Por LUIZ RENATO MARTINS*
Comentário sobre o filme “Memoria del Saqueo”
Crises e alternativas
Diante de uma crise, como a atual, o que fazer? Comecemos por diagnosticá-la: trata-se, acaso, de uma crise de governo, cuja resolução requer apenas outros critérios para gastos e investimentos? E em termos políticos, é acaso uma crise superável mediante troca de governo, por eleições diretas – para ficarmos só na melhor das alternativas em cogitação? Ou será que se trata, antes, de uma crise de regime, a exigir rupturas radicais no modo de acumulação e dominação, vale dizer, nas relações de poder entre as classes?
Dois casos de crises precedentes estão à mão. O que têm a ensinar? O primeiro redundou na transição brasileira de 1984, via colégio eleitoral. Foi a perspectiva então no poder que triunfou: o próprio regime teceu sua transição, autorizando a oposição consentida a ganhar, ponto a ponto, a cena.
Só que uma derrota não se tece apenas da força do vencedor, mas também da fraqueza do derrotado. No caso, a debilidade da oposição derrotada residia na via eleitoralista, que abstraía a luta das ruas em favor da aprovação das eleições diretas, confiada às mãos de um congresso títere. Essa crise que, para o Brasil, começou com a explosão da dívida externa, por conta da alta dos juros nos EUA, em 1981-2, ainda não terminou – na verdade, apenas se revigorou: ganhou novos ingredientes e mais força.[i]
Mas suspendo esse flashback por aqui, pois o modo de enfrentamento dessa crise, no Brasil, foi sempre negociado a portas fechadas, e de pouco nos serviria discuti-lo – senão para concluir que aí se tem um modelo unívoco e cabal de preservação dos fundamentos do modo de dominação e de triunfo oligárquico.
Já o segundo caso à mão, o da crise argentina de 2001, tem mais interesse. De fato, essa crise também constituiu na origem um capítulo do processo de dependência, agudizado por oscilações na taxa de juros norte-americana. Mas, no caso argentino, a crise (embora também não superada) traz aspectos mais agudos, contradições não pacificadas e fatores novos que interessam à discussão, a começar pela forte ofensiva popular desencadeada contra o Estado.
Em Buenos Aires, a crise levou à fuga do presidente Fernando de la Rúa (1999-2001, União Cívica Radical-UCR), pelo telhado da Casa Rosada, por meio de helicóptero, recordando outras fugas pelo alto: a da evacuação da embaixada americana em Saigon, em 29-30.04.1975; e a da fuga de Nicolae Ceausescu (1918-1989), que também fora obrigado, dez anos antes, a fugir do palácio de Bucareste pelo telhado, em dezembro de 1989.
Filme contra mito
Além de comportar uma ofensiva popular contra o palácio presidencial – algo inédito do ângulo brasileiro –, o capítulo da crise argentina de 2001 traz, para nós, o benefício de ter resultado numa síntese cinematográfica do processo histórico. Tal combinação é rara, no cinema brasileiro recente, em geral avesso à objetividade épica e à reflexão histórica, pois afeito à crônica ou ao tom pessoal acerca de peculiaridades do mundo em chave pequena. Logo, a crise argentina e as questões narrativas trazidas por Memoria del Saqueo (2002-2004) interessam diretamente, pelo ineditismo, à nossa discussão aqui.[ii]
Começo pelo mito que conforma a crise brasileira já há vários anos e molda sua aparência ante a percepção geral, determinando todo um estado psíquico-social. Este é marcado pelo fim do juízo histórico e pela passividade extensa, ou pela noção de que há muito pouco ou nada a fazer (o máximo, trocar de presidente).
Trata-se, em suma, do mito do “fim da história”. Tal mito tem outra face, que repousa igualmente na passividade extensa e na anulação do juízo histórico: desejar o advento de uma figura redentora, presidente forte ou personalidade-chefe – quando romper ou fazer a história, como ação direta e coletiva, não parece mais possível.
Totem, farsa, fetiche
Sabe-se hoje que o alcance da fúria popular não foi tão longe, no fim das contas, quanto poderia ter ido, na crise argentina, e menos ainda, por aqui (basta pensar no refluxo das jornadas de junho de 2013). Por quê?
