Por MARCOS SILVA*
Comentário sobre o livro recém-lançado organizado por Julian Rodrigues & Fernando Sarti Ferreira
O fascismo acabou em 1945, com as mortes de Benito Mussolini e Adolf Hitler? A experiência fascista foi e é mais que essas pessoas; Hiroíto, Francisco Franco e Oliveira Salazar, dirigentes fascistas, permaneceram no poder depois de 1945, com pequenos retoques. O fascismo engloba relações de poder numa escala social abrangente, interesses econômicos e sociais além de Estado e governo. E sobrevive através de outros personagens e instituições, inclusive fora do aparelho de Estado; inspirou e inspira ditaduras subsequentes, práticas empresariais e costumes. Somente os que lutam por liberdade e justiça impedem que ele recupere e amplie ainda mais sua força.
A coletânea Fascismo ontem e hoje faz parte dessa luta e ajuda a superar a ingênua suposição de fim absoluto de tal horror naquela data. Os colaboradores do volume evidenciam a persistência fascista no ataque a conquistas sociais de homens e mulheres, no campo dos direitos, e convidam os leitores a combaterem isso.
É assim que Julian Rodrigues, na “Apresentação” do livro, fala sobre o neoliberalismo; e indica que, no Brasil, “parte das classes dominantes” (qual parte? A resposta surge em alguns dos textos seguintes) optou pelo golpe contra Dilma Roussef, derrubada por um complô jurídico-legislativo e midiático-militar em 2016. Nesse universo, Jair Bolsonaro emergiu como campeão confiável dos tardo-conservadores, em nome, supostamente, da disputa de valores e da moral, a travar uma guerra sexual contra direitos conquistados por mulheres e LGBTQIA+; contra a vaga designação “ideologia de gênero”, além do ataque a negras e negros; a promover e explorar o pânico moral de setores da sociedade, apoiado por fundamentalismos religiosos; a definir um neofascismo neoliberal. Rodrigues aponta a urgência de quem se opõe a isso se dedicar a “comunicar, organizar, formar” projetos radicalmente alternativos.
Não é ocasional a autoria do texto seguinte, “Fascismo, ditadura militar e legado da escravidão”, pela presidenta Dilma Roussef. Apoiada em escritos de Nicos Poulantzas,[i] Roussef discute a atualidade do fascismo como forma do Estado capitalista, Estado de exceção (tornada regra, segundo Walter Benjamin…),[ii] a englobar um partido ou algo semelhante, milícias e mobilização de massas.
Dilma indica nesse Estado “um aparelho repressivo (…), mobilização permanente das massas populares e um destacamento paramilitar”, articulados “pela força do aparelho estatal” (exército, administração, polícia, magistratura). Há uma conjunção de movimento operário debilitado e ofensiva burguesa, o agrupamento de fração de classe dominante (especialmente, “financeira-industrial, agrícola e de serviços”), mais uma reinante (partidos e milícias) e outra que ocupa a alta administração – “o partido militar”. Dilma Roussef evoca o argumento direitista de “inimigo interno” (setores de esquerda e seus aliados), que justifica um alinhamento cego às políticas estadunidenses, e o ódio a escravos e pobres, argumento registrado no final do comentário, que merece ser ampliado.
Esses dois textos desempenham um papel geral introdutório na publicação.
A Parte I do livro, “Estudos de caso”, inclui, em escala internacional, oito escritos de Fernando Sarti Ferreira e Rosa Rosa Gomes, mais um ensaio de Lincoln Secco.
Em “Contexto”, a transformação do termo “fascismo” num adjetivo genérico é criticada, com a lembrança do surgimento daquele problema no universo de crises do capitalismo, desde o início do século XX, tendência política consolidada nos anos 1920 e 1930, capaz de ser reativada em crises posteriores. A Primeira Guerra Mundial é caracterizada pela disputa entre potências industriais, até designada como Guerra Industrial, concorrência por mercados consumidores daquela produção e fornecedores de matérias primas.
Essa guerra teve por desdobramentos a piora nas condições de vida dos trabalhadores, mas também, em seu desfecho, a primeira experiência duradoura de um Estado socialista (URSS), hostilizado pelos países capitalistas, que intensificaram a repressão contra trabalhadores em seus territórios para evitar que aquilo se reproduzisse noutros lugares, e até incluíram tópicos de direitos trabalhistas no Tratado de Versalhes – acordo de paz que não foi endossado pela principal potência econômica surgida dessa guerra, os EUA. A expansão produtiva nos anos 20 do século XX, naquele universo de concorrência, gerou quedas de preços, falências, chegando à grande crise econômica de 1929. Para melhor explicar os percursos diferenciados de vários países, Ferreira e Gomes analisam algumas experiências nacionais.
Eles começam por “Fascismo na Itália” (pp 41/49), Estado nacional de unificação tardia (1870), com desastrosa participação na Primeira Guerra Mundial (exército despreparado, oposição interna a se engajar nos combates, além de dificuldades econômicas e ressentimentos depois do conflito). Movimentos sociais de trabalhadores italianos alcançaram bons resultados nesse pós-guerra, com a ocupação de fábricas e formação de comissões de operários em sua direção, além de ocupação de terras por camponeses, mas foram duramente combatidos pelo Fascismo em formação.
Benito Mussolini, principal líder fascista italiano, fora militante e dirigente socialista antes, afastando-se desse trajeto; passou a defender a participação italiana na Grande Guerra, patrocinou milícias que combatiam trabalhadores, apoiado pela monarquia, pela Igreja Católica e por grandes empresários do país. O nome de Filipo Tommaso Marinetti, escritor futurista, surge, no livro, nesse contexto de consolidação do Fascismo italiano, mas o fascínio da corrente artística que ele encabeçou por velocidade, técnica e guerra, a silenciar graves problemas sociais do Capitalismo, prefigurara, desde antes, facetas daquela tendência política, ardentemente apoiada pelo poeta e seus companheiros.
A ligação desse fascismo com milícias foi designada aí pela expressão “legalizava a ilegalidade”. O nascimento do Partido Comunista da Itália, em 1921, surgiu no texto como fator que contribuiu para fragilizar as bases de esquerda, divididas com o Partido Socialista, sem mencionar os anarquistas, que rejeitavam a política institucional. Conquistas territoriais (Etiópia, Líbia, Albânia e parcelas de outros países do Mediterrâneo) fortaleceram o fascismo italiano, mas a participação do país na Segunda Guerra Mundial foi novo desastre militar e econômico, deixando parte da península sob o controle alemão até 1945. A invasão de seu território pelas tropas aliadas e a guerrilha nacional antifascista deram cabo dessa experiência no plano de controle estatal.
No caso germânico (“Fascismo na Alemanha: o Nazismo”), outro Estado nacional de unificação tardia (1871), mereceu destaque o grande desenvolvimento industrial, no nível de (ou até mais forte que) Inglaterra e França, com uma elite política autoritária e militarista. O SPD (Partido socialdemocrata alemão) cresceu, a ponto de governar o país no primeiro pós-guerra, mas renunciou a programas efetivamente socialistas, aliou-se a conservadores no combate aos grupos de esquerda. A hiperinflação alemã naquela década de 1920 atingiu gravemente os mais pobres, preservando empresários que vendiam seus produtos em dólares e pagavam salários em marcos muito desvalorizados.
Adolf Hitler e os nazistas em geral foram muito apoiados por setores militares e mesmo do Judiciário, promoveram intensa propaganda, exploraram ressentimentos alemães em relação à derrota na Grande Guerra e diante dos problemas econômicos que a ela se sucederam. Após a grande crise de 1929, os partidos alemães que antes governaram sofreram desmoralização e Hitler, de forma semelhante a Mussolini, chegou ao posto de Chanceler legalmente. Os judeus passaram a ser caracterizados como responsáveis pelo caos alemão, perseguidos e assassinados, junto com eslavos, comunistas, homossexuais, ciganos, deficientes e outros grupos. A derrota militar germânica em 1945 não impediu a continuidade de grupos nazistas no país.
O tópico “Fascismo no Japão” parte da Restauração Meiji (1867/1868), modernização da burocracia estatal com nome de retorno ao passado imperial, marcada por uma industrialização que se apoiava em Estado e setores agrários. Há uma “ocidentalização” técnica do país, associada ao voto censitário e à vontade de domínio imperialista sobre outras áreas da Ásia. Setores privilegiados rejeitavam partidos e defendiam uma ditadura militar, combatiam grupos políticos de esquerda. A Economia de guerra impôs mais sacrifícios aos pobres. Tal como nos exemplos italiano e alemão, esse quadro foi alterado com a dura derrota militar diante dos aliados, precedida por bombardeio atômico sobre um país já subjugado. O Japão entrou na órbita estadunidense, contra a URSS. A proibição de um Exército nacional no país não significou ausência de práticas militarizadas no universo do trabalho, associadas a intensa xenofobia.
