo centro”.[i] Isto é, um autoritarismo de tipo novo, uma das faces de reestruturação do governo do capitalismo global. A maneira e o momento que a dissolução e o novo processo eleitoral foram anunciadas, trazia consigo um resultado dado como certo: a vitória do RN. Nunca, até aquele momento, o possível resultado de uma eleição fora tão pré-determinado. Esta era a tampa de esgoto que Emmanuel Macron abria de maneira súbita, com a sua decisão radical de dissolver o parlamento.

Sendo verdade ou não, é sempre bom lembrar que o parlamento europeu é no fundo percebido pela maioria da sociedade como uma instância que cumpre um papel formal no seio de uma das instituições menos democráticas do capitalismo global, à saber, a União Europeia (UE)[ii] — coisa que a maioria da população entende bem pois, embora crescente, a taxa de participação nesta eleição fora de apenas 43%. Como há de se lembrar, quando foi organizado um referendo em 2005 para consultar a população francesa se ela queria ou não aderir à constituição europeia (o tratado de Roma II) ela democraticamente respondeu não.

Quase 55% dos franceses disseram não à constituição, mas como essa era a opção democrática errada, a constituição se viu inviabilizada, pois também os holandeses a rejeitaram. O establishment europeu resolveu mudar a via e elaborou outro tratado, o tratado de Lisboa, que foi democraticamente imposto sobre os países membros, só que desta vez obviamente sem nenhuma consulta popular, pois obviamente não se poderia correr riscos de outra escolha errada. Embora grande entusiasta da União Europeia, ao ponto de querer ressuscitar o antigo projeto de um exército europeu, Emmanuel Macron sabe perfeitamente que a extrema-direita já se faz bem presente no interior da instituição internacional, e que, embora não pare de tentar, até aqui não conseguiu ameaçar de maneira mais enfática as suas estruturas administrativas e orientação política desta.

 Nada portanto o pressionava a tomar tal decisão. O argumento usado de que ele havia sido derrotado, e que uma crise de legitimidade se abria não era de todo falso, mas bastava um ou outro ajuste, uma ou outra declaração e o barco do governo retomaria o seu rumo (embora poucos consigam identificar qual seja) sem maiores percalços. Com a chegada das férias de verão e os Jogos Olímpicos se avizinhando, logo a população esqueceria o choque da vitória eleitoral da extrema direita no pleito europeu.

Tudo voltaria ao normal, ao menos até 2027, quando haverá nova eleição presidencial. Foi uma espera que se instalou. Se em uma mistura de adesão e repulsa, a sociedade se organizava na espera dos Jogos Olímpicos, foi o medo e otimismo, a depender o campo político, que passou a imperar e, por algumas semanas, tomou conta do país. Nunca o futuro que se anunciava fora tão favorável aos partidários da extrema direita.

Uma pesquisa logo mostrou que a maioria dos eleitores de Bardella aprovaram a decisão de Macron. A dissolução aparecia como decisão de um único homem, ela espalhou inquietude, incompreensão e indignação pela sociedade. A crise que o presidente desencadeara abrira um buraco desconhecido suspendendo o tempo por curtas três semanas — pois como se não bastasse disparar tamanha confusão, o presidente decidira dar o menor prazo possível para a organização de uma eleição de tamanha importância: o primeiro turno seria no dia 30 de junho e, uma semana depois, 7 de julho, o segundo turno.

Um desfecho catastrófico tomava forma com a perspectiva de entrar em um novo mundo sombrio, até aqui desconhecido, no qual a extrema-direita governaria novamente a França. Novamente, pois tal coisa que não acontece desde o governo de Vichy (1940-1944) sob comando do Marechal Pétain em parceria com Hitler — sem esquecer que Macron em um gesto obscuro reabilitou oficialmente Pétain ainda em 2018.[iii]

Minutos antes do anúncio televisivo feito pelo presidente nenhuma dessas expectativas aparecia no horizonte imediato da população francesa. A possibilidade de governo da extrema direita é concreta, mas para dali a três anos. O presidente adiantou o relógio.

Se teríamos um governo totalmente diferente, uma guerra civil institucional, uma parceria nova entre o presidente e seu jovem primeiro-ministro ou até mesmo uma continuação mais ou menos igual ao breve governo de Gabriel Attal, jamais saberemos. Não eram poucos o que tinham impressão que Macron queria governar com o RN. Talvez ele achasse que poderia controlar ou desgastar a extrema direita no poder.

No entanto, a certeza fatalista que encarnava as expectativas da sociedade francesa que finalmente chegara a hora do RN tomar o poder não foram cumpridas. Após três semanas vividas como um sursis em uma contagem regressiva à espera de um desfecho catastrófico determinado de antemão, para surpresa geral, no dia 7 de julho, encerramento do segundo turno, contra todos os prognósticos e pesquisas eleitorais, a coligação da esquerda que havia nesse tempo se constituído com o nome de Nouveau Front Populaire (Novo Fronte Popular — NFP), embora longe de alcançar qualquer maioria que lhe permitisse impor um primeiro-ministro, garantiu o primeiro lugar e a maior bancada de deputados.[iv]

O Front Républicain que havia se constituído com uma aliança mambembe entre o NFP e as forças macronistas do Ensemble, conseguiu frear mais uma vez a ascensão do RN. Macron, no entanto, antidemocrático e mau perdedor, fez de conta que não houve eleição e, e uma aliança não declarada com o RN, resolveu nomear Michel Barnier, do fraco Partido Republicano como primeiro-ministro. Ao final do pleito o país parece experimentar uma divisão institucional e territorial que de certa atualiza as fraturas francesas, é sobretudo isto que abordaremos aqui.

