Por RAFAEL MANTOVANI, BRUNO REGASSON & NICOLÁS GONÇALVES*
As rixas sobre o que é e o que deveria ser o Brasil revelam labirintos discursivos que nos mostram concepções de identidade, desejos e perspectivas morais sobre o futuro
No dia 9 de abril, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) causou o início de uma curiosa discussão nas redes sociais: publicou o mapa-múndi com o Brasil no seu centro. Alguns gostaram por considerá-lo decolonial, já outros o viram como uma aberração por ir contra as cartografias consagradas do nosso planeta. Ainda que possa ser tido como um factoide diante de graves problemas econômicos, sociais e climáticos, a discussão revela bastante a respeito da percepção dos brasileiros sobre si próprios, o país e a sua relação com o mundo.
Em 1943, Joaquín Torres García fez um desenho da América do Sul invertido de acordo com os padrões cartográficos. Hoje em dia, é um desenho bastante apreciado pela esquerda. Não por coincidência, as críticas ao mapa com o Brasil centralizado vieram da direita, associando o mapa a uma suposta “falta de noção” por querer tornar o Brasil um país central, quando, na realidade, teria um papel periférico. Os que o elogiavam seriam lunáticos ou, na realidade, seriam os que o criticavam os afetados pelo complexo de vira-lata (expressão feliz de Nelson Rodrigues para um sentimento de inferioridade brasileiro, um narcisismo às avessas)?
A discussão superficial sobre o mapa revela labirintos discursivos que nos mostram concepções de identidade, desejos e perspectivas morais sobre o futuro. As rixas sobre o que é e o que deveria ser o Brasil não são de hoje. Desde o século XIX, com a independência, tem-se discutido as questões do país e as possíveis maneiras de resolvê-las. E as sugestões de como resolvê-las estão pautadas por concepções sociais e morais: ou seja, estão assentadas sobre análise a respeito da realidade, mas também possuem preferências éticas. Diagnóstico e prognósticos são, portanto, duas facetas que se complementam quando se pensa sobre a sociedade brasileira.
A séria discussão sobre as mazelas do país gerou visões bastante pessimistas tanto no senso comum quanto nas discussões intelectuais, acadêmicas e políticas. Quais seriam os males que impediriam o Brasil de realizar as suas capacidades? E uma vez diagnosticado o problema, qual seria o projeto mais adequado para resolvermos os problemas sociais e realizarmos nossos potenciais a contento? Novamente, as respostas divergiram enormemente. Evidentemente, esse movimento não é neutro, não é desprovido de concepções morais de sociedade e variaram da direita à esquerda.
As sugestões sobre em quem deveríamos nos inspirar, desde o final do século XIX e durante o século XX, alternaram entre Europa e Estados Unidos, com algumas poucas vozes que defendiam uma organização própria, sem cópias. Dessa forma, a discussão também dizia respeito à autonomia nacional: (i) teríamos a capacidade de nos inventarmos como sociedade, (ii) devemos ter bons padrões já consolidados para nos inspirar ou (iii) teríamos que importar os modelos bem-sucedidos? Sabendo que existe uma grande predisposição a aceitar os modelos sociopolíticos e econômicos norte-americanos como objeto de desejo a ser implantado por aqui, perguntamo-nos: será que o brasileiro médio efetivamente aceitaria os motivos éticos e as disputas sociais que movem a sociedade dos Estados Unidos como louváveis?
Narciso às avessas
Com olhos voltados para a Europa e para os Estados Unidos, nossos intelectuais estiveram frequentemente interessados em nossas ausências: falta de sociedade civil, de órgãos representativos, de riquezas materiais, de integração política, de urbanidade, de indústria, de trabalhadores brancos…
O Brasil independente nasceu de um processo político todo próprio: quase nada teve de nativismo anticolonial. Nossa geração da Independência era a mesma que estava empenhada no projeto do Império Luso-Brasileiro (ou seja, ao invés da emancipação política, apostava na criação de um regime político conjugado a Portugal, ao estilo do Reino Unido).
Projeto frustrado pela Revolução do Porto, em que os portugueses foram intransigentes na tentativa de restaurar o pacto colonial com o Brasil à maneira que se configurava antes da abertura dos portos de 1808. José Murilo de Carvalho demonstra como essa elite foi homogeneizada em educação e treinamento… em Coimbra. Formados pelas lentes europeias, muitos dos nossos heróis do rompimento colonial enxergavam a civilização apenas lá, enquanto aqui, segundo eles, reinaria a “barbárie”.
Maria Odila Dias, em A interiorização da Metrópole, identifica esse sentimento na elite política nacional. Separados do restante da população por um abismo, esses homens uniam-se por interesses materiais, mas também por uma dupla insegurança. A primeira, uma crise de personalidade: somos mesmo civilizados? A segunda, uma fobia social. Entre 1791 e 1804, um levante de escravizados no Haiti levou à abolição da escravatura e à independência do país. Nossa aristocracia rural temia ser substituída pela repetição desse episódio em terras nacionais. Devido a esse medo da “barbárie”, muitas das nossas instituições sociais, econômicas e políticas permaneceram intactas: a monarquia, o tipo de Estado e a escravidão.
Os diagnósticos do atraso foram diversos. Segundo muitos dos autores, teríamos a herança maldita da cultura ibérica, que carregávamos graças à nossa má-sorte de termos sido colonizados pelo país errado. Ou, então, seríamos vítimas de determinismos geográficos: nosso bioma, relevo e clima tropical impediriam definitivamente o povoamento, a ocupação territorial e o desenvolvimento econômico. Mas a forma mais perversa de explicar a tardança brasileira, certamente, foi a que entendia que a chaga do país era a sua mistura racial.
Eugenistas como Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e Oliveira Viana (1883-1951) trouxeram para o Brasil os estudos avant-garde de intelectuais como Arthur de Gobineau (1816-1882) e Georges Vacher de Lapouge (1854-1936). Em um país altamente miscigenado como o nosso, esses discursos eugenistas encontraram aqui um espaço propício e se elaboraram as teses biologicistas de desigualdade de raças.
Os sinais positivos, obviamente, estariam na população branca, enquanto os negativos, na população negra e indígena. A mestiçagem, assim, seria um problema: impediria nossa modernização e democratização. E qual seria a via para a democracia? Arianizar o país pela mistura do “mestiço superior” com o branco, pelo incentivo à imigração seletiva, pela exclusão política e, no limite, pelo controle de natalidade.
Tupi or not tupi?
Porém, nem só de desejos de embranquecimento viveram nossos intelectuais: um anseio amplo de alcançar a “civilização” estimulava suas imaginações. Mas como? Deveríamos copiar modelos de outros países? Se sim, quais? Dos elogiosos à cópia aos Estados Unidos, podemos apontar as proeminentes figuras de Quintino Bocaiúva (1836-1912) e Monteiro Lobato (1882-1948).
O ministro Quintino Bocaiúva, figura das mais destacadas do golpe republicano, tinha enorme admiração pelas instituições estadunidenses e defendia seu transplante para o Brasil, mas não sem tradução. Ela se daria pelo americanismo da constituição argentina de 1853 e pelo exemplo de presidentes constitucionalistas como Domingo Sarmiento, Nicolás Avellaneda e José Alcorta, que o ensinavam sobre a necessidade de um esqueleto conservador, calcado no estado de sítio, para o corpo liberal federativo do regime. Só assim seria possível controlar as lutas intestinas do país e consolidar a autoridade republicana.
Enquanto isso, Quintino Bocaiúva tratava de estreitar laços com o governo norte-americano, que parecia, por um lado, disposto a reconhecer a república dos Estados Unidos do Brasil (como ficou alcunhado o país na sua primeira versão republicana), que imitava sua constituição e sua bandeira, porém, por outro lado, se mostrava preocupado pela presença militar dentro do novo governo. As potências europeias de então não faziam qualquer questão de reconhecer o governo comandado por Deodoro da Fonseca antes que os Estados Unidos da América o fizessem. No final de janeiro de 1890, a nação da América do Norte reconheceu o governo e percebeu a funcionalidade da posição subalterna que o Brasil oferecia.
Monteiro Lobato, algum tempo depois, faria o seu elogio aos “states” (palavra escolhida pelo próprio Lobato) em sua obra América, escrita após três anos de estadia nos Estados Unidos. Para ele, a América estadunidense é encarada como uma terra de gigantes. Da complexa mescla naturalista entre raça, cultura e meio ambiente derivaria a força espontânea dos norte-americanos responsável pelo progresso natural daquele lugar, algo muito distinto do que ocorreria em terras tropicais, terras do excesso e do descontrole. É lá, nos “states”, que está o que interessa. “Um romance de Alencar ou um Macedo não me acorda coisa nenhuma na alma; já os livros de Jack London, de Melville e mesmo os de Mark Twain com cenas do Mississippi bolem comigo”, escreveu em 1932.