Para decifrarmos tal esfinge, convém recordarmos, que o bonapartismo, como definiu Marx no 18 Brumário…,[iii] constitui um escudo contra a crise próprio à burguesia. Além da crença totêmica nos poderes do bonapartismo e de lideranças redentoras, e do mito recente do “fim da história”, outros totens menores perfilam-se em cortejo, atrás desses. Sua reprodução é garantida por uma legião de economistas, jornalistas de conglomerados midiáticos, marqueteiros, técnicos de opinião, gerentes e pregadores da esfera pública, que difundem dogmas e crenças sobre a imutabilidade das relações de dependência e dívida, dos contratos, do imperativo dos ajustes contábeis etc.
Na cena das ruas
Memoria del Saqueo trata de tudo isso.[iv] O filme, realizado em 2002 e 2003 por Pino Solanas, nasceu diretamente – ao modo de uma encomenda social (na acepção do construtivismo russo) – da insurreição popular que tomou as ruas de Buenos Aires em dezembro de 2001.
O filme inovou sob muitos aspectos, que vou comentar. Por outro lado, deixou no ar uma questão crucial e decisiva, sem precisá-la. Questão que, de fato, cresceu com o tempo e nos interpela: quais os limites da fúria popular, ou do espontaneísmo, testemunhado e alegado por Memoria del Saqueo? Mas proponho que essa questão fique para o final, pois, por ora, ainda estamos aquém das preliminares de tal discussão.
Ação direta
Quando a fúria popular explodiu por fim na Argentina, deu-se uma virada: do sujeito individual totêmico para o sujeito coletivo e histórico (“los nadies”, segundo o filme seguinte de Solanas)[v] – sujeito anônimo que passou da inação para a ação direta. Em suma, tal virada traduziu-se publicamente na passagem da submissão à insurreição popular.
Ao referir mutação similar, mas em menor grau, mais difusa e mais tímida, ocorrida no Brasil nas jornadas de junho de 2013, a urbanista Raquel Rolnik afirmou que na rua, os excluídos reapropriavam-se de seu próprio destino “com seus próprios corpos, por meio da ação direta”.[vi]
Assalto ao céu: câmera na mão e travelling
A conjunção entre corpo, rua, ação direta e construção do destino, sintetizados num novo sujeito histórico e discursivo é análoga à da função sintética exercida por um modo de narração cinematográfica, que proponho examinar aqui: o travelling ou a filmagem, no caso, com a câmera na mão – modo que, recordemos, foi central no cinema de Glauber Rocha (1939-81) – e que, em Memoria del Saqueo, opera como pivô do filme.
O travelling de câmera na mão nasce da determinação recíproca entre a ação do corpo, como sujeito histórico-social, logo, da ação direta e do movimento correlato da câmera – neste caso, independente da mediação teatral da representação. Tal travelling exprime assim o primeiro grau da síntese histórico-reflexiva do sujeito narrativo desse filme, que, num patamar ulterior, lançará mão também da montagem, para, como discurso visual e vocal do sujeito político coletivo, apropriar-se do próprio destino, sintetizando reflexão e práxis.
Entrementes, uma observação, à parte: por certo, não penso aqui no travelling em abstrato. Por exemplo, a sequência inicial de Apocalipse Now (1979), de Francis Ford Coppola, toda à base de travellings mostrando um raide genocida de helicópteros, ao som da Cavalgada das Walquírias (1851), de Richard Wagner (1813-83), apresenta um modo de travelling aéreo em tudo oposto ao de Memoria del Saqueo. Feito o contraponto, vejamos agora como o itinerário cinematográfico de Solanas chegou à centralidade do modo de travelling, desenvolvido em Memoria del Saqueo.
Da retroação à volúpia: ação direta
O filme anterior de Solanas, A Nuvem (La Nube, 1998),[vii] enfocava situações de estagnação e derrotismo. A trama reunia – num barrio deteriorado de Buenos Aires, alvejado pela especulação imobiliária – um teatro em ruínas, idosos morrendo, dívidas, crimes, terror policial e penúria.
Nesse quadro cênico, inerente a um período dramático e depressivo da história argentina – próprio aos vaivéns monetários e da transição (1983-89), também orquestrada de cima, como no Brasil e no Chile – o movimento fílmico reverso constituía um modo narrativo recorrente, uma forma-síntese de toda a narração. A fábula de La Nube figurava vidas sufocadas pela dívida, direitos fundamentais aniquilados sob o império da monetização. Inseridos no filme, economistas neoliberais, então convertidos em legisladores e administradores-abutres, preconizavam o dito “raciocínio atuarial”. O movimento reverso traduzia, portanto, o páthos majoritário dos protagonistas, seu desejo de retroceder a outra era, anterior àquela das dívidas e da ocupação neoliberal. Com efeito, o modo narrativo de Solanas nunca pretendeu ser neutro ou alheio à cena e à sorte de suas personagens.