O presente estendido francês

Não se pode pensar a França contemporânea sem ter sempre em mente o segundo turno da eleição presidencial de 2002, no qual um outro Front Républicain se constituiu em torno de Jacques Chirac para dar-lhe 83% dos votos — “um resultado de ditadura das bananas”[v] lembrou o jornal Ouest France por ocasião dos 20 anos deste acontecimento — contra 17% obtidos o Jean-Marie Le Pen, do Front National, que, no primeiro turno, havia deixado para trás Lionel Jospin, o primeiro-ministro da época, e favorito para ganhar a eleição presidencial pelo Partido Socialista (PS).

Desde então a política institucional francesa virou à direita e é, de certa forma, ditada pelas pautas e programa da extrema direita. De certa maneira, mesmo não tendo ainda chegado ao poder, é a extrema direita que orienta, desde o início do milênio, os caminhos tomados pela sociedade civil francesa. Por outro lado, isso só é possível pela sociedade estar objetivamente orientada para a direita. Como veremos, a virada à direita do macronismo não se deu apenas por crença no discurso da extrema-direita, ela também é uma tomada de posição em virtude da direitização da sociedade. Um tentando alcançar o outro, e vice-versa.

Os atentados contra o jornal Charlie Hebdo e do Bataclan de 2015 acentuaram e selaram a tendência desta virada.[vi] Os exemplos são muitos, mas podemos destacar a nova lei de imigração votada em janeiro de 2024, e conhecida como Loi Darmanin, do nome do ministro do interior, ele mesmo um antigo participante do movimento de extrema direita Manif pour Tous.

Movimento, que se transformou em uma associação em 2023, a Manif pour Tous [Manifestação por todos] se constituiu no final de novembro de 2012 em torno da luta contra a Lei do Casamento Gay. A sua principal ação era uma manifestação nacional anual, de onde o seu nome tem origem. Além do ministro Gérard Darmanin, o primeiro policial da França como é conhecido, podemos destacar a simpatia momentânea pela movimento de figuras normalmente inquestionáveis como Simone Veil[vii], a antiga ministra da saúde sob o nome da qual é conhecida a lei de que dá direito ao aborto (loi Veil), imortalizada por Macron no Pantheon.

Em seu livro L’extrême droite, nouvelle génération : enquête au coeur de la jeunesse identitaire[viii] [Extrema-direita, nova geração: enquete no seio da juventude identitária], Marylou Magal e Nicolas Massol destacam, entre várias outras coisas, como a Manif pour tous foi determinante por ter proporcionado um espaço para que as diferentes tendências da direita francesa se encontrassem. As manifestações foram um laboratórios onde alianças, trocas intelectuais e afetivas se criaram e virou um ponto de encontro orgânico para a organização da nova extrema-direita francesa, sobretudo da sua juventude.

Segundo os autores, os jovens tem menos pudor em construir ligações antes interditadas aos seus pais políticos, isto é, assumem mais facilmente as afinidades entre todas as direitas, o que, consequentemente, desemboca numa direitização crescente das direitas francesas a partir das suas juventudes. Foi de lá que saiu, por exemplo, o candidato do RN, Jordan Bardella.

O presidente que em 2017 prometera neutralizar definitivamente a extrema direita é, hoje em dia, apontado como o principal responsável pelo crescimento do monstro que vem se formando de forma imanente na sociedade e pela aceleração da marcha do RN rumo ao poder. Em entrevista ao Le Monde do dia 18 de junho, o consultorRaphaël Lorca chamou a dissolução da assembleia de “golpe de estado psíquico”. Isto é, um ato político de tal força desestabilizante que é capaz de provocar uma neutralização mental, um sentimento de que aquilo que é vivido não é real. Levando todos a se perguntarem se aquilo não fora um sonho ou delírio.

Por outro lado, diz ele, esse tipo de ato performático tem um efeito de hiper-realidade, pois em uma conjuntura perene, toda decisão do tipo “é colocada no registro de urgência”. Toda transgressão ou decisão política futura passa a ter esta decisão como medida. Como de agora em diante, a maioria das decisões serão inevitavelmente percebidas como menos radical que estas as brechas deixadas por ela são imensas.

A ideia de um novo tipo de golpe de estado já havia sido notada por Alain Badiou. Segundo o filósofo, a eleição de 2017 já havia sido fruto de um voto plebiscitário com uma “campanha de bombardeamento sistêmico dizendo: se não for ele, vocês terão a extrema-direita”. O que teria ocorrido de fato nesta eleição, diz ele, foi um “golpe de estado democrático”[ix] — uma atualização do bonapartismo tal qual ele havia sido identificado por Marx — que trouxe ao poder uma nova aliança um largo espectro político, midiático e empresarial que Bruno Amable e Stefano Palombarini chamaram de “bloco burguês”[x].

Isto é, Macron representaria uma recomposição do espectro político e empresarial que se organizou com o objetivo de governar e reestruturar rapidamente a França, tornando-a, por assim dizer, apta e preparada para participar das rápidas transformações do capitalismo globalizado e, sobretudo, conter a insatisfação crescente da população e os motins que iriam se multiplicar contra a aceleração de tais processos reformatórios — o que de fato aconteceu.

Esse bloco dirigido politicamente pelo presidente e pelo grupo de partidos reunidos no Ensemble, mantém muito da sua legitimidade e perpetuação no poder devido ao medo que propagam em alto em bom som de serem o último bastião civilizado disponível contra a ascensão da extrema-direita.Resta saber se essa barragem eleitoral surtirá efeito para sempre, ou se em 2027, por ocasião da próxima eleição presidencial, a profecia que vem sendo adiada há mais de vinte anos será finalmente cumprida.

Centro, esquerda, extrema direita

Foram três semanas de campanha intensas ritmadas por eventos quase que quotidianos. No dia seguinte à dissolução da assembleia, Macron se reuniu com os chefes dos três partidos que compõem o seu grupo Ensemble: Stéphanie Séjourné (Reinaissance), Edouard Philippe (Horizons) e François Bayrou (MoDem). Este último chegou a sugerir que a campanha devia se descolar do presidente, escondendo a sua imagem, sob o risco de afundar-se totalmente na sua baixa aprovação; uma ideia evidentemente rejeitada pelo chefe, pois o presidente continuou omnipresente nas mídias dizendo que daria três intervenções televisivas por semana.

No início da campanha, ainda sob choque devido à decisão tomada por seu líder, o campo macronista se viu desesperado à procura de aliados. Encontrou muito poucos disponíveis para dialogar. A decisão do presidente coincidia com o momento no qual o seu campo político se encontrava mais fragilizado. O resultado das eleições europeias havia sido um dos piores que uma maioria presidencial obtinha em uma eleição legislativa. Muitos já se imaginavam pulando fora do barco.

Seu antigo aliado, o remanescente de Maio 68, Daniel Cohn-Bendit não mediu as palavras para o La Tribune: “Macron colocou a insensatez no centro da França! Ele pensa que é Jesus, imaginando que sua boa palavra resolverá tudo”. “É o Titanic”, disseram outros de dentro do governo sem saber ao certo se deviam se demitir, romper com o campo presidencial, se engajar na campanha, fundar um novo partido-movimento ou apenas esperar. Não por acaso um possível aliado, o ex-presidente François Hollande[xi], que surpreendentemente se apresentou como candidato a deputado pelo PS, chegou a afirmar que a coligação presidencial estava morta. Em certo momento do segundo turno o jornal Le Figaro afirmou que “em nome do ‘front républicain’, a macronia risca ser apagada”.

Imperava uma atmosfera de fim de reino. Não foram poucos os que ensaiaram sair do bloco tão logo as urnas fossem abertas e os votos contados. A inquietude reinava sobretudo entre aqueles que não teriam destino certo após o pleito. Ao final da eleição, no entanto, o Ensemble sobreviveu obtendo um bom resultado de 165 deputados (embora isso signifique 73 a menos que na configuração anterior do parlamento). Embora tenha perdido a maioria relativa que tenha e se tornado a segunda força no congresso, por algumas semanas o grupo temeu o pior. Tudo indicava, e os resultados do primeiro turno reforçavam isto, que a base do presidente seria literalmente varrida do mapa político francês.

Foi graças às esquerdas e ao Front Républicain que isso não só não aconteceu, e a derrota sofrida foi numericamente minimizada. A desmoralização, por outro lado, foi grande, mas resta saber se isso ainda tem importância. De todo modo, é fato que se a desintegração total do campo presidencial não ocorreu, a sua possibilidade real foi vivida intensamente por todos, como se estivesse em marcha iminente.

A grande aposta de Macron para tentar ganhar ou minimizar uma eventual derrota eleitoral era a impossibilidade aparente de uma união das esquerdas. Porém, logo no dia 13 de junho essa impossibilidade já era favas contadas, e um acordo havia sido feito. De fato, o presidente tinha razões de apostar numa nova fragmentação das esquerdas, tendo em vista a dura campanha para o parlamento europeu, recheada de acusações e ataques mútuos entre o La France Insoumise (LFI) e o PS — encabeçado desta vez por uma figura ascendente daquilo que antigamente era nomeado de gauche caviar, rebatizada por Thomas Piketty como gauche brahmane: Raphaël Glucksmann.[xii]

Pouco após o anúncio da dissolução da assembleia, este último declarou que era impossível construir qualquer aliança com Jean-Luc Mélénchon, líder do LFI, e que o movimento mais natural para o PS seria de serrar fileiras com o governo. Ele foi rapidamente desautorizado pelo restante do partido que costurou um acordo e selou uma aliança com o PCF, LFI e EEVL (Europa Ecologia Os Verdes) que, com acenos claros para o passado glorioso da classe trabalhadora francesa, recebeu o nome de Nouveau Front Populaire (NFP).

Apesar do nome, a aliança tinha de tudo, embora não fosse assim tão popular, pois faltava povo; sobre isso voltaremos mais abaixo. Por enquanto o mais importante é saber que apesar de tudo havia uma disputa hegemônica entre a assim chamada “esquerda de ruptura” encarnada pelo LFI e a esquerda mais institucional liderada pelo PS (curiosamente ou não, é mais próximo deste polo que o Partido Comunista Francês se encontra atualmente).

De maneira análoga aos problemas que o presidente trazia para o seu grupo, era Mélénchon a figura à ser contida no NPF. “Cada vez que ele diz que será primeiro-ministro ele me faz perder alguns votos”, chegou a afirmar François Ruffin, candidato pela Somme, uma zona industrial devastada e um quadro de proa no LFI, que ao final do pleito irá romper definitivamente com o partido. Imaginava-se que essa aliança era uma maneira de construir uma força capaz de frear minimamente o governo do RN, isto é, foi a maneira encontrada para conter os danos institucionais que todos davam como certo. No entanto, contra todas as expectativas, o NPF obteve 178 deputados, chegando em primeiro lugar no pleito. No interior do grupo, embora segundo em número, o PS foi o grande vencedor.

