Fake e fato

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Por FLÁVIO R.  KOTHE*

Estamos perplexos diante de arrogantes que se consideram donos da verdade e dos caminhos da história, enquanto vão destruindo o que de melhor se construiu

Fala-se em fake, mas não se admite que milagres de Cristo ou hagiografias de santos poderiam ser fakes também. As religiões treinaram, no entanto, os políticos no sentido de esperarem que se acredite no que dizem, por mais absurdo que seja. Com que concepção de verdade se tem operado? É possível “operar” com ela, como se coisa fosse, um instrumento? Ou ela nos é, nos abrimos à verdade que em nós assoma e se torna palavra e imagem?

Para os gregos, verdade era a revelação do ser dos entes. Na Idade Média se impôs a doutrina da fé como verdade. A verdade saiu das coisas para o texto sagrado. Princípios de crença não são, porém, verdades e sim projeções de desejos inconscientes e inconfessos. Não é porque uma comunidade inteira acredita neles que eles já se tornam verdadeiros. Os paralogismos imperam entre nós. Ao achar que a verdade está na palavra, no discurso, acha-se que algo é verdadeiro só porque se diz. Fake News imperam, mas poucos estão dispostos a aprender que eles sempre imperaram nas várias religiões, nos diversos regimes políticos, nas versões vigentes de história. O país vai perder a oportunidade de desenvolver a razão crítica.

A noção de veritas como adequação entre coisa e intelecto é problemática, pois aquilo que a coisa é e aquilo que está na mente nunca são o mesmo (o ad aequum, mesmo que a matemática diga que os termos de uma equação seriam equivalentes). Descartes, ao desviar a fonte da verdade para o sujeito que pensa, não repensou o que se entendia por verdade. Repetiu até a equação presente em Tomás de Aquino e Agostinho: 2 + 3 = 5. Deus continuava sendo a garantia de que isso seria verdadeiro, quer o sujeito estivesse acordado ou dormindo. Só que um conjunto de 2 + 3 não é igual a um conjunto de 5! Faz-se de conta que são, embora não sejam. O próprio conceito de verdade é falso. Isso Nietzsche já viu, mas não é lembrado.

Para a escolástica, a tese da identidade repousava na identidade absoluta de Deus: A = A. Era uma ideologia conservadora, pois pretendia que o que tivesse nos bons tempos sido considerado verdadeiro deveria ser para o todo e sempre. Postulava, no entanto, que teria havido primeiro um Deus sozinho, sucedido por um Deus que desenvolveria as “ideias” das coisas como formas puramente espirituais; haveria depois um Deus que transformaria esses “projetos” em coisas, criando o universo, e mais tarde se daria ao trabalho de criar o homem, insuflando-lhe uma alma divina. Teria tido, ainda, o serviço de aniquilar pelo dilúvio uma raça que não tinha dado certo. Para o cristianismo, surgiu ainda um Deus que, diferente de Jeová, seduziu uma virgem do templo para fazer um filho, a fim de vê-lo sofrer na cruz.

O que se modifica está no tempo, não é eterno. Haveria, nessa sequência, não só A e sim A0 – A1 – A2 – A3 – A4. O povo atual não lhe daria sossego, fazendo-o intervir na história, um A5. Em suma, Deus não seria A = A. O que muda está no tempo, não é eterno.

O idealismo alemão, na leitura canônica, teria baseado seu sistema no fundamento de que eu = eu. Se A não é = A, eu não é = eu, um eu não é igual a outro eu. O pressuposto disse parece ser que o eu seria a manifestação da alma e que ela seria eterna. Na primeira edição da Crítica da razão pura, Kant observou que, na empiria, um eu não é igual a outro eu. Todos dizem eu de si, nenhum é igual ao outro. Ao longo da vida, as pessoas vão mudando, deixam de ser como eram. O eu não é mais idêntico a quem ele já foi. Arrepender-se é se modificar de tal modo que não se faria mais o mal que se fez. Assim, o eu perde a sua identidade absoluta consigo mesmo. Os pietistas acharam que seria perder a alma imortal. Kant tratou de retificar sua obra.