Crítica do discurso dualista
Quando realizou em 1980, no exílio na França, O Olhar dos Outros (Le Regard des Autres)[viii] – um filme sobre pessoas com deficiência, ou sobre a condição de dependência como determinação permanente –, Solanas utilizou uma câmera fixa ou imóvel. Buscava, disse o cineasta, uma “linguagem (…) para captar a intimidade”, afim de que apenas as próprias pessoas com deficiência “testemunhassem sobre si mesmas”. Assim, Solanas realizou, nas suas palavras, “todo o filme em planos fechados e planos médios […], em contraponto com planos gerais – sobre o habitat, a cidade etc…”.[ix]
Isso é útil para destacar uma contraposição ante a narrativa de Memoria del Saqueo. A dualidade discursiva do filme de 1980 – dada pelos planos fechados (por conta da intimidade) e pelos planos gerais, indicando a exclusão da cidade, vista de longe – foi substituída, no filme de 2002, pela síntese do travelling. A dicotomia – entre a intimidade do entrevistado e a autoabstração do realizador – deu lugar à volúpia (insurrecional) da população na rua e ao seu duplo: a câmera – na mão e em travelling – integrada ao movimento insurrecional.
Nas ruas tomadas pelo júbilo, a fraternidade domina e a câmera é parte ativa. Ocupando o lugar da decupagem teatralizada, o travelling exerce a função de pivô, que supera a dualidade do filme de 1980, como também os modos introspectivos, da confissão e da transferência personificada. De fato, a narrativa da insurreição provém, antes de tudo, dos elos estabelecidos entre a câmera e a ofensiva popular.
Ação direta, travelling, cinestesia: uma economia
Desse modo, é a ofensiva popular que incute um ritmo aos travellings, libera os fluxos da memória e desencadeia o processo narrativo do filme. Uma sequência, situada nos momentos iniciais, funciona como um esquema explícito da perspectiva narrativa. A dinâmica de sua construção é exemplar. Assim, para apresentar a resposta espontânea da população ao estado de sítio anunciado pela voz de Fernando de la Rúa (1937-2019), a câmera mostra, em plano frontal, as pessoas saindo das suas casas à noite, com panelas na mão, e confluindo numa onda: o panelaço vem rumo à câmera, que se junta ao fluxo humano, contagiada pela volúpia da torrente.
Mas, de fato, já na primeira sucessão de travellings apresentada pelo filme – como um prelúdio ou abertura operística, entremeado aos letreiros e créditos –, pode-se experimentar um novo sentimento de espaço, que convida a vibrar segundo o ritmo da narração, cujo desenvolvimento adiante dará a tônica do filme.
Em 1968, La Hora de los Hornos, o filme de Pino Solanas e Octavio Getino sobre o golpe militar de 1966, destacava a divisa, emprestada de Frantz Fanon (1925-61): “Cada espectador é um covarde ou um traidor”.[x] Disjunção imperativa provavelmente derivada da polarização própria aos vários “sessenta e oitos” latino-americanos – em geral divididos entre a perplexidade e a luta armada. Agora, em Memoria del Saqueo, tal dicotomia foi substituída por um apelo direto à sensação cinestésica vinculada ao “assalto ao céu”. Sua forma elementar é o travelling.
Economia política das sensações
Tais travellings se desenvolvem a partir dos modos e práticas das lutas populares. Eles especificam os objetos, preparam e servem à luta. Na luta, o olhar deve ser incisivo e pronto à ação. Os desempregados, conhecidos como piqueteros, desenvolveram como tática de luta “los cortes de ruta” (bloqueios de estradas e ruas), hoje adotados em muitos países.
O modo cinematográfico análogo em Memoria del Saqueo é o travelling em crescendo dramático, que culmina, em corolário, num plano fechado, equivalente ao corpo a corpo, ápice do assalto ao poder mediante a ação direta, consoante o protagonismo popular.
