Por VANESSA MONTEIRO*
O PL do trabalho por aplicativos não cria uma organização diferente no mundo do trabalho, apenas legitima a modalidade de superexploração do trabalho por parte das empresas-aplicativo
Em pronunciamento realizado no dia 4 de março, na cerimônia que apresentou o Projeto de Lei de Regulamentação do Trabalho por Aplicativos de Transporte de Pessoas, o “PL da Uber”, o presidente Lula demonstrou sua satisfação pelo “marco significativo no mundo do trabalho” conquistado pela criação de “uma nova modalidade no mundo do trabalho”.
Intelectuais progressistas como o jurista Jorge Luiz Souto Maior e o economista David Deccache têm, desde então, demonstrado como a proposta apresentada representa um retrocesso histórico nos direitos trabalhistas no Brasil, complementando a contrarreforma de Michel Temer, a reforma previdenciária de Bolsonaro e o teto de gastos de Fernando Haddad. Portanto, longe de se tratar do resultado (impossível) de ganha-ganha entre trabalhadores e empresa – tal como veiculado pelo governo – trata-se de uma proposta de lei empresarial.
Ainda assim, muitas dúvidas rondam a esquerda, motivadas pelas especificidades do trabalho mediado por plataformas digitais, pelas polêmicas que emergiram dos processos de luta das categorias de trabalhadores plataformizados ao redor do modelo trabalhista regido pela CLT, pela reação da base bolsonarista que convoca manifestações contrárias ao PL para o dia 26/03 e até mesmo pela localização do atual governo de conciliação de classes na desfavorável correlação de forças entre as classes no Brasil.
O presente texto busca dialogar com estas questões e contribuir para a construção de uma perspectiva solidária e classista ao problema apresentado às esquerdas pelo PL da Uber.
Capitalismo de plataformas e “autogerenciamento subordinado”
O pressuposto básico do PL é o não reconhecimento do vínculo trabalhista entre a empresa-aplicativo e trabalhador plataformizado, tratando os temas de conflito a partir do princípio de livre negociação entre a Uber e os motoristas, reconhecidos como “autônomos”. Portanto, antes de entrar no projeto propriamente dito é importante entender algumas características fundamentais do trabalho plataformizado.
Falamos aqui em “empresa-aplicativo” não por um acaso. Um mecanismo central que permite com que a economia digital se apresente como um ideal para legitimar mais amplamente o capitalismo contemporâneo é justamente a ideia de que as tecnologias digitais são “naturais, neutras e iguais para todos” (Amrute, 2021, p.70). O ponto de partida, então, é tomar estas plataformas como empresas-aplicativo, atores dentro do modo capitalista de produção (Srniceck, 2018). Estas empresas capitalistas têm se expandido para diversos ramos da economia, inaugurando um novo modelo de administração e controle dos processos produtivos e da força de trabalho.
Trata-se de uma modalidade intermitente de trabalho, pelo efeito da suspensão entre o tempo de trabalho e o tempo sem trabalho. Uma característica que não é nova na formação sócio-histórica da classe trabalhadora latino-americana e brasileira, a qual sempre contou com um numeroso contingente de população negra, generalizou-se frente à crise estrutural do capital, como cibertariado, infoproletariado ou intermitentes globais (Huws, 2014).
Assim, soma-se à característica de remuneração por peça – na qual o trabalhador recebe exclusivamente pelo serviço prestado, ainda que tenha um tempo ocioso de espera por trabalho – a má remuneração, ausência de proteção social e transferência de custos e riscos. É por este motivo que Srniceck denomina empresas como a Uber, 99 e iFood como as plataformas austeras (2018), precisamente pelo alto nível de precarização e exploração da força de trabalho. Não a toa, Ricardo Antunes já afirmava que na era digital há uma ampliação de formas de exploração que recordam a fase de acumulação primitiva do capital, fazendo assim um paralelo entre o trabalho plataformizado e a a escravidão, ao que ele chama de escravidão digital (Antunes, 2018).