“Fascismo em Portugal: o Salazarismo” explora o exemplo de um país que, longe de ser industrializado, dependia economicamente de suas colônias e abrigava forte presença da Igreja Católica em sua cultura política. Há um excesso argumentativo quando se afirma que “O salazarismo (…) destruiu a intelectualidade portuguesa”: apesar de censura e outras formas de repressão, o país abrigou importante produção em artes e pensamento. As guerras contra as colônias contribuíram para o afastamento entre o salazarismo e o Exército português, que teve por desfecho uma acomodação do país aos interesses estadunidenses e das potências europeias.
Já “Fascismo na Espanha: o Franquismo” assinalou a decadência do império colonial desse país no início do século XX, mesclada a movimentos separatistas de ricas regiões espanholas. A Guerra “Civil” de 1936/1939 teve forte caráter internacional, com participação de Alemanha e Itália a apoiar os monarquistas e conservadores, mais as Brigadas Internacionais ao lado de republicanos e revolucionários, foi vencida pela frente antipopular, com a complacência de França e Inglaterra, a prefigurar a Segunda Guerra Mundial. Essa ditadura também esteve muito associada à Igreja Católica, ligada a interesses estadunidenses, no espaço da Guerra Fria e em benefício de empresas multinacionais. As crises econômicas dos anos 1970 tiveram como resposta o fortalecimento de protestos sociais; o franquismo foi mais ou menos ultrapassado, sem julgamentos nem punições de seus crimes, e se mantém como forte referência na política espanhola.
“Fascismo no Brasil: o Integralismo” anuncia, em seu título, dedicar-se a essa importante corrente da direita brasileira, mas consagra seu maior espaço a um panorama nacional republicano até à “Revolução de 1930”, sem mencionar o debate de Edgar De Decca e Carlos Alberto Vesentini sobre a memória do vencedor na construção desse conceito,[iii] a evocar revoltas populares e a caracterizar os integralistas de forma sumária, com o mérito de salientar sua sobrevivência após a dissolução da Ação Integralista Brasileira, inclusive na ditadura de 1964/1985.
O escrito dá pouco destaque à presença, nos quadros da AIB, de influentes intelectuais, como o próprio Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Vinícius de Morais, Hélder Câmara e Luís da Câmara Cascudo, lembrando mais o nome de Miguel Reale. As relações de Getúlio Vargas com o fascismo quase não surgem na análise, que mantém prioritariamente a AIB com esse papel político subsidiário, sem discutir múltiplas apropriações de tradições fascistas no Brasil, embora aponte possibilidades desse teor ao evocar Jair Bolsonaro no final do debate.
O último texto de Ferreira e Gomes, nessa sequência, tem por título “A Ditadura Militar de 1964”, negligenciando, nessa designação preliminar, o poder civil em tal universo, desde o planejamento do golpe até ao gerenciamento ditatorial, expresso na forte presença de economistas, juristas e jornalistas, dentre outros profissionais, além de empresários, em seus altos quadros de direção e embasamento ideológico.
O escrito parte dos debates sobre desenvolvimento econômico depois de 1945, com grupos nacionalistas e outros mais ligados ao capital externo. Os Autores caracterizam o último governo Vargas como eleito “nos braços do povo”, metáfora triunfal que esconde interesses de empresários e outros poderosos naquela eleição. Mencionam o acelerado ritmo de crescimento após tal governo, “democracia racionada”, junto com conspirações de setores sociais dominantes e da classe média contra as reformas então propostas. Nessa perspectiva, elites “mobilizaram forças fascistas para blindar o poder do povo”, como se elas mesmas não fossem fascistas… Mas a análise tem o evidente mérito de assinalar a continuidade fascista no mesmo Exército que participou do combate a Mussolini, através da Força Expedicionária Brasileira, patética contradição!
Lincoln Secco encerra essa primeira etapa da coletânea com o ensaio “Fascismo no Brasil atual: o Bolsonarismo”. Vale salientar, nesse título, o presente como História. Ele parte de uma importante síntese dos textos anteriores: a necessidade de preservar os vínculos de identidade entre fascismo e capitalismo, contraponto virtual a análises de Hannah Arendt, que aproximam criticamente nazismo e stalinismo, mantendo a democracia liberal à margem do debate sobre práticas totalitárias, inclusive no que diz respeito a Racismo/Apartheid nos EEUU (Arendt não é citada por Secco nesse texto).[iv]
O historiador evoca o belicismo capitalista, assinalado por Rosa Luxemburgo, o irracionalismo do capital e o anticomunismo como traços fascistas que o bolsonarismo atualizou desde o início de seu período governamental, o que se observa em passagens da Conferência da Ação Política Conservadora, de outubro de 2019. Em noticiário sobre o evento, Eduardo Bolsonaro surge como sucessor do pai, argumento quase monárquico, versão ainda mais degradada do universo fascista.