Intifada de imagens
A queda dos totens, desencadeada pela ação direta, reverte o sofrimento da espoliação evocada, conduzindo não apenas ao desfecho da ofensiva, mas também à regeneração discursiva e à reconstrução do sujeito político coletivo. Porém, o que pode um filme? O que pode uma intifada? Ademais, uma que só lança imagens, em lugar de pedras, contra o efeito de fetiche dos grandes totens do capitalismo monopolista?
Da escuta à montagem
O primeiro aspecto de um travelling é tátil e similar a uma frase abrupta: o travelling parece irromper de um estado de inação e afasia. O que gera tal mudança?
Uma outra função, aparentemente inversa ao aspecto cinemático do travelling, lhe é indissociável e, de fato, participa ativamente do ponto de partida de Solanas: a escuta. A seu modo, a entrevista se traduz num travelling-áudio, pois seu princípio ativo, o da escuta, é o do movimento rumo ao outro. Há, pois, uma reciprocidade dialética entre as duas funções (escuta e movimento), que encontra sua síntese no travelling, o qual se exerce de modo combinado na mão e na rua.
O que mais intervém na combinação dialética das funções que constituem a narração? Os poderes de rememorar, sintetizar e narrar provêm da atividade da escuta, que, no caso, vem combinada à ação direta, ligada a um apelo de si ou do outro. Tal é a volúpia, a celebração de Eros – ou da reunião de um povo em insurreição.
Arqueologia
Quais são os outros elementos da economia fílmica de Memoria del Saqueo? Uma das marcas distintivas dos travellings, no caso, são os longos planos-sequência que exploram o sítio arqueológico do poder, aventurando-se pelos vastos salões e corredores vazios.
Será que tais planos, retraçando mimeticamente os passos de sujeitos da trama antipopular, atendem a um tabu ou mandamento? Afinal, é possível refazer passos, sem se achar por eles enfeitiçado? Ou será que o travelling funciona, no caso, como a rememoração catártica e redentora de um pesadelo superado?
Lembram-se acaso os cinéfilos dos percursos preciosistas pelos luxuosos labirintos da memória, do …Marienbad (1961), de Alain Resnais (1922-2014) – ou seja, daqueles vai-vens abstratamente evocados, como numa escolástica da narração? Aqui, ao contrário, em Memoria del Saqueo, a memória detalha as cenografias e designa concretamente os autores dos acordos tenebrosos em favor dos capitais monopolistas. Há imputações precisas de saque.
A narração desenvolve então um processo de objetivação, ao mesmo tempo crítico e catártico. Ela delineia um fio de Ariadne que afirma a soberania popular e libera o espectador do labirinto da submissão.
Mas o que ocorre para que o olhar, aqui, não se torne presa contemplativa, enfeitiçada pela função de fascinação dos ambientes palacianos? Como pode o olhar da câmera – em modo travelling – entrar no teatro labiríntico do poder, sem ser por ele capturado? Com efeito, o contrário é o que ocorre com frequência: líderes sindicais ou representantes de trabalhadores que terminam cooptados – e o peronismo, como outros, dispõe de uma frota de exemplos nesse sentido.
O fio de Ariadne ou constructo crítico, para o discurso fílmico, aqui, não ser tragado pelo teatro labiríntico do poder é a montagem – a instância reflexiva e ordenadora situada para além da imediatez dos travellings. A montagem, embora à distância da filmagem, opera no filme em sintonia com o leitmotiv do travelling – mas não só. Ela, então, combinará muitas vezes travellings de sentidos diversos ou opostos, potencializando de tal modo e repentinamente a sensação cinestésica; combinará igualmente a disparidade dos travellings através das salas vazias dos palácios, com extratos sonoros de outros momentos.
Eros e Ariane
Mas como conectar o que é diverso – às vezes oposto? Como fazer para que Ariadne (razão crítica do lógos labiríntico) jogue os dados de Eros, que propõe ligações, sem atenuar diferenças ou oposições? Enquanto em La Hora de los Hornos, por exemplo, as colisões ou ligações irônicas entre o som e a imagem acentuavam sensivelmente os contrastes cujas significações já tinham sido previamente dadas e designadas por outros meios (intertítulos ou o discurso narrativo indireto), agora mais do que constituir um novo tropo retórico, os choques – não suprimidos nas articulações – exercem uma função estrutural e combinam-se num novo patamar. Trazem um valor decisivo, tanto para a clarificação histórica quanto para a catarse e o resgate mnêmico.