Para não alongar a conversa, não podemos deixar de considerar entre as características fundamentais deste tipo de trabalho os mecanismos de controle regidos pelo caráter obscuro do gerenciamento algorítmico. Se enganam aqueles que consideram que o meio de produção da empresa-aplicativo é o automóvel utilizado para o transporte de passageiros ou alimentos. Sendo ela uma plataforma digital, sua principal matéria prima são os dados, os quais são monopolizados, extraídos e analisados de maneira totalmente obscura, operando um controle despótico: “não localizável, mas racionalizado” (Abílio, 2020). Assim, o trabalhador quando bloqueado arbitrariamente é vítima de um entre os muitos mecanismos de controle e organização do trabalho pela empresa-aplicativo.
Por todos os motivos acima há um amplo consenso nos debates da sociologia do trabalho sobre a relação de trabalho existente do trabalhador para com a empresa-aplicativo, na forma de autogerenciamento subordinado (Abílio, 2019).
Reivindicações dos trabalhadores plataformizados e a polêmica CLT
Quando irrompeu – para muitos como surpresa – o Breque dos APPs, em 2020, os entregadores de aplicativo apresentaram de maneira bastante nítida algumas poucas reivindicações concretas, ao redor das quais se moveram milhares de trabalhadores país afora. Naquela ocasião, parte da esquerda passou a reivindicar que os entregadores de aplicativo deveriam ser enquadrados no regime da CLT, à revelia das reivindicações próprias do movimento. Essa recusa gerou um efeito desconcertante em boa parte da esquerda que ainda se referencia no pacto social almejado pelo ascenso operário dos anos 1980.
O curioso é que agora que estes mesmos direitos enquadrados na CLT encontram-se ameaçados pelo PL da Uber é evocada a consciência do trabalhador plataformizado para justificar o silêncio frente ao mesmo.
Muitas coisas podem ser debatidas a respeito da polêmica sobre o regime celetista de trabalho no interior desta categoria: as transformações no mundo do trabalho, racionalidade neoliberal e a ideologia do sujeito empreendedor de si, a contraofensiva patronal sobre os direitos trabalhistas e até mesmo o desconhecimento, por parcelas significativas da geração de jovens trabalhadores, com relação a este regime laboral. Porém, considero que para fins práticos da luta neste momento precisamos apenas compreender o seguinte: quais demandas emergem do conflito capital trabalho por parte dos que estão sujeitos à superexploração das empresas-aplicativo?
Isto porque, a despeito das polêmicas em relação ao regime de trabalho, não há nenhuma pesquisa acadêmica ou dado empírico que aponte para o desejo destes trabalhadores se sujeitarem a jornadas extenuantes com má remuneração, por motivos óbvios, além de outras mazelas acarretadas pela falta de direitos e desproteção social.
As principais reivindicações que se manifestaram nas paralisações dos entregadores de aplicativo no Brasil foram: aumento das taxas (mínima e por quilometragem) e o fim dos bloqueios injustos. Ou seja, uma demanda por maior remuneração e pelo fim do mecanismos arbitrários de punição que acarretam, na prática, a perda do emprego por parte de muitos trabalhadores.
O PL em questão, como sabem, abrange apenas a categoria de motoristas de aplicativos de passageiros, o que tem se chamado de “quatro rodas”. Nesta categoria, as últimas greves reivindicaram principalmente o aumento da remuneração, com aumento de taxa mínima, implementação de valor mínimo pago por quilômetro e redução na comissão retida pelas plataformas.[i]
Já no marco da formação do grupo de trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego do atual governo, foi apresentada também uma lista de reivindicações por parte de centrais sindicais e entidades representativas de trabalhadores de aplicativo, em contraproposta às sugestões apresentadas pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que reúne aplicativos como Amazon, iFood, Uber, 99, Zé Delivery, Buser, Lalamove e Flixbus. Esta lista de reivindicações continha: (i) a remuneração mínima de 35,76 reais para entregadores de motocicletas e 29,6 para entregadores de bicicleta; (ii) o fornecimento de uma cesta básica mensal no valor de 83 reais; (iii) o pagamento de seguro de vida com cobertura 24 horas e prêmios mínimos de 41 mil reais por morte ou por invalidez e 3 mil reais de auxílio funeral; (iv) a garantia de plano de saúde de 44,90 reais mensais; (v) o descanso semanal remunerado de 208 reais para motos e 192 reais para bicicletas.[ii]
Além disso, outro parâmetro interessante para pensarmos o trabalho digno na economia digital é o sistema de pontuação do Fairkwork Brasil, que tem publicado relatórios pelo segundo ano consecutivo com resultados da análise de plataformas, tendo em vista o enfrentamento das condições injustas e a falta de proteções sociais aos quais os trabalhadores de aplicativo estão submetidos[iii]. A Uber, por exemplo, segundo o relatório de 2023, pontuou 0 entre os 10 parâmetros mínimos de trabalho decente.
Para concluir essa parte, é importante frisar que independente das polêmicas ao redor do regime celetista de trabalho, há inúmeros exemplos de reivindicações e demandas por parte dos trabalhadores de plataforma que apontam para o seu reconhecimento enquanto trabalhadores que buscam por direitos, bem como a responsabilização da empresa-aplicativo que, na condição de empregadoras, para a garantia de condições dignas e seguras de trabalho.
Por que o PL da Uber representa um retrocesso histórico?
Como foi dito no início deste texto, o pressuposto básico que justifica a superexploração, ausência de direitos e seguridade social das empresas-aplicativo para com os trabalhadores destas plataformas é o não reconhecimento do vínculo trabalhista. O ponto do Art. 3º do PL, no qual o trabalhador será considerado “trabalhador autônomo por plataforma” é, portanto, a legitimação completa desta perspectiva.
O jurista Jorge Luiz Souto Maior têm alertado também para a inconstitucionalidade do parágrafo 2º do Art.3º, segundo o qual “O período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar doze horas diárias, na forma do regulamento.”. Contradizendo a Convenção 01 da OIT de 1919 e o Art. 7º da Constituição de 1988, o PL da Uber autoriza um regime de trabalho que, na verdade, poderá exceder em muito às 12h diárias de trabalho.
É fundamental notar para o fato de que, conforme consta no Art. 9º., parágrafo 2º.: “ devendo ser contabilizado (…) somente o período entre a aceitação da viagem pelo trabalhador e a chegada do usuário ao destino”. Ou seja, as 12h contabilizam apenas o tempo de corrida, e não o tempo de espera e de deslocamento. Estamos falando de trabalhadores que podem trabalhar 16 horas diárias ou mais, dentro dos termos desta lei!
Por fim, o projeto de lei regulamenta uma prática inexistente na CLT mas há muito adotada pelas empresas-aplicativo: o direito de punição ao trabalhador. O art. 5º estabelece “adoção de normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados por intermédio da plataforma, inclusive suspensões, bloqueios e exclusões, observadas as regras previamente estipuladas nos termos de uso e nos contratos de adesão à plataforma”. E para quem argumenta que houve avanço com relação à transparência, basta notar que o projeto de lei determina que os termos para as medidas punitivas são aqueles estipulados previamente nos contratos de adesão à plataforma. Ou seja, nada novo sob o sol. As plataformas seguirão tendo o arbítrio de criar critérios obscuros para descartar os trabalhadores, como já tem ocorrido até aqui.
Desmistificando os “pontos progressivos”
Os trabalhadores não receberão o salário-mínimo. O primeiro ponto de parâmetro do sistema Fairwork para remuneração justa é o “pagamento do salário mínimo local descontados os custos do trabalho”. Deccache demonstrou, na rede social X, que na verdade o trabalhador terá que pagar para trabalhar neste piso. Isso porque o valor do custo, efetivamente, é muito superior ao que é considerado pela Uber nos parâmetros do PL. Além disso, o piso é bastante inferior ao que atualmente é o repasse do aplicativo para o motorista (aproxidamente 75%), abrindo a possibilidade de que a Uber reduza o pagamento aos motoristas, se mantendo dentro do piso estabelecido pelo PL.
Não foi criada uma previdência para os motoristas. Os motoristas de aplicativo, sem o PL, já poderiam contribuir individualmente para a previdência como MEI. Da forma como está enquadrado no PL significa apenas uma elevação da alíquota. Conforme demonstra Deccache: “Hoje, como MEI, pagam 5% e podem ter acesso ao mesmo sistema. Trata-se, então, de elevação da alíquota. O trabalhador pagará, pelo menos, R$ 105,9. Hoje, como MEI, paga R$ 70,60.