Fichte disse que o eu gera o não-eu, mas o não-eu também gera o eu. Surgem, assim, duas assertivas antitéticas, sendo ambas verdadeiras. Isso seria inaceitável para a lógica escolástica. A dialético do juízo sintético se impôs as mero desdobramento do analítico. Por outro lado, se o não-eu passa a fazer parte do eu no processo de conhecimento, há uma dimensão de não-eu que foge à consciência do eu. Fichte descobriu o inconsciente. Para Nietzsche, este passou a fazer parte do sujeito cognoscente. Não haveria mais, portanto, “in-divíduo”, “á-tomo”, “uni-verso”. Certezas evolaram.

Para a concepção de verdade se teve em 1927 a contribuição de Martin Heidegger sobre “alétheia”, a revelação, o desencobrimento da coisa. Que a clareira seja a verdade da floresta é uma assertiva dele bastante repetida no Brasil, mas já sofreu a argumentação contrária, de que a clareira não é a verdade da floresta, e sim a sua exceção, ou, como disse Paul Celan, “diz a verdade quem sombras diz”. O Heidegger II se caracterizou pela insistência na noção de que o direcionar o olhar numa direção serve para não ver outras direções, que o desvelar certos aspectos de algo pode servir para velar outras dimensões, por vezes até mais cruciais.

O ser humano que se conhece na história deveria ser superado por uma espécie melhor. O vírus tem no último ano desenvolvido cepas cada vez mais eficazes e, portanto, mais nocivas. Será o homo sapiens a cepa mais virulenta que a natureza desenvolveu contra si mesma? Por volta de 1800, Friedrich Schlegel viu o homem como um retro-olhar criativo da natureza sobre si mesma. A pergunta hoje é se ele não é antes o agente mais destrutivo que ela desenvolveu. A proposta romântica permitia ver na arte o modelo da ação criativa, mas a pergunta hoje é se a arte pode ainda ser usada para justificar o mau homem da história.

Estamos perplexos diante de arrogantes que se consideram donos da verdade e dos caminhos da história, enquanto vão destruindo o que de melhor se construiu. Eles correspondem, no entanto, à formação do país. O zelo pela qualidade de vida não foi levado em conta quando se espalharam cidades pelo Brasil. Foram construídas em torno de templos, cujas torres apontavam que a vida mais importante seria depois da morte. Assim, a vida real já estava degradada, embora seja a única que as pessoas possam ter.

Regatos e rios foram reduzidos por todo o país a esgotos a céu aberto. A crença na Divina Providência faz com que se pense viver no melhor dos mundos possíveis. O que iluministas como Voltaire e Diderot escreveram a respeito não costuma ser ensinado nas escolas brasileiras. É difícil assumir que se é parte de um povo crédulo, atrasado, tosco.

A diretriz religiosa, posta no Gênesis, “crescei e multiplicai-vos” fez as famílias terem 10, 12 14 e filhos, achando que, quanto mais se multiplicassem, mais estariam cumprindo a vontade de Jeová. Isso gerou cidades em número e tamanho crescentes, o que pressionou a expansão urbana na horizontal e na vertical. O deus não disse, porém, se a multiplicação deveria ser por 100, por 5, por 0,5 ou 0,1.

Quem habita apartamento não tem espaço para muitos filhos. Melhor ter menos filhos e criá-los melhor. O controle de natalidade tornou isso possível e necessário. No futuro, haverá mais espaço para menos gente. Cidades terão de diminuir no tamanho para aumentar a qualidade de vida, que se torna tempo de vida. O tempo de vida média do brasileiro tem, no entanto, caído; a qualidade de vida da maioria, também. Somos fracos e frágeis, náufragos: tentamos, no entanto, nadar, como a querer provar que ainda estamos vivos.

*Flávio R. Kothe é professor titular de estética na Universidade de Brasília. Autor, entre outros livros, de Ensaios de semiótica da cultura (UnB).

 

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