De fato, há agora uma demanda dialética. Não uma retomada tal qual de dois inimigos objetivos e bem definidos – “colonizados” e “colonizadores”, para simplificar –, como no filme de 1968, mas, antes, uma narração que necessita articular formas opostas, inversões e máscaras, observando-as de dentro para fora e vice-versa.
De fato, a anamnese deve enfrentar uma farsa, nesse caso, pois seu objeto combina não o esquema binário da opressão violenta, mas a democracia, a persuasão e a fraude. Com efeito, o complô da pilhagem inerente à financerização, que é o objeto visado pelo filme, implicou formas e escalas massivas de consentimento, logo, o envolvimento da psique coletiva como um todo.
Labirinto único? Infelicidade ou peculiaridade argentina? Não. Mandatos políticos amplamente consentidos, articulados a políticas criminais, muito mais do que acidentes frequentes, são fatos correntes na era moderna; que o diga o 18 Brumário…, ao focar a ascensão de Luis Bonaparte como um caso paradigmático. Logo – assim como em vários países hoje submetidos a confiscos (dos sistemas de saúde e previdência, da legislação trabalhista, etc.) em função de déficits imaginarios e políticas de austeridade –, no caso da Argentina de 2001, o enigma culminava na injunção de uma megadívida odiosa, nem contratada, nem aplicada em benefício daqueles supostamente designados como devedores.
De todo modo, o problema ora em questão não aparecia como relação entre opostos objetivados. Ou seja, só se tornava plausível e compreensível, a partir da consideração das facetas psiquicamente funcionais dos aspectos totêmicos do Estado, como a máscara da representação eleitoral e os efeitos de transferência ligados ao Estado; efeitos de prodígio, que articulavam – no caso, mediante a contração de neoliberalismo e peronismo, sob a presidência de Menem (1989-99) – o consentimento coletivo da população, mesmo em condições as mais odiosas, à espoliação do presente e do futuro da maioria. Mas como pode a anamnese enfrentar a trama espessa de símbolos e afetos que protege o Estado dependente e sua clientela? Não há traição fácil de decifrar, até que o sortilégio se rompa. Tal é o percurso da épica antitotêmica de Memoria del Saqueo.
Do palácio-labirinto ao piquete
Os travellings no interior dos palácios simulam dialeticamente a experiência visual dos fraudadores e embusteiros a serviço dos monopólios. Assim, os movimentos da percepção tátil diante dos tapetes, das cortinas e do mobiliário tomam corpo visualmente, tornando-se sensações do teatro do poder – para virem a ser contrapostos, enquanto tal, aos elementos, como os sons, que provêm dos atos de ação direta, nas ruas.
Desse modo, nuances, signos e detalhes que reproduzem o processo totêmico são aqui resgatados e combinados com os sons anti-totêmicos da ofensiva popular. Os elementos inusitados, assim capturados e recombinados como opostos, conferem às rememorações o sentido de uma apropriação dialética, como também um sabor antitotêmico e catártico, evocando uma vitória crítica que não é meramente abstrata, mas antes direta e objetivada, obtida como que num corpo a corpo.
A combinação das sensações do palácio, com outras que consistem em signos emanados do embate das classes, produz uma confrontação direta equivalente à sintese dialética entre, de um lado, traços de particularismo sensível descobertos numa tomada do poder e, de outro, a universalidade da perspectiva dos trabalhadores, aguçada por enfrentamentos nas ruas.
A síntese resultante reflete diretamente o leitmotiv da ofensiva dos trabalhadores, que nutre a anamnese e constitui as sequências narrativas a partir de conjuntos de antíteses objetivadas. Estas trazem precisão mnêmica afiada pelos embates e, desde aí, uma funcionalidade narrativa depurada.
Decerto, o “espontaneísmo” não pode ser a pedra angular para toda luta, e La Hora de los Hornos assinalou, desde 1968, muitos de seus limites – por exemplo, para resistir a um golpe militar, como o de 1955 na Argentina (ou, acrescentemos o de 1964, no Brasil, e o de 1973, no Chile). Não obstante, em certas circunstâncias, a ação direta goza do efeito surpresa, constitui arma ofensiva ou modo repentino de resistência, com grande poder de negatividade. Sua energia surpreende, interrompe, suspende e faz explodir o curso do tempo contínuo, administrado pelo capital. A ação direta, mesmo individual, como o caso emblemático de Edward Snowden demonstrou, mostrou-se capaz, nos dias atuais, de vencer barreiras formidáveis como a da vigilância eletrônica planetária.
