Escolas cívico-militares em São Paulo

Imagem: Aidan Zhang
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Por RICARDO NORMANHA*

À luz das críticas de Décio Saes, podemos ver como o projeto de Tarcísio revela a velha estratégia da classe média de privatizar o público e segregar os pobres

A contribuição das reflexões de Décio Saes para pensar a relação entre educação e classes sociais no Brasil permanecem atuais. Ao longo de sua trajetória intelectual, o sociólogo consolidou-se como um pensador fundamental por suas análises inovadoras sobre temas como Estado, cidadania, democracia, transição socialista, educação e lutas de classes.

Seus trabalhos se notabilizaram tanto pelo rigor conceitual quanto pela abordagem singular, que iluminou questões centrais da formação social brasileira – desde a revolução burguesa e o papel das classes médias até os regimes políticos e as contradições do Estado nacional. Sua produção teórica, marcada por uma perspectiva marxista crítica, não apenas o consagrou como um dos maiores intérpretes da realidade brasileira, mas também revelou seu compromisso constante com a emancipação dos trabalhadores e a construção do socialismo.

Neste ensaio, buscarei articular a reflexão de Décio Saes sobre a relação ambígua que a classe média estabelece com a escola pública para iluminar a análise da tentativa de implementação do Programa de Escolas-Cívico Militares no estado de São Paulo, refletindo sobre a articulação desse projeto de militarização da educação pública com a reprodução das desigualdades sociais e o fortalecimento dos mecanismos de produção do fracasso escolar nas classes populares.

A narrativa oficial do governo de São Paulo insiste em apresentar o Programa de Escolas Cívico-Militares como uma política inovadora capaz de resolver os problemas estruturais da educação pública. No entanto, uma análise mais atenta revela um projeto que não apenas falha em cumprir suas promessas, mas também reforça mecanismos perversos de exclusão e diferenciação social.

A começar pelo anúncio das escolas “beneficiadas” com o programa, que desmascaram o discurso oficial. Se a proposta fosse realmente melhorar o ensino em áreas vulneráveis, é, no mínimo, contraditório que a maioria das instituições escolhidas já possui bons indicadores educacionais e atende majoritariamente alunos de classe média.

Essa contradição não é mero acaso, mas a expressão de uma lógica histórica bem documentada por pesquisadores como Décio Saes: a apropriação da escola pública pelas classes médias, que a defendem no plano retórico, mas buscam na prática meios de fortalecer processos de distinção social entre seus filhos e os estudantes pobres.

Décio Saes e a classe média

Nesse sentido, cabe aqui uma breve definição do que Décio Saes compreende por classe média. Embora o termo possua uma polissemia e usos distintos, a ponto de não possuir um significado intrínseco, o sociólogo brasileiro procura oferecer contornos específicos para a compreensão dessa fração da classe trabalhadora. Para Décio Saes, a classe média se constitui como um segmento dos trabalhadores assalariados que desempenham, fundamentalmente, atividades laborais de caráter intelectual, mantendo uma relação direta de dependência com o capital.

Ao contrário da pequena burguesia – pequenos proprietários dos meios de produção – sua identidade está menos vinculada à propriedade e mais a uma ideologia meritocrática, que se assenta na rígida divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, rejeitando o primeiro e valorizando o sucesso individual como fruto do esforço pessoal.

A relação ambivalente da classe média com a escola pública ajuda a entender o verdadeiro propósito por trás da militarização. Décio Saes demonstra como esse grupo social utiliza a educação como instrumento de distinção, valorizando-a enquanto espaço formalmente democrático, mas rejeitando-a quando ela se democratiza de fato. No contexto brasileiro, a expansão do acesso à escola pública não foi acompanhada por mudanças em seu padrão de ensino, historicamente voltado para atender às expectativas da classe média.

Essa contradição é central para entender o fracasso escolar das classes populares. Embora o ensino fundamental tenha sido universalizado, persistem altas taxas de reprovação e evasão, revelando uma dualidade educacional: enquanto alunos pobres são direcionados para trajetórias curtas (ensino fundamental ou técnico), os ricos seguem trajetórias longas (ensino superior e pós-graduação). Esse mecanismo reproduz a divisão social do trabalho, mantendo as hierarquias existentes.

O padrão de ensino da classe média, caracterizado pela valorização da linguagem escrita em detrimento da oralidade e por uma abstração teórica distante da realidade das classes populares, atua como um filtro social. O capital cultural prévio, mais acessível aos alunos da classe média, torna-se uma vantagem decisiva, enquanto os estudantes pobres são sistematicamente excluídos.

Essa dinâmica expõe a função ideológica da escola pública no capitalismo: sob o mito da “escola única” – supostamente equalizadora de oportunidades –, esconde-se uma prática seletiva que reproduz as desigualdades. O Estado capitalista, nesse sentido, mantém a escola como um instrumento de legitimação da ordem social, atribuindo o fracasso dos pobres a uma suposta incapacidade individual.

Escolas cívico-militares: uma política para quem?

O modelo cívico-militar, com sua ênfase em disciplina rígida e hierarquia, atende perfeitamente a esse desejo de diferenciação. Não se trata de melhorar a qualidade do ensino para todos, mas de criar ilhas de excelência dentro da rede pública, reservadas aos que já possuem vantagens sociais. Enquanto isso, as escolas das periferias continuam abandonadas à própria sorte, sem os investimentos necessários em infraestrutura, formação docente e projetos pedagógicos inovadores.

Mesmo que o Programa de Escolas Cívico-Militares fosse direcionado às escolas mais vulneráveis – o que claramente não é o caso – ainda assim seria profundamente problemático. A militarização da educação em territórios pobres representa uma forma perversa de criminalização da juventude periférica. Em vez de enfrentar as causas estruturais do fracasso escolar, como a precariedade das condições de ensino, a desvalorização do trabalho docentes e a desigualdade social, o Estado opta por tratar a pobreza como caso de polícia.

A mensagem é clara: os problemas das escolas nas periferias não decorrem da falta de investimentos, mas da suposta indisciplina de seus alunos, que precisariam ser controlados pela força. Essa lógica já foi amplamente denunciada por educadoras(es) e pesquisadoras(es), que apontam como o modelo militarizado tende a aumentar a evasão escolar, especialmente entre estudantes negros e pobres, os mais visados pelos mecanismos de repressão do Estado.

A insistência no mito da eficiência militar revela ainda mais o caráter ideológico do projeto. Não existem evidências consistentes de que a gestão por militares melhore efetivamente a aprendizagem. O que se vê, na prática, é o sufocamento de um projeto de educação emancipadora e a imposição de um regime autoritário, onde a aparência de ordem se sobrepõe à formação crítica.

Enquanto isso, questões fundamentais seguem sem solução: salários dignos para profissionais da educação, bibliotecas equipadas, laboratórios em funcionamento, currículos que dialoguem com a realidade dos estudantes. Essas seriam algumas das medidas para melhorar a educação pública, mas elas exigem investimentos massivos e vontade política – algo que se contrapõe ao projeto político da extrema-direita, representada no Estado de São Paulo, pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

O que está em jogo, portanto, vai muito além de um simples modelo de gestão escolar. A militarização da educação pública representa a consolidação de um projeto de sociedade onde os privilégios de alguns se mantêm às custas da exclusão de muitos. Enquanto a classe média consegue garantir para seus filhos escolas públicas “diferenciadas”, a maioria pobre é submetida ou ao abandono estatal ou a um regime disciplinar que a trata como ameaça potencial.

Romper com essa lógica exige mais do que criticar o programa cívico-militar; é preciso defender uma educação verdadeiramente democrática, que reconheça as desigualdades sociais não como justificativa para repressão, mas como desafio a ser superado por meio de políticas públicas pensadas coletiva e democraticamente. Afinal, numa sociedade profundamente desigual como a nossa, a escola pública deveria ser, potencialmente, instrumento de transformação social, e não de reprodução das hierarquias existentes.

*Ricardo Normanha é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciências Sociais na Educação da Unicamp.

Referências


DOSSIÊ DÉCIO SAES. Marxismo 21. Disponível em https://marxismo21.org/decio-saes/. Acesso em 12 de maio de 2025.

NORONHA, Heloísa. Veja a lista das escolas de SP que vão adotar o modelo cívico-militar. CNN Brasil, https://www.cnnbrasil.com.br/educacao/veja-a-lista-das-escolas-de-sp-que-vao-adotar-o-modelo-civico-militar/.

SAES, Décio. Escola pública e classes sociais no Brasil atual. Linhas Crí­ticas, [S. l.], v. 14, n. 27, p. 165–176, 2009.


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