Mas havia o outro lado dessa moeda. Contemporâneo de Quintino Bocaiuva, Eduardo Prado (1860-1901) destacava a influência nefasta da cópia ao sistema norte-americano. Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), por sua vez, contemporâneo de Monteiro Lobato, algum tempo depois faria o mesmo.
Eduardo Prado defendia fortemente, em especial, a influência espanhola sobre os trópicos, afirmando que a miscigenação iniciada no período de dominação moura sobre a Península Ibérica, somada à miscigenação ocorrida já em território latino-americano, teria a capacidade de criar uma raça capaz de sobreviver no “terrível” meio ambiente da região. Afirmava que a pretensa inaptidão dos homens miscigenados que viviam na América em seu tempo era apenas um preconceito ao largo difundido pelos “homens do norte”.
Seu catolicismo aparece em sua obra e em sua admiração pelo modo de vida espanhol que havia chegado à América. Apontava que o catolicismo igualava os homens ao colocar brancos, negros e mestiços sob o mesmo teto, dentro de uma mesma igreja, dando o pontapé inicial para o mito que atravessou o século XX e ainda nos acompanha no XXI: a “democracia racial”. Os Estados Unidos e sua religião pagã, aos olhos do pensador, transformavam homens em máquinas, desvirtuando um pressuposto por ele considerado humanista. O Brasil do futuro, em sua versão redentora, deveria ser monarquista e profundamente católico.
O jovem Sérgio Buarque de Holanda teve muita influência das ideias de Eduardo Prado. Assim como ele, Sérgio Buarque observou com atenção as nossas raízes ibéricas, vendo com melhores olhos as que haviam vindo da Espanha do que as provenientes de Portugal. Ao concentrar-se mais fortemente no utilitarismo yankee, exemplifica-o dizendo que nascia da ideia de que a felicidade só poderia ser alcançada pela simplificação extrema da vida: “o estilo utilitário dos anglo-saxões de hoje espalha-se por todo o mundo”, queixava-se em fevereiro de 1921. Acreditavam ambos em soluções nativistas de origem ibérica. Não se poderia imitar algo que não estivesse inscrito em nosso forjar histórico.
Nacionalismos à brasileira
A história dos nossos nacionalismos é complexa e demonstra os caminhos tortuosos e múltiplos que as ideologias nacionalizantes podem tomar. No século XIX, nossa principal preocupação nacional era antilusitana ou oficial, por parte da Coroa. Os projetos nacionais se complexificaram, de fato, no século XX.
Um desses projetos começou a se desenhar aqui já nos anos 1910. Negando os estrangeirismos, denunciando o copismo e valorizando um suposto realismo analítico, autores como Alberto Torres (1865-1917), Azevedo do Amaral (1881-1942) e o já citado Oliveira Viana passaram a afirmar um nacionalismo político pautado na necessidade de soluções próprias para os problemas específicos do país. Mas essa concepção organicista, que analisava negativamente o privatismo da sociedade brasileira, desaguava em um projeto de organização pelo alto da nação dispersa e amorfa. Construir, pela arte política dos dirigentes, o povo brasileiro. Coerentemente, nomes importantes desta geração passaram a integrar o projeto autoritário do Estado Novo em 1937.
Se iríamos copiar, criar ou praticar a antropofagia se tornou também uma questão estética no começo do século XX. A preocupação dos modernistas sobre os rumos da arte estava afinada com uma nova perspectiva sobre os males do Brasil: a partir de então, entendia-se que talvez o problema do país não era racial ou climático, mas sim, causado por doenças que afligiam o povo pobre. Cuidar dele passaria a ser a solução política, entender e enaltecer os seus elementos culturais e artísticos seria a nova diretiva sociocultural.
Responder o que era o Brasil passaria pelos nossos rincões, por entender a linguagem, a música, as artes plásticas do povo até então esquecido pelas elites. Essa perspectiva animou a esquerda brasileira a partir de então. Quem seria o povo oprimido que representaria verdadeiramente o brasileiro e que poderia nos redimir das injustiças capitalistas? O vilipendiado caipira, o pescador, o agricultor, o sambista, o operário.
Vanguardas intelectuais posicionadas à esquerda produziram muita cultura com isso. Mesmo na época da ditadura, como nos conta Marcelo Ridenti no seu livro Em busca do povo brasileiro, apesar de serem autores odiados pelas elites econômicas, esses vanguardistas forneceram muito material para os conservadores. Tais vanguardas enalteciam elementos de identidade nacional, o que não era necessariamente contraditório com a perspectiva das elites nacionais à direita. É que nas suas produções artísticas, não podiam encenar seu desejo derradeiro devido à censura: o fim da propriedade privada dos meios de produção estava interditado.
Diz-se que essa foi uma das fórmulas encontradas pelos grandes meios de comunicação para lidar com tais produtores culturais: eles seriam ótimos, mas, devido à ditadura militar, não poderiam ir além do elogio à brasilidade, pois se falassem de socialização dos meios de produção seriam censurados. Curiosamente, a cultura do iê iê iê, amplamente divulgada pela recente, porém já robusta indústria cultural brasileira, inspirada em padrões estrangeiristas e norte-americanos, era vista com maus olhos pelas alas militares.
Portanto, havia uma diferença primordial entre os dois nacionalismos: o nacionalismo tem como objetivo a revolução ou a ordem? O engrandecimento da imagem do brasileiro seria para romper com as normas capitalistas ou teria como base o medo dos distúrbios? Para os grupos à esquerda, tratava-se de apontar as idiossincrasias locais para transformar o status de país submetido ao imperialismo. Era um chamado para a insubordinação.
Diferentemente disso, para aqueles posicionados à direita, o chamado às especificidades brasileiras tinha como pressuposto mostrar o seu lugar específico (e, talvez, nobre) na ordenação capitalista e contar com a tutela dos países mais ricos e fortes militarmente. No golpe civil-militar de 1964, o que mais importou foi o medo com relação às classes trabalhadoras associadas à pequena burguesia.
O medo das sedições, que já existia desde o século XIX e atendia pelo nome de haitinização, aparecia mais uma vez como elemento aglutinador das classes dominantes que renunciavam a um papel protagonista na sua própria economia para se tornar coadjuvantes e protegidas pelos grandes monopólios internacionais. Claro, havia também conglomerados militares que apostavam na necessidade de um país autônomo, não submetido a uma nação imperialista. Contudo, foquemo-nos nas alas proeminentes que efetivamente determinaram os rumos da política nacional.
Sob a ditadura militar, restava encontrar qual seria o lugar específico do brasileiro na engrenagem capitalista, estando nós resguardados pela segurança oferecida por um sentido militar dado a esse curioso orgulho patriótico de estarmos submetido aos Estados Unidos e, por homologia, podermos talvez também ser uma grande nação. Dessa maneira, se torna compreensível a estranha atitude de um presidente brasileiro adepto às ideias da extrema direita de bater continência à bandeira ianque.
O nacionalismo reacionário do bolsonarismo arquiteta artificialmente um povo, governa diretamente em nome dele e contra os seus inimigos. Como apontam Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro em O populismo reacionário, o discurso bebe, em sua origem, do reacionarismo olavista. O culturalismo reacionário de Olavo de Carvalho quer regenerar o que considera como autêntica cultura brasileira. O Brasil estaria inserido no mundo “ocidental”, esse ocidente essencializado como a “civilização judaico-cristã” da qual os Estados Unidos seriam o grande protagonista.
A versão da história brasileira por ele preferida é a que passa pela ótica da Casa-Grande, pelas famílias patriarcais de descendência europeia, pelo bandeirantismo reimaginado como paralelo da Marcha ao Oeste e, é claro, pela ditadura militar brasileira. O povo, na versão bolsonarista, tem etnia, religião e origem. Daí a possibilidade de articular como discurso o “patriotismo” e o alinhamento ferrenho aos Estados Unidos. “O Brasil é tão grande”, é o que afirma, “que poderia ser os Estados Unidos”.
Este alinhamento ainda é recortado por outros fenômenos ideológicos e políticos. Há a teologia do domínio, ou dominionismo, de bases pentecostais e com um grau elevado de paranoia que defende a transformação da vida civil em uma guerra espiritual, inclusive no âmbito do controle do Estado. Assim, o alinhamento pode sofrer algumas variações, sendo mais entusiasta com a presidência de um Donald Trump do que a de um Joe Biden.
A articulação global da extrema direita também é, obviamente, essencial para entender a relação de Jair Bolsonaro e Donald Trump. Dando o devido peso a essas considerações, a aproximação tem por pressuposto este desejo de ver o Brasil resguardado pela grande potência da civilização judaico-cristã. Tendo tomado diversas formas, algumas seculares, encontramos essa disposição em outros momentos de nossos nacionalismos à direita.
Espelho, espelho meu…
Há muito do senso comum que parece ter ficado ao lado daqueles que desejavam a cópia do modelo norte-americano. Mas será que aqueles que reclamam quando não nos alinhamos aos EUA (ou mesmo à Europa) gostariam de viver na sociedade com esses outros valores que direcionam os posicionamentos políticos dela?
O lobby nos Estados Unidos, por exemplo, não é crime. Aqui sim. Nos Estados Unidos, tem-se quase como um dado normal que as corporações controlam o Estado. No Brasil, também há essa percepção, entretanto, como algo eticamente condenável. Ou seja: temos uma percepção de que há mais problemas na gestão pública por aqui porque somamos um elemento que não é visto como crime nos Estados Unidos.
Ainda que falhemos na consecução dessa possível virtude, entender essa relação como algo a ser corrigido mostra uma concepção diferente sobre quem deveria ser o mandatário do poder político. Deveríamos diminuir os índices de corrupção por legalizar o lobby, ou seja, passarmos a entender que é o mercado que detém o monopólio legítimo do Estado, assim como permitido nos EUA?
E as convicções que guiam a ideia de saúde pública? Hoje, no Brasil, é completamente impossível qualquer discurso a favor da extinção do Sistema Único de Saúde. É um senso comum quase inabalável que educação e saúde são um dever do Estado e um direito do cidadão.
O debate nos Estados Unidos é bastante diferente. A ideia de cada um por si gerou um sistema previdenciário e de saúde pública que nenhum brasileiro cogitaria nem no seu pior pesadelo. Nos Estados Unidos, ter uma doença terminal e/ou cara e ser tratado pelo sistema público, sem ter que se desfazer de um bem, é uma realidade impensável.
Em entrevista que um dos autores deste texto realizou com Charles Rosenberg – On the history of medicine in the United States, theory, health insurance, and psychiatry: an interview with Charles Rosenberg –, o historiador estadunidense falou sobre o quão impensável é, para um norte-americano, acreditar que a expectativa de vida de um cubano seja similar à dele. A isso, poderíamos somar que seria impensável a cidadãos dos EUA a existência de um sistema de saúde como o SUS, implantado e funcionando. A sociedade mais rica do mundo entende que se você adoeceu, isso é problema só seu. Aqui não.
Ao final da Segunda Guerra Mundial e com o começo da discussão sobre Estado de bem-estar social, surgiu um enorme debate nos Estados Unidos a respeito das maneiras que o mundo já pensou a saúde pública. Basicamente, a questão era: sendo uma das sociedades mais ricas do mundo, devemos deixar cada um a sua própria sorte? Havia exemplos de outros modelos menos individualistas que poderiam fornecer respostas que satisfizessem mais a uma comunidade solidária.
Contudo, politicamente, os Estados Unidos tomaram uma postura oposta. A proposta mais ousada no sentido da solidariedade tem sido a de Barack Obama. Ainda que muito distante de ideias como universalidade e obrigatoriedade de prestação de serviço, ela virou motivo de chacota entre os republicanos. No Brasil, essa discussão jamais existiria. O que se requer é o oposto: o SUS precisa do financiamento de que necessita. Jamais se diria que seria custoso demais e que deveria ser extinto.
À guisa de conclusão, podemos evocar a frase que se transformou em um mantra a partir de Tom Jobim: “o Brasil não é para principiantes”. Não que seja tão difícil assim compreendê-lo, mas é evidentemente um país com diversas disputas narrativas e outras tantas propostas a respeito do que fazer. Pautados em evidências sobre desigualdades socioeconômicas ou em ilusões climáticas, raciais e morais, criamos inúmeras certezas a respeito de qual rumo a sociedade deveria tomar.
E é curioso esse entrecruzamento de diversas impressões sobre nós, os outros, os colonialismos que nos atravessam que, ao contrário de transformar sonhos em pesadelos, tem a capacidade de transformar pesadelos em sonhos.
*Rafael Mantovani é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC. Autor do livro Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840) (Fiocruz). [https://amzn.to/3YnbySW]
*Bruno Regasson é doutorando em sociologia política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
*Nicolás Gonçalves é doutorando em sociologia política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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