Do ponto de vista estético, as descobertas provocadas pela ação direta foram tão decisivas para Solanas que elas estruturaram, do ângulo da práxis poética e política, os seus cinco filmes seguintes – construídos como “encomendas sociais”, sempre articuladas a lutas organizadas –, que levantaram os danos e a resistência à devastação neoliberal na Argentina.[xi]
Lições decisivas foram assim postas tanto sob o ângulo do cinema quanto do juízo histórico. Com base no modo da ação direta, o cinema argentino conseguiu superar a “cultura da derrota”, e a mitologia do “fim da história” – endemias, que dominam, mesmo nos casos mais líricos ou de resistência crítica, os cinemas brasileiro e chileno contemporâneos.
No plano político, a ação direta conduziu na Argentina à ocupação de numerosas fábricas e empresas de serviços, sob autogestão dos trabalhadores – que passaram a funcionar como laboratórios concretos e experiências embrionárias de democracia direta e poder revolucionário.[xii] Além disso, o terror de Estado foi, na Argentina, mais do que em qualquer outro país, paradigmaticamente posto à luz e submetido aos tribunais.
A chave dessa diferença consistiu no exercício, na Argentina, da ação direta como ato de soberania política do povo – prerrogativa maior da formação social e princípio permanente da democracia nutrida pela expressão direta da classe trabalhadora.[xiii]
Em síntese, a linha divisória posta pela ação direta distingue de modo crucial o processo argentino de dois outros, ambos nascidos diretamente do modelo do pacto de la Moncloa e frequentemente apresentados como exemplos de transições democráticas bem sucedidas: os casos do Brasil e do Chile. Na Espanha, o pacto de la Moncloa conservou a herança do regime franquista, restaurou a monarquia e preservou os fundamentos de classe do regime nascido do putsch (1937) da Falange contra a República. Congelou a apuração dos crimes fascistas e o processo histórico no seu todo. Muito tempo após a fraude de la Moncloa, espanhóis, brasileiros e chilenos continuam a padecer a farsa da conciliação, do acobertamento das práticas de tortura e genocídio no passado, e a amargar sua vigência no presente. Padecem de instituições políticas fictícias, e vazias, de serviços de Estado excludentes e amplamente privatizados.
Enfim, às práticas de ação direta, exemplificadas pela classe trabalhadora argentina, devemos lições de reconstrução permanente da história contra o “princípio de realidade” da “cultura da derrota” – ou contra aquilo que Walter Benjamin nomeou, diante dos totalitarismos do seu tempo, de “indolência do coração” – indolência hoje verificada diante do “totalitarismo neoliberal”.
Em 2020
A primeira versão deste trabalho, datada de 2013, concluía-se nesse ponto, com a apresentação da sequência final do filme, focando um desfile, com jeito de bloco carnavalesco, ritmado por uma bateria de operários em trajes fabris, serpenteando em júbilo pelo que parecia ser uma das vias laterais da Av. 9 de Julio.
Tal conclusão se devia, quanto ao que me toca, ao embalo da expectativa de que as jornadas de junho de 2013, no Brasil, tivessem desdobramento efetivo. O refluxo subsequente, assim como o malogro ou esvaziamento similar, de tantos atos de fúria popular e irrupções espontâneas na Tunísia, no Egito, na Grécia, na Turquia, na Espanha, na França, nos EUA exigem que enfrentemos, em novos termos, a discussão da organização e da transição revolucionárias.
Dialética e metafísica
Por isso, dessa vez, vou concluir, trazendo para o debate, algumas notas de Trotsky sobre a França, redigidas em março de 1935, ou seja, um ano depois do ato das forças fascistas em Paris (06.02.1934), e um ano antes do governo do Front Populaire (05.1936-04.1938) e da onda de greves operárias, que obtiveram naquela altura conquistas históricas: semana de 40 horas, férias pagas e convenções coletivas de trabalho, entre outras.
Não obstante, pouco depois, as cartas na mesa viraram outras, como bem demonstra o acolhedor aperto de mão com o qual o Marechal Petain, à frente do regime de Vichy, recebeu, em 24.10.1940, na estação ferroviária de Montoire, Hitler e Ribentropp, ministro de Relações Exteriores nazi. Quem trocou o baralho?