O partido, que quase desaparecera na eleição de 2022 quando obteve apenas 27 deputados, tem agora 65 representantes, seis a menos que o LFI. Sob condições normais, o novo primeiro ministro viria do NPF. É bom insistir que a regressão e direitização nas sociedades democráticas ocidentais é tamanha que aquilo que algumas décadas atrás apareceria como um programa social-democrata tradicional, hoje é considerado como de esquerda radical — alguns, vindo da esquerda e aparentemente com os pés fora do chão, falam até mesmo que se trataria de umaesquerda de ruptura(gauche de rupture).[xiii] É verdade que dentre as propostas apresentadas para a eleição de 2017, o LFI defendia a refundação radical da República francesa, isto é, a fundação da 6a República, mas isso saiu totalmente de cena.

Do lado da extrema direita o processo foi vivido como uma passagem da euforia pelas perspectivas reais do poder à relativa decepção. Embora tenha obtido inéditos e significativos 148 deputados na assembleia, a possibilidade real, que não se concretizou, de uma vitória massiva no qual o alvorecer do 08 de julho marcaria a chegada de um jovem oriundo das suas fileiras ao posto de primeiro-ministro da quarta potência nuclear do planeta foi vivida como uma ducha de água fria.

Até o momento em que apareceu encabeçando a chapa do RN para as eleições europeias, Jordan Bardella era um desconhecido do grande público. Embora ele seja há um bom tempo usuário assíduo no Tik Tok, rede social que prefere em detrimento ao X (twitter), sobretudo para se comunicar com a juventude. É importante ressaltar que em torno de 30% dos jovens entre 18 e 34 anos votaram no RN (o grupo macronista conta com menos de 10% dos eleitores nesta faixa etária). Bardella representa uma nova geração de eleitores e de quadros do partido, cujo ponto de radicalização, como sugerimos, deve ser situada na experiência dos atentados de 2015 e na manif pour Tous.

Os mais radicais clamam por uma identidade verdadeiramente francesa e não hesitam a dizer que sofrem de “racismo anti-branco”. Além das influências da nouvelle droite, que tem em Alain de Benoist seu principal representante, é a teoria do “grand remplacement” (grande substituição) que congrega os jovens militantes da extrema-direita francesa. Vulgarizada por Renaud Camus em um livro best-seller de intervenção política lançado em 2015, o “grand-remplacement” é uma teoria complotista que prega que devido as baixas taxas de natalidade os franceses serão em pouco tempo substituídos pelos árabes e negros, e se tornarão minoritários em seu próprio país e território.

A luta contra esse fantasma é que tem orientado a extrema direita, e contribuído para ressonância dessas ideias na juventude e nas classes desfavorecidas. Após seu jovem colega de partido ter obtido por volta de 33% dos votos válidos no primeiro turno, Marine Le Pen afirmou, sem pestanejar ,que os seus eleitores haviam votado contra o projeto de desprezo contra o povo que já durava sete anos. Ao final, o RN é agora o maior partido da assembleia francesa, mas não governará. Ao menos não diretamente.

O acontecimento mais caricato desta eleição se deu por ocasião do racha do partido Les Républicains (LR). Havia aqueles, liderados pelo presidente do partido Éric Ciotti, que queriam construir uma aliança com o RN e os que preferiam manter a sua relativa independência. Mediado pelo magnata Vincent Bolloré[xiv], com quem mantém estreita relação, Ciotti negociou secretamente uma aliança do seu partido com o RN. Assim que descobriram essa intriga, o conselho do partido considerou-a inaceitável e votou pela destituição do presidente.

Este, não aceitando esse desfecho, se rebelou contra o partido, invadindo e literalmente se trancando na sua sede e ocupando-a de maneira ilegal. Ciotti chegou a dar declarações pela imprensa através da janela do seu escritório enquanto se recusando a sair deste, que passou ao ser conhecido como um bunker[xv]. Valérie Pecresse, presidente da região de Île-de-France na qual se encontra Paris, foi acudir e, junto com um colega que possuía uma cópia das chaves da sede do partido, teve que intervir de maneira firme para negociar uma maneira de desalojá-lo sem precisar arrombar a sede do partido e, sobretudo, inventar uma forma gerir o racha picaresco daquela que era a última mutação do antigo partido dos ex-presidentes Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy.

Fundamental é notar que esta seria a primeira vez que um grande partido, se as suas autoridades legais validassem este projeto encabeçado pelo seu presidente, se envolveria numa coligação nacional com o RN, quebrando o tradicional cordão sanitário contra a extrema direita. Ciotti e o seus aliados dissidentes atravessaram juntos este Rubicão, embora sem conseguir levar a totalidade do seu partido consigo.

Por momentos lembrou bastante a cúpula do PSDB que em 2018 se dividiu entre aqueles ficaram ambíguos na escolha que fariam no segundo turno entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, e aqueles que sem receios aderiram explicitamente ao Capitão. Ciotti não decepcionou e manteve-se fiel às suas posições radicais durante as semanas de negociação, mistério e confusão pela escolha do novo primeiro ministro tendo clamado mais de uma vez por uma aliança das direitas em torno do RN. Pois foi de dentro das fileiras deste partido que saiu diminuído e quase implodiu no processo eleitoral que, com o aval mais ou menos implícito do RN, saiu o nome do novo primeiro ministro: Michel Barnier.

No presente, ao menos na França, observa Gilles Richard[xvi], a tradicional clivagem entre esquerda e direita parece ter passado para o segundo plano. Desde 2002 com a virada à direita da sociedade, a clivagem principal parece ser outra. É como se houvesse uma divisão interna à direita, orientando a sociedade com um lado “globalista” e o outro “nacionalista”. Embora de fato a França é um dos últimos países a possuir uma esquerda institucional representativa, estas, estando fora dessa divisão fundamental, basicamente respondem e reagem às pautas e agendas dela (e com isso vão se direitizando no processo), sem conseguir propor uma nova configuração na qual possa ter de fato alguma voz e força política.

A desintegração do LR, antiga direita tradicional, diz Gilles Richard, responderia a essa lógica. Teríamos por um lado uma orientação voltada para o atlantismo norte-americano e o eurocentrismo de Macron, e de outro, o nacionalismo do RN. Embora não seja menos verdade que podemos encontrar elementos claros de eurocentrismo neste (embora pouco atlantismo) e traços nacionalistas no Ensemble. Aproximação que fez com que parte não negligenciável dos eleitores macronistas e da direita tradicional, com o derretimento destes, no momento de escolher entre o NFP e o RN, ficaram, muitas vezes sem hesitar, com o segundo. Afinal, como o exemplo brasileiro demonstra bem, não poucos a achar que mais valeria encarar um experimento totalmente novo com a extrema-direita no poder que repetir a velha fórmula reformista e “gastadora” das esquerdas institucionais.

Eleição (1)

“A extrema direita” no limiar do poder. O desafio do fronte republicano”, dizia a manchete do Le Monde da terça-feira 2 de julho. O segundo turno ocorreria em poucos dias e a principal urgência até lá era constituir um Nouveau Front Républicain capaz de reunir, mesmo que provisoriamente, as esquerdas e o centro macronista, após a demonstração de força do RN no primeiro turno que ocorrera dois dias antes e a perspectiva de vitória acachapante que se anunciava. Rapidamente, o NFP declarou que tiraria das disputas os seus candidatos que estivessem em terceiro lugar em proveito de um candidato governista nas circunscrições lideradas pelo RN.

Gesto que não obteve resposta simétrica de parte lado do campo presidencial que se manteve em boa medida ambíguo. Macron, embora continue insistindo ser um combatente contra a extrema-direita, contando com a adesão automática das esquerdas a qualquer coisa que se postasse contra o RN, demorou a se engajar explicitamente nessa batalha verdadeiramente decisiva, se sentindo no direito de não se manifestar claramente pela barragem da extrema-direita. Chegou-se a sugerir que ele estaria demonstrando ingratidão com aqueles que por duas vezes ativaram esse dispositivo sociopolítico que lhe permitiu ser eleito presidente em 2017 e 2022.

No seu campo, nem todos se mostravam favoráveis à compor um Front com as esquerdas. Parecia que parte do campo presidencial não hesitaria em colaborar, de uma maneira ou de outra, com um eventual governo do RN. Alguns, como o primeiro-ministro Gabriel Attal, falaram que nenhum voto deveria ser dado ao RN, outros, como Bayrou, afirmaram que nenhum voto deveria ir para o RN nem para o NFP. Esta ambiguidade, por assim dizer, era justificada por estes atores em resposta à hegemonia que o LFI e sobretudo Mélénchon detinham nas alianças das esquerdas.

Ao mesmo tempo, era difícil para Macron e companhia limitada, voltarem atrás de todas as acusações feitas contra o NFP durante as eleições europeias e no primeiro turno: anti-parlamentarismo, violência, separatismo, terrorismo econômico. Aproveitando o vácuo do massacre genocidário que Israel comete em Gaza, e das fraturas que o conflito faz emergir na sociedade francesa após os atentados do 7 de outubro em Israel acusar Mélénchon e a totalidade das esquerdas de antissemita tornou-se uma prática banalizada. Se é difícil negar que há de fato traços de antissemitismo em parte da esquerda francesa, estes são, não obstante, residuais. Antissemita, por definição, é a extrema-direita, pouco importando a sua carapuça, mas desta determinação necessária a mídia e o Ensemble pouco ou nada falam.

Se não fossem as esquerdas, não havia Front Républicain. Porém, se em 2002 o bloco Front Républicain havia se constituído de maneira relativamente sólida, o de 2024 não escondia o seu caráter provisório. A manifestação do 15 de junho contou com a participação de 250 mil pessoas por todo o país, em 2002 compareceram 1,3 milhões em um histórico 1º Maio. Havia pouco entusiasmo tanto no NFP quanto no campo macronista. O fatalismo reinava, como se não houvesse razão para engajamento existencial diante da vitória certa do inimigo. Muitos viveram dias de pesadelos e de absoluta paralisia.

Mais do que tudo, um novo Front era necessidade de sobrevivência. Ao final do primeiro turno, estando certa a vitória do RN, tratava-se de diminuir os danos. Acima de tudo impedir que eles obtivessem uma maioria absoluta no parlamento. Era uma tarefa política como também moral. De toda forma no seu editorial do mesmo dia o Le Monde clamava pela “Urgência do fronte republicano”. A situação que se desenhava era “alimentada pela desconfiança política, pela rejeição da imigração, pelo aumento das preocupações de segurança. A onda não é específica de França, mas no país que se acreditava estar mais bem protegido do que outras democracias pela sua tradição republicana, pelas suas instituições, o choque é imenso”.

No domingo seguinte, 7 de julho, todos (ou quase) respiravam o alívio de uma marcha ao poder que não obteve sucesso. O alarme soara com um volume até então inédito. Na semana anterior, ao final do primeiro turno, porém, a urgência era constituir um novo Front para barrar a extrema direita. Neste momento, diante da gravidade da situação e do risco real de virada institucional, o Le Monde, um jornal que se esforça por manter a aparência republicana, afirmou no seu editorial que toda ambiguidade seria “imperdoável”.

