EUA: a cara da serpente

Imagem: Anderson Antonangelo
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.*

A gravidade do momento histórico não dá margem para tergiversação. O único antídoto seguro contra a ameaça totalitária que ronda os EUA (e, de resto, toda a humanidade) é a construção de uma força política ancorada num projeto de sociedade baseado na igualdade substantiva

Para o conjunto dos trabalhadores, o balanço do governo Donald Trump é desastroso. Para além dos descalabros ambientais, do descontrole da crise sanitária e da eclosão da maior crise econômica e social desde a grande depressão dos anos 1930, o caráter mais nefasto de sua calamitosa passagem pela Casa Branca é sua herança política perversa.

Quatro anos de abuso sistemático do poder da presidência dos Estados Unidos, de reiterada exaltação do racismo e da xenofobia, bem como de incentivo a organizações da ultradireita inspiradas na restauração da supremacia branca deixaram o sistema político norte-americano em frangalhos. A eleição catalisou a crise de credibilidade da democracia liberal.

A denúncia de fraude generalizada na apuração dos votos comprometeu irremediavelmente a legitimidade do presidente eleito junto a uma expressiva parcela da população. O conflito entre democratas e republicanos – os dois partidos que há mais de cento e cinquenta anos monopolizam o poder do Estado – foi levado ao ponto de ebulição.

O assalto ao Congresso Nacional pela turba insuflada por Trump para impedir a investidura de Joe Biden como presidente eleito provocou uma mudança de qualidade na crise da república. A guerra fratricida entre os dois principais partidos da ordem pelo controle do Estado evidencia que o sistema representativo, que já vinha sendo fortemente questionado de baixo para cima por uma população descrente na política e nos políticos, agora também começou a ruir pelo vértice.

Por completa falta de apoio jurídico, parlamentar, militar e, principalmente, empresarial, o ensaio golpista abortou rotundamente. O amadorismo das lideranças que comandaram a insurreição reacionária é a prova cabal de que as condições para a derrubada da ordem não estavam amadurecidas.

A batalha perdida não significa, entretanto, que a ofensiva da ultradireita contra as instituições democráticas esteja encerrada. A ousadia do ataque ao Capitólio e as cenas épicas da massa enfurecida tomando a cidadela da democracia americana ficarão para sempre na mística das organizações de ultradireita como fonte de inspiração e exaltação à ação violenta.

Na ausência de uma resposta imediata e implacável das forças comprometidas com a defesa das instituições democráticas, a direita contra a ordem será estimulada a novas aventuras. Se as organizações que comandaram as tropas de choque não forem desmanteladas e os golpistas não forem severamente punidos, como cabe a uma insurreição malograda, Trump, ou qualquer outro psicopata com maior talento para a manipulação das massas e conspiração política, sentir-se-á à vontade para apresentar-se, quando as circunstâncias permitirem, como “fuhrer” das massas.

A julgar pelo que aconteceu nas últimas semanas, não há razão para imaginar que a ameaça estrutural da solução autoritária tenha sido dissipada. À exceção das corporações que cancelaram imediatamente o acesso de Trump às redes sociais, privando-o de seu principal instrumento de comunicação com a massa, a reação do establishment político tem sido tíbia e protocolar.

Sem força real para apear o presidente do poder e puni-lo por sua responsabilidade direta e inequívoca no ataque ao Congresso Nacional, o Partido Democrata conformou-se com discursos indignados e sanções simbólicas, que culminaram como meteórico “impeachment” de Trump poucos dias antes do fim de seu mandato. Esperam com isso impedi-lo de disputar cargos públicos e estigmatizar as alas mais radicais do Partido Republicano. Respondem à ameaça mais grave à democracia desde a Guerra da Secessão com politicagem.

O revés da patética tentativa de golpe de Trump afasta o risco imediato de uma escalada autoritária no centro do sistema capitalista mundial. No entanto, enquanto uma crescente parcela da população se sentir vilipendiada pela incapacidade do “sistema” de resolver seus problemas fundamentais, sempre haverá espaço para o aparecimento do Homem providencial. Afinal, o padrão de acumulação que produz a barbárie requer um padrão de dominação para administrá-la.

Sem a superação das causas responsáveis pelo acirramento da luta de classes – a crise estrutural do capital que impulsiona a barbárie capitalista –, mais tempo, menos tempo, será impossível deter a maré reacionária. Se a polarização da luta de classes colocar em risco os interesses estratégicos do capital, as grandes corporações podem rever sua posição e reconvocar a tropa de choque para o centro do palco.

O novo presidente dos Estados Unidos, um leal porta-voz dos interesses financeiros e produtivos das grandes corporações norte-americanas globais, está muito aquém das exigências do momento histórico. Sem fortes mobilizações de rua exigindo mudanças qualitativas na economia e na sociedade, Joe Biden sequer terá condições de realizar o tímido sub-reformismo a que se propõe.[1]Se porventura ultrapassar os limites do status quo neoliberal, será interditado pela máquina do Partido Democrata e pelas engrenagens do Estado norte-americano.

A gravidade do momento histórico não dá margem para tergiversação. O único antídoto seguro contra a ameaça totalitária que ronda os Estados Unidos (e, de resto, toda a humanidade) é a construção de uma força política, ancorada num projeto de sociedade baseado na igualdade substantiva, de perspectiva internacional, que unifique o conjunto da classe trabalhadora em torno da luta extra institucional contra o reino da barbárie capitalista. Vencer a tentação de se dobrar à linha de menor resistência, superar o cretinismo parlamentar e construir organizações independentes dos trabalhadores, com capacidade de autodefesa e ações ofensivas revolucionárias, são os desafios primordiais de nosso tempo. Enfrentá-los é o meio de abrir novos horizontes para a crise civilizatória que ameaça a todos e que, no limite, coloca em questão a própria vida no planeta.

* Plínio de Arruda Sampaio Jr., professor aposentado do Instituto de Economia da UNICAMP e editor do site Contrapoder.

** Publicado originalmente no site www.contrapoder.net.

Nota:


[1] https://www.npr.org/2020/11/09/932190347/bidens-first-100-days-here-s-what-to-expect

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES