Entre conciliações e naufrágios

Imagem: Zsófia Fehér
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Por BRUNO RESCK*

O lulismo, enquanto fenômeno político-social, consolidou-se no Brasil como uma síntese entre a conciliação de classes e a expansão do consumo popular, mas revelou-se incapaz de eliminar os antagonismos de classe; transformando-se em um híbrido paralisado, incapaz de superar suas contradições estruturais

1.

O lulismo, enquanto fenômeno político-social, consolidou-se no Brasil como uma síntese particular entre a conciliação de classes e a expansão do consumo popular via políticas distributivas. Uma política de apaziguamento social, no entanto, incapaz de eliminar os antagonismos de classe.

Lincoln Secco descreve o lulismo como uma forma de governo marcada por seu pragmatismo e plasticidade ideológica, em que a mediação constante substitui a ruptura — um pacto instável, mas eficaz, entre frações do capital e as classes subalternas.[1] André Singer, por sua vez, identifica no lulismo uma revolução passiva à brasileira: uma estratégia de contenção de conflitos por meio da incorporação conservadora dos de baixo.[2]

Como ressalta Rudá Ricci,[3] esse projeto não apenas incorporou setores populares ao mercado de consumo, mas também implicou um processo deliberado de desmobilização social, promovendo um sentimento de pertencimento passivo, desprovida de protagonismo coletivo e orientada por uma relação carismática e vertical com a figura de Lula.

Durante a primeira década dos anos 2000, o pacto lulista parecia invulnerável, articulando crescimento econômico, inclusão social e estabilidade institucional. Mas como todo arranjo sustentado pela mediação, ele carregava em si as sementes do desgaste: sua força era também sua fragilidade. O equilíbrio entre programas de transferência de renda e equilíbrio fiscal, entre reforma agrária tímida e agronegócio exuberante, começou a ranger quando as condições internacionais mudaram e as pressões internas se intensificaram. O que parecia duradouro revelou-se contingente — e o que parecia sólido, profundamente fraturado.

O ano de 2013 foi o ponto de inflexão. O estopim dessa trajetória descendente pode ser encontrado na crise de junho de 2013. Contrariamente à narrativa de setores da esquerda liberal, as jornadas de junho não foram um levante contra o projeto petista, mas um sintoma do esgotamento de suas promessas. As massas nas ruas – muitas delas beneficiárias das políticas lulistas – não protestavam contra a inclusão, mas contra os limites dessa inclusão: mobilidade sem transporte, consumo sem infraestrutura, direitos sem cidadania plena.

As vozes que ecoaram nos protestos não eram, ainda, as vozes do bolsonarismo, mas anunciavam a ruptura do pacto lulista com uma população que já não se via representada nos acordos palacianos em nome da governabilidade. Nesse contexto, a categoria do pobre de direita, apresentada por Jessé Souza,[4] revela seus limites interpretativos: Jessé acerta ao denunciar o papel da humilhação simbólica, do ressentimento e da destruição das formas coletivas de luta.

Mas peca ao não articular essa dimensão subjetiva com as estruturas materiais da exploração capitalista de um país periférico. Existia sobretudo nos grandes centros urbanos, uma insatisfação difusa em face da incapacidade do estado em atender as demandas por segurança, saúde, transporte público e educação.

Ao atribuir às classes populares uma suposta alienação ideológica promovida pela manipulação das elites, acaba por ignorar que esses sujeitos manifestavam demandas legítimas e ressentimentos concretos. Reduzir sua ação a um equívoco de consciência ou à mera adesão ao discurso conservador é, por vezes, repetir o distanciamento elitista que se pretende criticar.

2.

Nesse cenário, a figura de Fernando Haddad emerge como símbolo paradoxal. Ministro da Educação (2005 a 2012) e prefeito de São Paulo (2013 a 2016), Fernando Haddad foi o intelectual reformista por excelência do período, mas também, involuntariamente, o catalisador de um processo disruptivo. Compará-lo a Gavrilo Princip – o jovem bósnio que, ao assassinar o arquiduque Francisco Ferdinando, deflagrou a Primeira Guerra Mundial – é traçar um paralelo entre o agente histórico que se move por dentro de estruturas decadentes e o gesto que desencadeia o colapso de uma ordem.

À frente da prefeitura paulistana, Fernando Haddad adotou uma agenda econômica baseada no ajuste fiscal (via renegociação de dívidas e eficiência tributária) e investimentos em infraestrutura urbana.  Entretanto, embora tenha reequilibrado as contas, foi derrotado no primeiro turno ao tentar a reeleição em 2016 para João Dória, um “outsider” político embalado pelo marketing empresarial e pela promessa de eficiência administrativa e combate à corrupção.

A tarifa de vinte centavos talvez tenha sido o tiro metafórico que anunciou o fim da era de conciliações, mas foi a resposta tecnocrática de Fernando Haddad – racional, mas desconectada da base popular – que selou seu destino. Em São Paulo, o lulismo começava a perder seu lastro urbano que ficou nítido nas últimas eleições municipais de 2024.

O golpe parlamentar de 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, expôs as fraturas desse arranjo de forma definitiva. A conciliação deu lugar à ruptura institucional – com supremo, com tudo. O sistema político, ao invés de corrigir seus desequilíbrios, aprofundou-os: ascenderam o lavajatismo, o antipetismo, o militarismo. O triunfo de Jair Bolsonaro em 2018 selou a transição de um país governado por pactos frágeis para outro dominado por ressentimentos e pulsões autoritárias. O lulismo, agora interditado, tornou-se objeto de nostalgia ou criminalização.