Eleição (2)

Uma matéria do Le Monde do dia 18 junho intitulada “Dissolution: récit de ces heures où Macron a ouvert la boîte de Pandore” [Dissolução: relato destas horas nas quais Macron abriu a caixa de Pandora] evidenciava o isolamento e a aposta autoritária do presidente. O primeiro-ministro Gabriel Attal, como outros membros do governo, teriam aconselhado a adiar a dissolução para o início de setembro, na volta das férias. Naquele momento, junho, o risco era alto, sobretudo devido à baixa popularidade e desconfiança crescente que a população tem com o presidente.

Mal o anuncio havia sido feito e os ministros já estavam entrando no mundo que se avizinhava, tal a certeza da vitória do RN. Relatos contam que alguns foram às lágrimas durante uma reunião de emergência pouco após a dissolução. Outros falaram que se tratava de ”roleta belga”, uma variante com seis balas e não apenas uma no cartucho. O aparelho do Estado entrou parcialmente em stand-by. Os ministros que também são deputados deserdaram dos seus ofícios e anularam suas agendas para se engajar cada um na sua campanha particular. O risco de agravamento crise econômica aumentava, pois de maneira geral o mercado parece preferir a estabilidade.

Macron declarava em alto e bom som que os programas do RN e do NPF eram irrealistas, mas os investidores desconfiavam do futuro, pois tudo indicava que ele perderia e teria que pactuar com um ou outro. Funcionários temiam ter de em breve passar informações sigilosas sobre a administração fiscal e do tesouro para a extrema-direita.

Antecipando a vitória do RN, o presidente não tardou a nomear aliados em alguns cargos chaves com o objetivo de aparelhar o Estado para melhor resistir a um eventual governo de extrema direita. Foi o caso do comissário francês na União Europeia, criticado por Le Pen, mas que ajudou a renovar o mandato de Ursula von der Leyner. Macron também indicou o chefe de gabinete dela. Como também do novo comandante da aeronáutica, além de chefes de polícia.

Pós-eleição

No dia 09 de setembro, exatos 51 dias após o segundo turno das eleições e até mesmo após a sagrada volta das féria,s Macron decidiu nomear, contra todas as expectativas iniciais, Michel Barnier da velha guarda do LR como primeiro ministro. Antigo deputado e ex-ministro das relações exteriores de Jacques Chirac, chefiou recentemente o grupo da comissão europeia responsável por organizar as relações com o Reino Unido no imediato pós-brexit. O seu longo currículo político mostra também que ele foi um dos deputados que em 1981 votou contra a descriminalização da homossexualidade na França e ter proposto construir um muro nas fronteiras europeias do leste.

Dois meses após o primeiro lugar do NPF nas eleições, o primeiro ministro escolhido é ligado à Sarkozy e está na direita do Partido Republicano. Isto é, embora não seja ligado a Ciotti, trata-se de alguém não muito distante das posições do RN. Aliar o centro com a direita, com o aval da extrema-direita (pois sabe-se que durante essa longa espera na tentativa de encontrar um nome qualquer Marine Le Pen foi diversas vezes pessoalmente consultada por Macron) foi a única maneira que o presidente encontrou de continuar governando um país cada vez mais ingovernável.

Alguns falam em golpe de mestre, mas não parece o caso. O automatismo do processo faz com que aqueles que já tem algum poder nas mão consigam conduzi-lo ou reajustá-los em detrimento dos outros, embora sempre provisoriamente, como quem adia o desfecho. Todos ficaram mais uma vez surpresos com essa escolha, inclusive seus aliados e o patronato. Em uma clara inversão dos termos, o partido que ficou em quarto lugar na eleição ganhou de presente um primeiro-ministro. Nas democracias contemporâneas muitas vezes quem perde ganha. De toda forma, tal gesto desacredita ainda mais o processo eleitoral e as instituições democráticas e no curto prazo deve acentuar ainda mais a crise no país.

Vendo a virada de mesa no horizonte LFI chegou a propor um processo de destituição do presidente para a assembleia. Embora impossível, algo que no início parecia apenas um gesto simbólico e desesperado, o impeachment de Macron seria, ao menos é o que dizem pesquisas divulgadas logo após a nomeação de Barnier, apoiados por metade da população. Além disso, três quartos dos franceses se dizem contrários à nomeação do novo primeiro-ministro, preferindo no seu lugar Lucie Castets (PS) ou Bardella. “A eleição foi roubada do povo francês, a mensagem foi negada”, disse imediatamente Mélénchon. Assim como em 2005, o resultado eleitoral se transformava em seu contrário.

A esquerda (Nouveau Front Populaire) ficou em primeiro lugar do pleito, mas ela constituía uma aliança muito frágil e, sobretudo, foi necessário construir uma aliança ainda mais frágil para o segundo turno, o Front Républicain, desta vez com objetivos puramente eleitorais, para poder derrotar a extrema-direita. Se por um lado, o figurino da democracia francesa havia estabelecido a prática que o partido ou grupo que ficou em primeiro lugar é quem indica o próximo primeiro ministro, por outro lado, isso é prática, mas não é norma.

Desde o início ficou claro que para Macron, tudo, menos o NFP. Ou melhor, tudo menos o LFI? Ainda no 23 de julho, tentando transformar a sua discreta maioria em vitória, o NFP propôs Lucie Castets como sua candidata a primeiro-ministro. Funcionária pública com formação nas melhores escolas administrativas francesas e internacionais, hoje conselheira fiscal da prefeitura de Paris, ela pertence à ala moderada do PS. Isto é, ela é um quadro próximo da posição política de Macron antes de ser eleito em 2017.

