Por EBERVAL GADELHA FIGUEIREDO JR.*
É no mínimo estranho que os discursos de apologia a Israel recorram aos ideais do humanismo, quando esse país submete os palestinos a condições desumanas e degradantes
Ao fim da primeira semana se outubro de 2023, o mundo foi surpreendido por um grande e repentino ataque do Hamas a Israel. As políticas desastrosas do regime sionista-likudista fizeram pessoas comuns pagarem pelos erros e pela má-fé dos grandes e, desde então, teve início o que só pode ser descrito como o primeiro genocídio televisionado da história. O status de homo sacer geopolítico do povo palestino tornou-se evidente no teor das comunicações oficiais e da cobertura do conflito pela mídia, em um espetáculo grotesco que revelou as inconsistências e contradições daqueles que se identificam como humanistas liberais, apologistas e sacerdotes da rules-based international order encabeçada pelo Ocidente contemporâneo.
O humanismo liberal é uma posição filosófica que vem sendo duramente criticada desde pelo menos a primeira metade do século XIX, por autores como Max Stirner, que se refere a ele como “liberalismo humano” (Stirner, 2004, p. 102). O discurso que se seguiu ao recente ataque do Hamas mostra que tais críticas continuam pertinentes e atuais. Apesar de seu aspecto meigo e bem-intencionado, a retórica humanista frequentemente serve de arma poderosa para que atores políticos consigam defender veladamente seus interesses escusos. Nem mesmo o sacrossanto Estado Democrático de Direito™ é poupado disso (Mattei; Nader, 2008).
Dois pensadores inaugurais dessa influente tendência foram os jovens hegelianos Bruno Bauer e, é claro, Ludwig Feuerbach. Curiosamente, Bauer também inaugurou o uso da expressão Judenfrage (“questão judaica”) na Alemanha (Dawidowicz, 1975, pp. 21-23). Naquele contexto, no entanto, a “questão judaica” ainda nada tinha a ver com políticas racialistas, como ocorreria no século seguinte. Tratava-se de um impasse entre o universal e o particular. O antissemitismo filosófico de Bauer e Feuerbach derivava do seguinte raciocínio: como hegelianos, “progressistas” por excelência, esses pensadores compartilhavam de uma concepção linear da história, dividida em sucessivas fases de desenvolvimento conceitual. Assim, na metanarrativa dialética de Feuerbach, o humanismo nada mais é senão conclusão lógica do cristianismo que estava destinado a suplantar, que por sua vez havia sido conclusão lógica do judaísmo. Dada essa situação, assim como criacionistas que não entendem o darwinismo sempre perguntam “por que ainda existem macacos?”, os humanistas inevitavelmente pegaram-se perguntando: “por que ainda existem judeus?”
Em outras palavras, para Feuerbach e seus correligionários (entre os quais esteve, a certa altura, Karl Marx), o judaísmo enquanto coletivo etnorreligioso representava uma pedra no sapato do projeto humanista romântico. A humanidade abstrata deveria superar as amarras da religião e reconhecer-se como único verdadeiro Deus de si mesma. A esse Homem-Deus universal caberia precedência sobre todas as formas particulares de identidade. Mas essa era uma concessão que os judeus (à exceção dos assimilacionistas e dos proponentes do Haskala, o Iluminismo Judaico) não estavam dispostos a fazer. A continuidade anacrônica dessa religião atavística era uma verdadeira incógnita. A “virtude” míope e tribalista de Ahavat Yisrael impedia a extensão do amor ao próximo para além dos confins da comunidade judaica, e, em sua rejeição da natureza dual de Cristo como homem e Deus ao mesmo tempo, o judaísmo mostrou-se incapaz de sequer conceber a noção de que qualquer homem, concreto ou abstrato, pudesse ser Deus (Stepelevich, 2014, p. 49).
Na leitura feuerbachiana, o Deus de Israel nada mais representaria do que o “egoísmo étnico” desse povo, completamente alheio à dimensão espiritual da existência (Feuerbach, p. 113). Assim, o destino do judaísmo, bem como do cristianismo e das demais religiões, não poderia ser nada além da extinção frente a um implacável ateísmo programático (Bauer, 1958, pp. 123-124). É uma postura inconsistente. Se nada do que é humano pode ser alheio aos humanistas, por que tanta insistência em rejeitar a religião, um dos mais impactantes fenômenos humanos ao longo da história?
