Fragmentos – XX

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por AIRTON PASCHOA*

Cinco peças curtas

[bico do corvo]

Faço saber, a quantos interessar possa, que passei a vida ouvindo-o dizer que estava no bico do corvo… Não que não fosse saudável ou esperasse a morte iminente; era simplesmente o bordão que o livrava dos compromissos, dos corriqueiros aos domingueiros, como visitar o irmão que morava perto; simplesmente o modo de declinar de todo convite; de dizer que não podia; que quem sabe outro dia. Talvez intuía que o corvo podia bicá-lo a qualquer instante e em qualquer lugar, e nessas horas era melhor estar em casa, sabe Deus, não sei. Sei apenas que à curva negativa, saborosa em sua crueza local, e decerto cultivada pelo velho tronco caipira desde tempos imemoriais, melhor dizendo, coloniais, à negativa curvilínea, preciosa, e que levei uma vida pra compreender, correspondia o sonso sorriso da descendência… e da condescendência, que importava? pois o fato é que não dava a menor bola, des’que não o amolassem, o deixassem em paz, isto é, em casa. E lá ficava ele, à espera do corvo, ao passo que a mulher saía de bico, primeiro com as crianças, depois sozinha, quando entraram a crescer e fazer coro com o pai. Isso não me exime da culpa de tê-lo visto pouco, quando realmente andava no bico do corvo, mas tenho pra mim que entendia como ninguém o primogênito, nascido também atacado ao pé do solar sombrio e que não tem feito senão cismar no que cismava ele entre uma bicada e outra, ele que não conheceu homens nem deuses e guardou unicamente pra si o fogo que porventura o animava.

 

A bezerra de ouro

Pensando na morte da bezerra…? largava de passagem a pergunta reticente, sempre que nos via cismando a um canto. Só bem mais tarde, já adulto e estudado, pude estimar o que de impacto podia representar o funesto advento na vida de um sitiante pobre, como o fora o Pai e o Pai do Pai e o Pai — dera o fora, enfim, apenas com a mala e o anátema no lombo. De sitiante a sitiado não tirou a sorte grande na cidade grande, igual gazeteava a rima fácil, e nada pôde nos deixar, pra desgosto seu, exceto a cisma cansada e a expressão poética, tão perene quase quanto o bronze do Poeta. Pois, pensando bem, não fiz outra coisa na vida a não ser pensar na morte da morte da bezerra.

 

Geminado

Gemia baixinho… intermitente… horas a fio. Que foi? não tá passando bem? tá doendo alguma coisa? E o velho replicava ao meio entendedor quebrando o pulso no ar perto da orelha, como a afastar pernilongo. E tá gemendo por quê? — Porque é bom.

Quem dera, do fundo do coração, repetir alto e bom som: toda vida condensa uma verdade, — implícita ou explícita, manifesta ou inconfessa verdade. Sobre justificá-la, salvava o belo lugar-comum que desencavou esta terra. Mas não tenho idade pra sofrer desmentido. Era maluco o gemebundo.

Em todo caso, vezo ou vício, tive de reconhecer, obra do tempo maroto, que não há conforto igual gemer baixinho. Não evoca poesia a canção de dor sem dor, em baixo contínuo? Foi o mais próximo que chegou do filho, hoje velho e geminado maníaco.

 

Contramão

À Taisa

Enorme, grossa, cascuda, capaz de tapar (e sobrar) a cara do filho assombrada. Soube mais tarde que se tratava da mão de portinari — sem valor algum, porém, sobremodo real, irreal. Foi o único contato que teve com arte. Crescendo o menino, a mão desistiu de assombrar. Obra do tempo, podia alegar, cuja demão tende a decorar, mas encaro a minha, miúda como as letras, e só me cabe chorá-la, incapaz que é de cobrir o rosto.

 

[jazimigo]

Faço saber, a quantos interessar possa, que mudo de mim que nem todo mundo. Mudo de mim mas persigo escrevendo e sei que não vou muito longe, miseravelmente, fico ali atacado ao calabouço-e-boca do velho tronco de tortura, ciente que tal gesto é do senhor meu genitor, que essoutro pertence à ilustríssima senhora que me pariu, que aqueloutro distingue tal dos digníssimos entes queridos, mal ditas incógnitas, X e Y cromo somos da mesma ditadura genética.

Faço saber, a quem interessar praga, que todo jazigo, desgostemos ou não, é familiar.

*Airton Paschoa é escritor, autor, entre outros livros, de Ver Navios (e-galáxia, 2021, 2.ª edição, revista).

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A biblioteca de Ignacio de Loyola Brandão
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Um território de encantamento, um santuário do verbo, onde o tempo se dobra sobre si mesmo, permitindo que vozes de séculos distintos conversem como velhos amigos
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O fenômeno Donald Trump
Por DANIEL AARÃO REIS: Donald Trump 2 e seus propósitos “iliberais” devem ser denunciados com a maior ênfase. Se a política de potência se afirmar como princípio nas relações internacionais será funesto para o mundo e para o Brasil em particular
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES