Por CHICO ALENCAR*
A passividade é sequela de séculos da hegemonia da escravização da maioria da nossa gente
Mestre Paulo Freire (1921-1997), que sabia que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, criou o verbo “esperançar”. Ele queria se contrapor à noção, largamente difundida, da mera espera, que pode ser até menos que expectativa: uma certa passividade, a imposição ideológica da cultura da vassalagem, da submissão, da inação.
É certo que toda sociedade tem suas forças de adaptação, de autorreprodução. Mas a formação social brasileira, ao longo da história, foi cristalizando algo além: a passividade. É sequela de séculos da hegemonia da escravização da maioria da nossa gente, na Colônia, no Império e mesmo na República – dos coronéis, das oligarquias.
Esse é o Brasil que chega a 2021. De continuada e crescente desigualdade social, de degradação política jamais vista. Os valores republicanos mais básicos estão corrompidos. Nessa quadra dramática da nossa vida como Nação, experimentamos uma combinação tóxica do ultraneoliberalismo econômico com formas políticas autoritárias, regressistas, fisiológicas, com setores que mal disfarçam um neofascismo tosco. A pequena política tornou-se a grande, a dominante. O negacionismo da ciência avassala o senso comum. E isso custa vidas.
Chegamos a um novo ano com velhos conhecidos nossos, pilares estruturais do nosso atraso: há 14,1 de brasileir@s procurando trabalho; acumulamos, nos últimos 12 meses, uma inflação de 15,9%; a queda no rendimento das famílias prevista é de 5,3%, sem auxílio emergencial e outros benefícios.
Chegamos a mais um ano sob o signo da morte. A pandemia recrudesce favorecida por uma inacreditável postura criminosa do governo federal: em etapas, a política do necroestado vertebrou, de início, a minimização da doença e, depois, o desprezo pelas mortes – que se aproximam das 200 mil! Em seguida a vergonhosa “guerra da vacina”, agora as insuficiências do Plano Nacional da Vacinação e a postura egoísta, sombria, atrasada de Bolsonaro, que alardeia que não se vacinará.
No início do século passado, no alvorecer da República, aconteceu algo parecido. Mas não vindo do governo Rodrigues Alves (1902-1906) e sim de seus opositores. Havia grande desconsideração pelo Instituto Soroterápico, precursor da Fiocruz, na então capital federal, e pelo Instituto Vital Brasil, em São Paulo, precursor do Butantan. O diretor nacional da Saúde Pública, Oswaldo Cruz, era demonizado: Oswaldo “Cruz Credo”, “Nero da Higiene”. A culminância da crise deu-se em 1904, com a Revolta da Vacina, que foi um estuário de muitos descontentamentos, inclusive com aspectos da “modernização urbana” no Rio – que desconsiderava os mais pobres no seu direito à cidade.
As doenças endêmicas faziam abundante colheita. Morria-se de peste bubônica, de varíola, de febre amarela, do cólera, de difteria, de tuberculose, escarlatina e sarampo. Como sempre, os mais desvalidos. Que reconheceram, poucos anos depois, a importância das medidas de saneamento. Nosso grande sanitarista passou a ser reconhecido como “Mestre Oswaldo” e “Messias da Higiene”…
Citei a passividade de grupos e classes na nossa história. Mas registro também as lutas: onde há opressão, há resistência. Temos uma trajetória luminosa de defesa dos nativos por suas terras e culturas, conhecemos a força quilombola, as batalhas dos trabalhadores e trabalhadoras, a afirmação das mulheres por sua dignidade aviltada secularmente pelo patriarcalismo.
Assim gira a roda da História, em meio à boca devoradora do tempo, que não para. O mundo é permanente mudança, as sociedades avançam e recuam, dialeticamente. As épocas sombrias não duram sempre, ainda que tudo esteja “demorando em ser tão ruim”. A invenção do calendário também tem essa eficácia simbólica: exortação ao recomeço, convite à renovação, à retomada. Somos desafiados a vivenciar o escrito e praticado por Paulo Freire: “esperançar é se levantar, é ir atrás, é construir, não desistir”. Assim seja e sejamos!
*Chico Alencar é professor, escritor e vereador eleito (PSOL/Rio).