Supostamente, a empresa pagaria 20% de contribuição. Ou seja, ao todo haveria 27,5% de contribuição em cima do ganho líquido. Contudo, dado o poder de mercado da empresa, o acesso a informações perfeitas e em tempo real e o espaço que tem para reduzir a remuneração por já pagar muito acima do piso estabelecido, terá capacidade de repassar parte ou totalidade do seu valor de contribuição para o motorista e/ou passageiro, a depender das condições de mercado. Portanto, estamos criando, provavelmente, a mais cara e regressiva contribuição previdenciária do mundo. Um absurdo”.[iv]
Auxílio-maternidade não é regulamentado pelo PL. Apesar de constar em uma série de reportagens que o PL irá regulamentar benefícios como auxílio doença maternidade, não há uma palavra sequer no Projeto de Lei Complementar (PLP 12/2024) sobre os direitos das mulheres, entre os quais a licença-maternidade. O que ocorre, é que com a contribuição previdenciária as trabalhadoras têm este direito, o que seria garantido da mesma maneira na contribuição como MEI, conforme já explicado no ponto anterior.
Solidariedade de classe por uma agenda antineoliberal
Até o presente momento, não há nenhuma regulação expressa para a realização das atividades das empresas que utilizam plataformas digitais, sendo os trabalhadores considerados autônomos. Assim, a única forma desses trabalhadores terem os seus direitos reconhecidos é por meio de ajuizamento de ações na Justiça do Trabalho. Porém, caso o PL da Uber seja aprovado, a regulação desta modalidade de trabalho pode resultar em um cenário ainda pior do que o atual, em que há brechas para a disputa por direitos trabalhistas entre as controvérsias da Justiça do Trabalho. Com o PL, a regulação em prol dos interesses das empresas-aplicativo passará a ser regida por lei.
Trata-se, portanto, de uma medida reacionária para os trabalhadores, dando segurança jurídica para que as empresas-aplicativo sigam implementando seu modelo de superexploração baseado na precarização e controle despótico. Há ainda agravantes, como a possibilidade de perda de remuneração e a elevação do valor para o acesso aos direitos previdenciários, o que pode acarretar em encarecimento dos serviços também para os passageiros.
É evidente, por todos estes motivos, que a proposta tem desagradado parte da categoria, alimentando a base social da extrema-direita, que já tem buscado capitalizar tal descontentamento para o seu programa reacionário.
Longe de uma defesa acrítica do governo, o que a esquerda radical deve fazer é romper o silêncio e batalhar por uma alternativa classista para os trabalhadores de aplicativo, que são expressão de uma tendência em expansão no mundo do trabalho. Ainda há tempo de manifestarmos nossa solidariedade de classe, construindo uma agenda antineoliberal que incorpore as lutas e necessidades dos trabalhadores de plataforma.
*Vanessa Monteiro é mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Referências
AMRUTE, S. Raça como Algoritmo: trabalhadores de tecnologia entediados sendo casualmente racistas. Revista Fronteiras, v. 23 n. 1 (2021): Janeiro/Abril, 11-28. https://doi.org/10.4013/fem.2021.231.02
SRNICEK, N. Capitalismo de plataformas. Buenos Aires: Caja Negra, 2018
HUWS, U. et al. Work in the European Gig Economy. Buxelas: FEPS-Foundation for European Progressive Studies, 2018.
ABÍLIO, L. et al. Condições de trabalho em empresas de plataforma digital: os entregadores por aplicativo durante a Covid-19. São Paulo: REMIR, 2020.
ABÍLIO, L. C. Uberização: Fazer empreendedorismo para autogestão de subordinados. Psicoperspectivas , Valparaíso, v. 18, n. 3, pág. 41-51, nov. 2019.
ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
Notas
[i] https://www.techtudo.com.br/noticias/2023/05/greve-na-uber-e-na-99-hoje-entenda-a-paralisacao-e-veja-reivindicacoes-edapps.ghtml
[ii] https://www.cartacapital.com.br/politica/entregadores-de-aplicativo-propoem-regras-trabalhistas-em-mesa-com-governo-e-empresas/
[iii] https://fair.work/wp-content/uploads/sites/17/2023/07/Fairwork-Brazil-Ratings-2023-report-PT-red.pdf
[iv] https://twitter.com/deccache/status/1767008423453831282
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