Ainda assim, o campo progressista se reorganizou, e Lula retornou em 2022, por uma margem muito estreita, eleito pela terceira vez, carregando o peso simbólico da democracia ameaçada. Lula foi eleito com base em uma frente ampla – expressão que virou sinônimo de composição emergencial para barrar a extrema direita e reconfigurar os marcos mínimos da democracia. No entanto, esse arco de alianças, carregava em seu ventre um pacto com o receituário neoliberal: austeridade, responsabilidade fiscal, pacificação com o mercado. Ou seja, um pacto contra as grosserias de Bolsonaro, mas mantém blindada a espinha dorsal do neoliberalismo.

3.

Mas o lulismo que volta já não é o mesmo, nem em contexto, nem em fôlego. Sem base parlamentar sólida, cercado por um centrão mais voraz e que domina uma parcela significativa do orçamento público via emendas, além da intransigência do grande capital, o governo Lula opera sob o signo da contenção e da renúncia. A promulgação do novo arcabouço fiscal sinaliza uma inflexão profunda: a prioridade é o “equilíbrio fiscal”, mesmo à custa da erosão de sua base social.

Essa reconfiguração do lulismo – já desprovida de seu ímpeto redistributivo e agora inteiramente moldada pelas exigências do latifúndio agroexportador, da mineração e do mercado financeiro – remete à figura do ornitorrinco, tal como desenhada por Francisco de Oliveira em seu célebre ensaio.[5] O ornitorrinco, esse mamífero que bota ovos, tem bico de pato, rabo de castor e veneno nas patas, simboliza para o autor o Brasil moderno que emerge deformado: nem plenamente capitalista, nem tradicional, nem revolucionário — mas um híbrido paralisado, incapaz de superar suas contradições estruturais.

O lulismo do presente se aproxima perigosamente dessa condição. Se antes operava como mediação eficaz entre crescimento econômico e inclusão social, hoje se arrasta como um modelo esvaziado de horizonte transformador, mas ainda dotado de grande capacidade de acomodação institucional. Como o ornitorrinco, o lulismo carrega elementos díspares: políticas públicas de combate à fome ao lado de arcabouços fiscais que limitam investimentos sociais; discursos de soberania enquanto se avança na privatização de ativos públicos estratégicos. A forma permanece viva, mas o conteúdo se dispersa.

Durante a recente visita oficial à França, Lula foi recebido com honras de estadista por Emmanuel Macron. Em meio a um continente assolado pelo avanço da extrema direita, o presidente brasileiro ofereceu sua figura como antídoto democrático. Mas há algo de trágico nesse gesto. Afora um certo ar de um anacrônico deslumbre e em meio a cambalhotas ensaiadas, o presidente Lula insistiu na defesa do acordo entre a União Europeia e o Mercosul. Acordo este que tem um grande potencial de reforçar a posição de subalternidade do Brasil na divisão internacional do trabalho – acordo também defendido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e pelo presidente da Argentina, Javier Milei.

Ambos, Lula e Emmanuel Macron, se apresentam como bastiões da civilização contra o neofascismo; mas ambos também governam com reformas liberais, ataques a direitos e alianças com o capital financeiro. O abraço que trocam não é apenas diplomático – é também o abraço de dois náufragos que, ao se apoiarem mutuamente, afundam juntos.

A metáfora do “abraço dos afogados” não encerra ironia, mas advertência: a política progressista que se recusa a romper com os fundamentos neoliberais está condenada a ser tragada por eles. Se o lulismo chegou como promessa de que havia alternativa, seu ocaso revela, com amargura, que ele também passou a operar sob a lógica do “não há alternativa”.

Superar o lulismo não implica renegar sua trajetória, mas reconhecer seus limites históricos. O desafio da esquerda brasileira é reconstruir um projeto político que vá além da gestão do possível e recupere a potência utópica da política como força de transformação social. Em termos históricos, o lulismo operou como uma modernização conservadora – reformou para manter, distribuiu sem emancipar, conciliou sem transformar. Retoma-se aqui o diagnóstico de Florestan Fernandes,[6] segundo o qual a modernização brasileira sempre se fez sob a tutela das elites, bloqueando o desenvolvimento de uma consciência crítica e autônoma entre as classes populares.

Essa lógica de tutela é reforçada por uma mitologia nacional, como observa João Antônio de Paula,[7], que enxerga no mito da conciliação – de um país avesso ao conflito, compassivo por natureza – uma armadilha ideológica eficaz. O verdadeiro desafio, portanto, não é apenas sobreviver ao colapso do lulismo, mas romper com esse ciclo histórico de conciliações paralisantes, abrindo espaço para imaginar, organizar e disputar um novo horizonte político. É preciso, enfim, tocar o dedo na ferida e abandonar a ilusão de que é possível enfrentar a barbárie sem tocar nas raízes do modelo que a sustenta.

Resta a pergunta decisiva: a esquerda será capaz de inventar um pós-lulismo que confronte esse fundamento – ou afundará com ele, abraçada a um legado que já não responde ao presente?

*Bruno Resck, é professor de geografia no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) – Campus avançado Ponte Nova.

Notas


[1] SECCO, Lincoln. História do PT. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.

[2] SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[3] RICCI, Rudá. Lulismo: da era da mobilização à era da hegemonia. Petrópolis: Vozes, 2010.

[4] SOUZA, Jessé. O pobre de direita: a vingança dos bastardos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024.

[5] OLIVEIRA, Francisco de. O ornitorrinco. In: OLIVEIRA, Francisco de. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

[6] FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

[7] PAULA, J. A. D. O capitalismo no Brasil. Curitiba: Kotter Editorial, 2021.


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