Por RENATO ORTIZ*
Gabriel García Márquez é um mestre deste artesanato sutil e delicado em conduzir o leitor ao sabor da ondulação das sentenças, ele detém a arte cistólica de nos orientar nas linhas do texto
A passagem enviada pela Sociedade de Escritores e Editores da Espanha me surpreendeu, a vida acadêmica acostumou-se a ser tratada com poucas regalias: classe executiva. Ao desfrutá-las aprende-se algumas coisas. As diferenças de classe implicam em serviços rarefeitos e acesso a certas comodidades.
A poltrona é ampla, reclinável, propiciando uma noite agradável ao passageiro. Sobra espaço para as pernas; como o número de lugares é menor, o exíguo compartimento do avião sugere a impressão de amplitude, distante da asfixia dos transportes de massa. O conforto materializa-se nas minúcias: a mesinha do assento é maior do que na classe econômica e, durante as refeições, o corpo não fica apertado entre a bandeja e a parte reclinável da poltrona.
A comida é saborosa, pode-se escolher os pratos em um menu; o vinho é bom, apresentado em garrafas, não no formato diminuto e padronizado oferecido nos outros compartimentos. O cardápio informa que a companhia aérea gostaria de nos propiciar uma aventura enológica; além do tradicional vinho francês, é possível degustar o sabor proveniente de outros rincões: África do Sul, Chile, Austrália, Califórnia. As diferenças significam também separação: o embarque se faz ao abrigo do constrangimento da multidão, não há filas.
Como o espaço que lhe foi reservado situa-se à frente da aeronave, o passageiro sabe que seu desembarque é prioritário, evitando-se tropeçar na malta impaciente acotovelada nos corredores. Há, porém, um contratempo. Na imigração sua ilusão se desfaz: diante da autoridade do Estado “somos” iguais; no entanto, no embarque, ao deixar o recinto, o viajante dirige-se a um andar superior, a sala VIP encontra-se a sua disposição. Uma sensação de euforia e desapontamento o invade.
A frustração se insinua quando aparecem as placas indicando a bifurcação entre executiva e primeira classe. Percebe-se que o topo do mundo é um lugar inatingível. Constrangimento passageiro, a euforia o abraça novamente ao ser acolhido em um salão regado a sanduíches, coquetel de champanhe, refrigerante, vinho branco, salgadinhos. Satisfeito ele se ajusta a seu privilégio mitigado.
Hospedaram-me no Hotel Gran Versalhes, estrelas pouco cintilantes. O evento realizou-se na Casa de América, no Palácio de Linares, arquitetura do final do XIX. Talvez por um excesso de zelo, América encontra-se no singular, referindo-se à totalidade do continente americano, um pouco como os europeus utilizavam a expressão após a expedição de Américo Vespúcio. Mas dificilmente o termo se aplicaria ao tema do encontro, uma discussão sobre o iberismo, restrita à expansão do orgulho espanhol.
A abertura foi feita por dois grandes literatos, José Saramago e Gabriel García Márquez. A copresença da língua portuguesa e espanhola afirmava a convivência de uma comunidade de falantes. José Saramago acessível, simpático; García Marquez, a figura da soberba, conversava com os outros olhando um ponto fixo no infinito. O auditório estava repleto, câmeras de televisão, fios espalhados pelo chão, um batalhão de fotógrafos os esperava. Flashes anunciavam a tormenta inesperada.
José Saramago falou bem, sua formação comunista deu-lhe um bom preparo para os pronunciamentos em público, é capaz de articular de maneira engenhosa os temas políticos e as sutilezas da vida literária. Disse que a literatura se situava no encontro do autor e os leitores; eles formariam uma espécie de tribo de sensibilidade, comunidade compartilhada de sentimentos. García Marquez, corroído pela inveja, que havia pedido para falar após José Saramago, recusou-se a tomar a palavra. Não tinha nenhuma explicação para seu ato, fruto de uma birra de adolescente. Apupos do público.
A língua espanhola possui alguns sons guturais propícios para evocar a aspereza das coisas, é rica em impropérios. As pessoas se levantaram das cadeiras e exaltadas o destrataram. Inutilmente os organizadores do evento passaram o dia explicando à imprensa o motivo de sua atitude pueril.
A vírgula é o ponto de respiração da frase, nela o ritmo da escrita se desacelera, toma fôlego, projeta-se à frente. Invejo os escritores que conduzem o leitor ao sabor da ondulação das sentenças, eles detêm a arte cistólica de nos orientar nas linhas do texto. Gabriel García Márquez é um mestre deste artesanato sutil e delicado. No último dia dos trabalhos, Felipe González, ex-primeiro ministro socialista, encerrou o encontro.
Os políticos tendem a ser rebarbativos em seus discursos, cultivam as platitudes; Felipe González teve uma atitude distinta, fez uma reflexão inteligente sobre os problemas da atualidade, demonstrou atenção e sensibilidade em relação aos “novos tempos”. Após sua apresentação, para a surpresa de todos, García Márquez pediu a palavra. Não se desculpou, disse que não era um homem público, um intelectual, sua intenção como escritor era nos mostrar sua arte.
Sacou de uma pasta as páginas inéditas de um conto — talvez o esboço de um futuro livro, nos preveniu —, apenas o primeiro capítulo (Em agosto nos vemos, Record, 2024). Foi quando iniciou a leitura. As palavras e as vírgulas nos enredaram, um silêncio plácido se fez diante de sua voz pausada e sonora. Mergulhou o auditório em seu universo de fantasia, a cadência e as pausas do texto marcavam a respiração do público. Transcendência? Aplaudido, muito aplaudido virou a página de seu fiasco.
*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]
Publicado originalmente no blog do BVPS.
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