De maneira muito hábil e impressionante, pois muitos imaginavam que ela ficaria na sombra de Mélénchon e de outras lideranças do NPF, Castets soube se impor e passou dias circulando pelo país e, sobretudo, pelas mídias. Dia após dia ela dava entrevistas e se mostrou uma candidata bastante credível inclusive para a parte dos veículos de centro-direita. Se sentindo pressionado, Macron sinalizou, no entanto, que não aceitaria nomear um governo do qual fizessem parte ministros do LFI. Em resposta, e contra todas as expectativas, Mélénchon anunciou que o seu partido estava disposto a não fazer parte de um eventual governo liderado por Castets e que desta maneira bastaria Macron seguir o rito usual que tudo poderia ir bem.

Não foi assim, pois logo Macron confessou que, no fundo, ele não queria governar com alguém do NFP, pouco importando se era ou não da dita esquerda radical. Castets não se deu por vencida e continuou até o final se apresentando como uma opção credível. Vários nomes circularam como opções antes da nomeação de Barnier, pois o governo, em uma clássica estratégia, passou a difundir dezenas de nomes possível todos os dias para confundir o debate e, sobretudo, desgastar a população que já não aguentava mais tanta enrolação. No fundo o presidente não sabia muito bem quem escolher, mas já sabia quem não queria de jeito nenhum.

Como foi notado, à semelhança de outras democracias ocidentais como Alemanha, Bélgica e Espanha, a França entrou finalmente no hall dos países que agora precisam constituir alianças esdrúxulas nos parlamentos para continuar minimamente funcionando. Enquanto isso não ocorria, o país continuou durante mais de um mês no modo automático, mas nem tanto assim. A diferença com os demais países, no entanto, é que o avalista do novo governo é a extrema direita. Sem ela, ele não se sustenta.

De certa maneira, o curioso deste ponto de chegada é de como um partido e um programa social-democrata tradicional como o LFI (é verdade que liderado por uma figura totalmente incompatível com a maneira que política institucional contemporânea tem se movido) seria, na realidade, absolutamente compatível com o macronismo original de 2017, aquele que se apresentou como uma renovação rejuvenescida do progressismo liberal, mas que, mesmo assim, mete muito mais medo no establishment neoliberal que o RN.

Após o pleito, o então primeiro ministro, Gabriel Attal agiu como manda o figurino e entregou imediatamente o seu pedido de demissão. O presidente, no entanto, pediu para que ele ficasse no cargo por mais um tempo para poder garantir uma boa transição e assegurasse que as coisas continuassem funcionando por assim dizer normalmente durante os jogos olímpicos e enquanto procurava um novo ocupante para o posto.

A imprensa batizou essa nova figura figura excêntrica encarnada por Gabriel Attal de primeiro ministro demissionário [“premier ministre démissionnaire”]. Inédito nessas proporções na França, mas já relativamente comum em outros país, o primeiro-ministro, assim como todo o seu ministério, embora não fosse mais oficialmente ministro, agia enquanto tal. Paradoxalmente ele ocupou e não ocupou o cargo por cinquenta e um dias. Como nem por isso a caneta não parou quieta, ficou claro que um primeiro ministro provisório não é assim tão diferente de um permanente. Agindo como o dono da bola, e ainda por cima como quem crê ser dono do campo de jogo, tudo apontava para uma escolha pessoal do presidente para o primeiro-ministro. E

ra necessário achar alguém que tivesse aparência de conciliação, mas que continuasse a marcha acelerada das reformas demandadas pelo patronato francês e obrigadas pela União Europeia. Tudo indica que Barnier apenas inverta a equação encarnada por Attal e seja na realidade um primeiro-ministro “permanente-provisório” (muitos já falam inclusive da possibilidade um novo pleito para daqui a um ano caso a crise de ingovernabilidade se agrave). Dada a fragilidade do ministro e do presidente, há risco real de paralisia na assembleia o que obstruiria qualquer possibilidade de reformas ou ajustes — e inclusive o voto do orçamento de 2025 — por essas vias normais do jogo democrático.

No entanto, isso talvez não seja um grande problema para o presidente pois embora tivesse maioria estreita na configuração anterior da assembleia, não conseguia aprovar o que quer que fosse facilmente. Como saída encontrada, ele vem há muito tempo governando por medidas urgentes que contornam legalmente as instâncias parlamentares. No Brasil estas medidas de lei são provisórias. Na França, aquilo que pareceria à primeira vista análogo às medidas provisórias brasileiras, o famoso artigo 49-3, não o é, pois lá a vigência é permanente.

A fixação da lei ocorre após simples deliberação do conselho dos ministros e o texto é considerado adotado se nenhum movimento de censura contra o governo não for votado, o que demandaria uma maioria absoluta da oposição no parlamento. Sem maioria absoluta, mas sem a possibilidade da oposição bloquear as medidas governa-se por medidas permanentes. Elisabeth Borne, primeira ministra entre maio de 2020 e janeiro de 2024 fez recurso mais de vinte vezes a esse dispositivo jurídico, inclusive para aprovar a polêmica reforma da previdência.

Parece haver uma forte tendência de concentração de poder no executivo em detrimento dos outros dois poderes. Não são poucos os se mostram preocupado com as derivas autoritárias francesas. Como em outros lugares, essa reorientação social e institucional não precisa necessariamente da extrema direita no poder.

*Frederico Lyra é professor nos departamentos de arte e de filosofia da Universidade de Picardie Jules Verne (França).