Seja como for, é no mínimo estranho que os discursos de apologia a Israel recorram aos ideais do humanismo. Nesses discursos, o país é apresentado como um farol de humanidade e civilização em meio ao mar de barbarismo e obscurantismo do mundo islâmico médio-oriental. Na aparente contramão disso, os aliados e apoiadores de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel e cidadão honorário do Estado de Rondônia (Vasconcelos, 2023), adotam uma postura prática e discursiva extremamente agressiva e vitriólica (vide as muitas provas apresentadas pela África do Sul em Haia). A população palestina encontra-se rotineiramente sujeita à desumanização. Conforme o discurso oficial do regime israelense, com o qual amplos setores da sociedade parecem concordar, todos os palestinos seriam unmenschen, monstros inumanos, devendo ser tratados como tal. Que Israel, pretenso representante de todos os judeus do planeta, se comporte dessa maneira, certamente faria Feuerbach e Bauer sentirem-se vindicados por algumas de suas opiniões.
No entanto, o desvio desse discurso em relação ao humanismo liberal é apenas aparente. Nesse paradigma filosófico, eis que “Humanidade” não é uma categoria apenas ontológica, mas acima de tudo ético-performática. Afinal, a Judenfrage de Feuerbach resumiu-se ao simples fato de que os judeus, apesar de serem obviamente humanos, não performavam “Humanidade”. Dois séculos depois, pela mesma razão, o status humano dos palestinos está sendo revogado (como se tal coisa fosse possível). É a mesma lógica do velho bordão repetido ad nauseam no Brasil da década passada: “direitos humanos para humanos direitos”. Sempre que alguém dizia isso, logo chegava uma legião de progressistas bem-intencionados afirmando tratar-se de uma frase paradoxal, contrária ao próprio conceito de direitos humanos. O que eles não percebiam era que, em sua ignorância, os defensores dos “direitos humanos para humanos direitos” expuseram uma contradição presente no cerne do humanismo liberal desde o início.
No fim das contas, não é Israel, já condenado na corte da opinião pública, que está sendo julgado em Haia, mas a própria eficácia e legitimidade da corte e do direito penal internacional enquanto instituição. No banco dos réus jazem os ideais de pensadores como Kant, Bauer e Feuerbach, suas generosas promessas de irmandade humana universal e de paz perpétua. Enquanto isso tudo permanecer estritamente no plano das ideias, valerá a velha máxima de Proudhon e Schmitt: quem fala em nome da “Humanidade” tenta te enganar.
*Eberval Gadelha Figueiredo Jr. é bacharel na Faculdade de Direito da USP.
Referências
BAUER, Bruno. The Jewish Problem. Tradução de Helen Lederer. Cincinatti: Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion, 1958.
DAWIDOWICZ, Lucy S. The War Against the Jews: 1933-1945. Nova Iorque: Rolt, Rinehart and Winston, 1975.
FEUERBACH, Ludwig. The Essence of Christianity. Nova Iorque: Harper Brothers, 1957.
MATTEI, Ugo; NADER, Laura. Pilhagem: quando o Estado de Direito é ilegal. Tradução de Jefferson Luis Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
STEPELEVICH, Lawrence. Max Stirner and the Jewish Question. In: Modern Judaism – A Journal of Jewish Ideas and Experience, Vol. 34, 1, pp. 42–59. Oxford: Oxford University Press, 2014.
STIRNER, Max. O Único e sua Propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa: Antígona, 2004.
VASCONCELOS, Renato. O Globo: Benjamin Netanyahu recebe título de cidadão honorário de Rondônia em meio à guerra com o Hamas. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/google/amp/mundo/noticia/2023/10/17/benjamin-netanyahu-recebe-titulo-de-cidadao-honorario-de-rondonia-em-meio-a-guerra-com-o-hamas.ghtml (acesso em 18 de janeiro de 2024).
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