Num tópico, sob a irônica denominação “Dialética e metafísica”, escrito, como disse, meses antes do Front Populaire vir à luz, Trotski adverte e disserta, de início, como um pacato mestre-escola: “O pensamento marxista é dialético: considera todos os fenômenos em seu desenvolvimento, em sua passagem de um estado a outro. O pensamento do pequeno burguês conservador é metafísico: suas concepções são imóveis e imutáveis; entre os fenômenos existem paredes impermeáveis. A oposição absoluta entre uma situação revolucionária e uma situação não-revolucionária é um exemplo clássico do pensamento metafísico, segundo a fórmula: o que existe, existe; o que não existe, não existe, e o resto é coisa de feitiçaria”.
No processo histórico existem situações estáveis absolutamente não revolucionárias. Existem ainda situações notoriamente revolucionárias. Há também situações contrarrevolucionárias (é preciso não esquecê-lo!). Mas o que existe sobretudo em nossa época de capitalismo em decomposição são situações intermediárias, transitórias: entre uma situação não-revolucionária e uma situação pré-revolucionária, entre uma situação pré-revolucionária e uma situação revolucionária…, ou contrarrevolucionária. São precisamente estes estados transitórios que têm uma importância decisiva do ponto de vista da estratégia política.
O que diríamos de um artista que não distinguisse mais que duas cores extremas no espectro? Que é daltônico ou meio cego, e que deve renunciar ao pincel (…).
Uma situação revolucionária se forma pela ação recíproca de fatores objetivos e subjetivos. Se o partido do proletariado se mostra incapaz de analisar a tempo as tendências da situação pré-revolucionária e de intervir ativamente em seu desenvolvimento, em lugar de uma situação revolucionária surgirá, inevitavelmente, uma situação contrarrevolucionária. É precisamente diante deste perigo que se encontra o proletariado francês atualmente (…) [28.03. 1935]” [xiv].
* Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/ HMBS, 2019).
Revisão e assistência de pesquisa: Gustavo Motta.
Referências
Fernando “Pino” Solanas, La Hora de los Hornos, 1968, p/b, 35 mm, 260’. Para detalhes, ver <https://web.archive.org/web/20090201010611/http://pinosolanas.com/la_hora_info.htm>.
_________, La Nube, 1998, cor, 35 mm, 114’, Argentina/França/Alemanha/Itália, rodado em Buenos Aires. Para detalhes, ver <https://web.archive.org/web/20090125191912/http://www.pinosolanas.com/la_dignidad_info.htm>.
_________, Memoria del Saqueo, 2004, cor, 35 mm, 120’, Argentina/França/Suíça; rodado em 2002, nas regiões de Buenos Aires, Córdoba, Rosario, Tucumán, Corrientes e Neuquén. Para detalhes sobre a produção, ver <https://web.archive.org/web/20090116134846/http://pinosolanas.com/memoria_info.htm>.
_________, La Dignidad de los Nadies, 2005, cor, 35 mm, 120’, Argentina/Brasil/Suíça; rodado na Grande Buenos Aires, na região central da Argentina e na Patagônia. Para detalhes, ver <https://web.archive.org/web/20090125191912/http://www.pinosolanas.com/la_dignidad_info.htm>.
_________, Argentina Latente, 2007, cor, vídeo digital HD transposto para 35mm, 100’, Argentina/Espanha/França, rodado na Patagônia e nas regiões central e norte da Argentina. Para detalhes, ver <https://web.archive.org/web/20090410080420/http://www.pinosolanas.com/argentina_latente_info.htm>.
_________, La Próxima Estación: Historia y Reconstrucción de los Ferrocarriles, 2008, cor, digital/35mm, 115’, Argentina/França, rodado na Grande Buenos Aires. Para detalhes, ver <https://web.archive.org/web/20090314062437/http://www.pinosolanas.com/proxima_estacion_info.htm>.
_________, Tierra Sublevada I/ Oro Impuro, 2009, cor, digital/35mm, 92’, Argentina/Venezuela, rodado nas províncias de Tucumán, Salta, La Rioja, Catamarca, San Juan, Santa Fé e Buenos Aires. Para detalhes, ver <https://web.archive.org/web/20110816081440/http://www.pinosolanas.com/tierra_sublevada_info.htm>.