Notas


[i]Como notou David Adler em artigo para o New York Times, não são os extremistas e sim os assim chamados centristas os mais hostis à democracia. Tudo passa a valer na tentativa de barrar aquilo que hoje é visto como extremo, inclusive medidas autoritárias e impulsivas. Muita coisa mudou de 2018 para cá, mas o que parece certo é que o centro do espectro político acompanha a sociedade e tem se deslocado rapidamente para a direita. Cf: Adler, David, “Centrists Are the Most Hostil to Democracy, Not Extremists”, 23 maio 2018.

https://www.nytimes.com/interactive/2018/05/23/opinion/international-world/centrists-democracy.html

[ii]Para isso ver os capítulos 4 à 7 de How will capitalism end? (London/New York, Verso, 2016) de Wolfgang Streeck nos quais várias facetas da estrutura institucional da União Europeia é discutida em detalhes.

[iii]Cf: https://www.lefigaro.fr/politique/le-scan/2018/11/07/25001-20181107ARTFIG00121-macron-petain-a-ete-un-grand-soldat-pendant-la-premiere-guerre-mondiale.php

[iv]Roy, Iva, “Un répit salutaire mais sans majorité pour le Front Populaire, Basta!, 8 de julho, 2024. Disponível em: https://basta.media/Un-repit-salutaire-mais-sans-majorite-pour-le-Front-populaire

[v]Cf: https://www.ouest-france.fr/elections/presidentielle/histoires-d-elections-a-la-presidentielle-de-2002-le-seisme-le-pen-suivi-du-raz-de-maree-chirac-278297b6-ab50-11ec-a913-f0dff1800d5e .

[vi]Um dos primeiros a diagnosticar de maneira contundente essa virada particular ao espectro francês foi Alain Badiou em uma conferência pronunciada no dia 23 de novembro de 2015, poucos dias após o atentado, e posteriormente publicada em livro. (Cf: Notre mal vient de plus loin. Penser les tueries du 13 novembre, Paris, Fayard, 2016).

[vii]Cf: https://www.huffingtonpost.fr/actualites/article/manif-pour-tous-simone-veil-a-salue-les-manifestants-contre-le-mariage-gay_13943.html

[viii]Cf: Marylou Magal, Marylou e Massol, Nicolas, L’extrême droite, nouvelle génération : enquête au coeur de la jeunesse identitaire, Paris, Denoel, 2024.

[ix]Badiou, Alain, Éloge de la Politique, Paris, Flammarion, 2017, p. 115-123.

[x]Amable, Bruno & Palombarini, Stefano, L’illusion du bloc bourgeois: Alliances sociales et avenir du modèle français, Paris, Liber/Raisons d’Agir, 2018. Em um artigo de 2022 publicado no Sidecar, Serge Halimi já identificava um aprofundamento e uma virada ainda mais à direita nesse bloco bourgeois por ocasião da reeleição de Macron. (Cf: Halimi, Serge, “The Bourgeois Bloc, Sidecar, 30 June 2022. Disponível em: https://newleftreview.org/sidecar/posts/the-bourgeois-bloc ).

[xi]Muitos desconfiam que a candidatura surpresa de Hollande disfarçava a ambição de voltar ao centro da arena política como primeiro-ministro, é bem possível que isso seja real, mas até aqui essa intenção não produziu nenhum resultado efetivo.

[xii]Raphaël Glucksmann, filho do maoista renegado André Glucksmann, é uma figura ascendente no PS. Foi o cabeça de chapa do seu partido nas eleições europeias. Virtual candidato à presidência em 2027, aquele que é apelidado como o “homem da esquerda plural” é próximo de Lionel Jospin, Hollande e Macron, representando a ala direita do partido e se posicionando contra a hegemonia crescente de Mélénchon e do LFI no interior das esquerdas francesas. Em 2008, mesma época da invasão russa, Glucksmann trabalhava na Geórgia como conselheiro oficial do então presidente neoliberal e próximo dos Estados-Unidos Mikheil Saakachvili. Tal fato, rendeu acusações por parte de Bardella dele ser inapto para ocupar funções de Estado por ter trabalhado para interesses estatais estrangeiros diferentes e muitas vezes, segundo ele, concorrente dos franceses. O deputado europeu é casado com uma das mais importantes jornalistas e apresentadores televisivas francesas: Léa Salamé. A autora de Femmes Puissantes (mulheres potentes), best-sellers do “feminismo liberal” (Nancy Fraser), já teve que trocar de canal para não interferir na carreira ascensional do marido. Ventila-se no país da igualdade que, apesar de tudo, ela talvez tenha que abrir mão da sua carreira brilhante e mais do que promissora sob o risco de comprometer as ambições políticas do marido Glucksmann.

[xiii]Durand, Cédric; Keucheyan, Razmig e Palombarini, Stefano, “Construire la gauche de rupture”, Contretemps, 22 de julho 2024. Disponível em: https://www.contretemps.eu/construire-gauche-rupture-nouveau-front-populaire/

[xiv]O magnata Vincent Bolloré é um personagem importante no mundo político e midiático francês, supondo que haja separação entre eles. Um dos principais empresários e com interesses maiores naquilo que se conhece como France-Afrique, ele exerce um papel análogo ao do norte-americano Roger Ailes (partão da Fox News) como dono de vários veículos de comunicação e principalmente do canal televisivo Cnews análogo ao americano, que serve de plataforma para a difusão em massa e quotidiana do discurso e das ideia de extrema-direita. Há alguns anos é o principal canal do país, nem tanto pela audiência mas pelo fato de conseguir pautar o tom e conteúdo da agenda e do debate nos outros veículos de mídia e da política nacional.

[xv]Cf: https://www.ouest-france.fr/politique/eric-ciotti/un-forcene-dans-son-bunker-la-video-deric-ciotti-seul-dans-son-bureau-decryptee-par-un-expert-a2095efe-2982-11ef-96d1-fdb7d737b711

[xvi]Richard, Gilles, “Les Républicains sont voués à devenir un partit croupion”, Le Monde, 18 juin 2024.


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