Nesse universo, a história surge na forma de “grandes homens e mulheres do passado”: o presente não tem historicidade. E o bolsonarismo apela para o terror cotidiano. Lincoln aponta que esse mundo não recebeu reconhecimento acadêmico, mas houve, em tal espaço, quem elogiasse seu tecido militar, tido como bem preparado.[v] Destaca, ainda, o atendimento ao corporativismo militar e o culto da morte, comparando-o à experiência franquista durante a Guerra “Civil” da Espanha, como se observa no extermínio brasileiro contemporâneo de idosos e idosas, pobres, negros e negras frente à pandemia Covid-19.
A Parte II da obra, “Teoria e debate”, assume um caráter de balanço e conclusões sobre as análises anteriores.
“Teorias do fascismo” de Ferreira e Gomes discute as interpretações de Umberto Eco, João Bernardo e Robert Paxton.[vi] Eco arrola 14 traços de identificação do fascismo: culto da tradição, recusa seletiva da modernidade, ação pela ação, recusa à crítica, racismo, frustração (especialmente, de classes médias), nacionalismo, sentimento nacional de humilhação, guerra permanente, elitismo, culto de heroísmo e morte, machismo e homofobia, homogeneização do povo e linguagem chula e pobre. Nem todos esses elementos se fazem presentes nas diversas experiências fascistas.
João Bernardo destaca particularmente a revolta da ordem, associada ao esmagamento da esquerda, com gradações entre um maior radicalismo (articulação entre milícias, partido e sindicatos) e recorte mais conservador (vínculos entre igreja e exército). Paxton, por fim, entende a plenitude do poder fascista apenas em Itália e Alemanha, indica traços como política de massas, esquerda socialista fracassada em tentativas de revolução, medo do comunismo e crise de instituições liberais. Registra ainda a definição de bodes expiatórios (judeu, negro, estrangeiro, mulheres), articulados pelo anticomunismo, além da legalização de ilegalidades, “metamorfose ambulante de irracionalidades”.
“Origens e estrutura do Fascismo”, de Lincoln Secco, encerra a coletânea como seu tópico mais extenso. Ele salienta o papel da classe média como base de massa do fascismo, sem uma essência, totalitário em harmonia com elites tradicionais, sem pretensões a substituir o capitalismo. Trata-se de técnica política e retórica, vinculadas à luta de classes, astuta capacidade de explorar limites dos adversários, fusão de propaganda e terror e crua expressão do Capitalismo. Sem perder de vista os exemplos clássicos alemão e italiano, Secco evoca faces do bolsonarismo para realçar a continuidade do fascismo no presente.
Resultado de um curso ocorrido na Fundação Perseu Abramo, Fascismo ontem e hoje desempenha bem seu papel divulgador, até ultrapassa esse limite ao polemizar com aqueles que reiteram a periodização dominante sobre um fascismo, que teria se encerrado em 1945, junto com a Segunda Guerra Mundial. E, de quebra, contribui para criticar os fascistas da hora, como Jair Bolsonaro e seus apoiadores, inclusive os metidos a besta.
Para se chegar ao “Fascismo Nunca Mais!”, é preciso manter as armas da crítica em ação.
*Marcos Silva é professor titular do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Ensinar história no século XX: Em busca do tempo entendido (Papirus).
Referência
Julian Rodrigues & Fernando Sarti Ferreira (orgs.). Fascismo ontem e hoje. São Paulo, Fundação Perseu Abramo/Maria Antonia Edições, 2021, 160 págs.
Notas
[i] POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. Tradução de Bethânia Negreiros Barroso. Florianópolis: Enunciado Publicações, 2021 (1ª ed.: 1972).
[ii] BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História”, in: Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp 222/232) (Obras escolhidas – 1) (texto de 1940).
[iii] VESENTINI, Carlos A. e DE DECCA, Edgar. “A revolução do vencedor”. Contraponto. São Paulo: I (2): 60/69, nov 1976.
[iv] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo – Antisemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[v] É o caso da entrevista:
MOTA, Carlos Guilherme. “Os militares de prepararam para o País, os partidos não”. O Estado de São Paulo. São Paulo: 21 jan 2019.
[vi] ECO, Umberto. “O Fascismo eterno”, in: Cinco escritos morais. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2002.
BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo. Porto: Afrontamento, 2003.
PAXTON, Robert. Anatomia do Fascismo. Tradução de Patrícia Zimbres e Paula Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2008.