_________, Tierra sublevada II/ Oro Negro, 2010, cor, digital/35mm, 107’, Argentina/Venezuela (link não disponível).
Notas
[i] Para uma análise da transição brasileira como farsa e decalque do celebrado “Pacto de la Moncloa”, ver em A Terra é Redonda, L. R. Martins, “A guerra civil declarada”, 21.05.2020; idem, “A guerra continua”, 26.05.2020, disponíveis em <https://aterraeredonda.com.br/a-guerra-civil-declarada/> e <https://aterraeredonda.com.br/aviso-de-incendio/>, respectivamente.
[ii] Trabalho apresentado, sob o título “As muitas faces da austeridade: totem, farsa e fetiche”, em 03.07.2017, no Seminário Internacional O Trabalho em Ação e Discussão no Cinema e nas Artes Pós-68 (Cid. Universitária, Univ. de São Paulo, 03-07.07.2017), org. PPG em Teoria Literária e Literatura Comparada/ Programa de Estudos Literários em Inglês/ Centro de Estudos DESFORMAS-USP.
[iii] Karl MARX, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, trans. Terrell Carver, in M. COWLING and J. MARTIN (ed. by), Marx´s “Eighteenth Brumaire”/ (Post)Modern Interpretations, London, Pluto Press, 2002, pp. 19-109; idem, O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, trad. revista por Leandro Konder, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
[iv] Ver F. Solanas, Memoria del Saqueo, 2004, cor, 35 mm, 120’, Argentina/França/Suíça; rodado em 2001-2002, nas regiões de Buenos Aires, Córdoba, Rosario, Tucumán, Corrientes e Neuquén. Para detalhes, ver ao final.
[v] Ver F. Solanas, La Dignidad de los Nadies, 2005, cor, 35 mm, 120’, Argentina/Brasil/Suíça; rodado na Grande Buenos Aires, na região central da Argentina e na Patagônia. Para detalhes, ver ao final.
[vi] “Ocupando as ruas, reorganizando os espaços e reapropriando suas formas (…), aqueles que são alijados do poder de decisão sobre seu destino tomam esse destino com seu próprio corpo, por meio da ação direta”. Cf. Raquel Rolnik, “As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações”, in Vv.Aa., Cidades Rebeldes: Passe Livre e as Manifestações que Tomaram as Ruas do Brasil, São Paulo, Boitempo / Carta Maior, 2013, p. 10.
[vii] Ver F. Solanas, La Nube, 1998, cor, 35 mm, 114’, Argentina/França/Alemanha/Itália, rodado em Buenos Aires. Para detalhes, ver ao final.
[viii] Ver F. Solanas, La Mirada de los Otros, 1980, cor, 16 mm, 100’, França. Para detalhes, ver ao final.
[x] Ver F. Solanas, La Hora de los Hornos, 1968, p/b, 35 mm, 260’. Para detalhes, ver ao final.
[xi] Para enumerar o conjunto, além dos dois filmes já referidos (Memoria del Saqueo, 2004; La Dignidad de los Nadies, 2005), constam: Argentina Latente, 2007; La Próxima Estación: Historia y Reconstrucción de los Ferrocarriles, 2008; Tierra Sublevada I/ Oro Impuro, 2009; e Tierra sublevada II/ Oro Negro, 2010. Para mais detalhes, ver no final.
[xii] Para um estudo recente, ver Ricardo Festi, Fábrica Sem Patrão: quando a Classe Trabalhadora Desafia o Capital, Marília, Lutas Anticapital, 2020.
[xiii] Quando este trabalho foi preparado inicialmente, em 2013, para a conferência anual da associação Historical Materialism, na Universidade de Londres, como também depois, no momento de sua reelaboração no primeiro semestre de 2017, não se entreviam ainda, salvo lapso meu, sinais efetivos da eclosão do movimento chileno de outubro de 2019.
[xiv] Cf. Leon Trotsky, « Uma vez mais, aonde vai a França ?”, in idem, Aonde Vai a França?, trad. s/n, preparação e revisão Gilson Dantas e Luciane Pereira, Brasília, Kiron, 2012, pp. 132-3. O texto, redigido (sem firma identificada, dada a condição de exilado) entre 21 e 26 de março de 1935, foi publicado em La Vérité [28.03.1935, órgão hebdomadário da Ligue Communiste (Oposition de Gauche)], como fruto do trabalho de uma comissão do Grupo bolchevique-leninista, à época membro do SFIO [Secção Francesa da Internacional Operária], uma das raízes do atual PS.