Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ & TAINÁ REIS*
Além estimular a volta de pesquisadores, o Brasil deveria cuidar das universidades públicas e dos, aproximadamente, 63 mil doutores desempregados
A produção de ciência no Brasil acontece, via de regra, nas Universidades públicas. É de lá onde saem os quadros da produção científica, isto é, aqueles que vão desvendar vírus em momentos de pandemia, aqueles que vão descobrir como efetivar a exploração de recursos naturais (de forma “sustentável” ou não), aqueles que vão elaborar teorias sobre a realidade e as relações sociais, aqueles que vão poder atuar na elaboração de políticas públicas porque têm o conhecimento técnico-científico para tanto.
Das universidades saem esses e tantos outros. Portanto, parece óbvio que o investimento na Universidade pública, na graduação e na pós-graduação, deveria ser priorizado pela União. Contudo, não foi o que assistimos no país nos últimos dez anos mais ou menos.
Principalmente a partir de 2016, com o golpe de Estado, a educação e a ciência sofreram significativos cortes orçamentários, cenário que se agravou a partir de 2018. Ora, os pós-graduandos dependem de bolsas para o financiamento de suas pesquisas (que na verdade não são suas, porque a produção de conhecimento é do interesse da nação). Os graduandos dependem de bolsas para ingressar na pós-graduação. A educação e a ciência dependem de financiamento público para existirem.
Como consequência, a sucessiva redução nesse financiamento promoveu o efeito chamado de “fuga dos cérebros”, saída de pesquisadores qualificados do país para a colocação profissional ou continuidade de pesquisa no exterior. Recentemente, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação estimou que estão fora do Brasil 35 mil pesquisadores.
Entretanto, muitos cérebros ficaram o país, sem bolsa, sem investimento e sem emprego. Tal situação se agravou ao ponto de hoje termos uma estimativa de 63 mil doutores desempregados no Brasil. Além desse montante de gente muito qualificada sem trabalho, ainda temos a situação das universidades públicas. Dezenas de universidades federais se encontram em greve, demandando a recomposição do orçamento e reajuste salarial. Está claro que o cenário para a educação superior no país é crítico.
Em paralelo a esse cenário, o atual governo anunciou o Programa de Atração e Fixação de Pesquisadores para Inovação e Desenvolvimento Científico – Conhecimento Brasil, que busca repatriar pesquisadores que saíram para fazer pós-graduação fora do Brasil e não voltaram. Como um dos dez programas prioritários do Plano Anual de Investimentos 2023 do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), o Conhecimento Brasil concederá bolsas mensais de R$13 mil para doutores e R$10 mil para mestres que retornem ao país.[i]
E os 63 mil desempregados? Também queremos saber. Foram esses que permaneceram no país sob os mandos e desmandos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Será que não pode haver uma política pública de absorção desses doutores? O que o governo oferece para os que foram embora é uma bolsa de um valor acima ao salário de um professor recém-ingresso na carreira docente em universidades federais!
Acima de uma bolsa de pós-doutorado! E mais: auxílio-instalação, auxílio deslocamento, recurso para contratação de Seguro ou Plano de Saúde para o bolsista e seu núcleo familiar, auxílio previdência para que o bolsista recolha ao INSS o equivalente à sua contribuição como autônomo,[ii] recursos em capital e custeio para compra de equipamentos e manutenção do projeto no valor de até R$ 400 mil ou visitas a centros de excelência no exterior no valor de até R$ 120 mil.
Para os doutores empregados nas Universidades federais como docentes, restou a greve e a acusação de sermos inimigos da pátria. Lutamos contra a privatização do MEC (Ministério da Educação), a colônia do grupo Leman/Musk. Fazemos greve por recursos humanos essenciais, por direitos fundamentais, e nós é que somos ofendidos e atacados por outros docentes – como inimigos da pátria.
Para as “mentes brilhantes, a solução é repatriar cérebros que fugirem da luta. Enquanto nós permanecemos e lutamos. Por isso, esse é um projeto de país muito vira lata. O Brasil é pardo, sem dúvida. Mas, acima de tudo, por cima de todos, o Brasil é parvo. Antes fôssemos um simpático caramelo.
Imaginemos um diálogo assim, entre um de nós e um vizinho curioso, meio desconfiado do mundo real:
“Falei pro vizinho que, se estivesse começando hoje, nunca seguiria a carreira acadêmica. Qualquer ex-aluno tem muito mais respeito na advocacia, do que eu na universidade pública. Aí o caramelo do vizinho falou assim: ‘É mesmo, olha só que coisa doida, construir 100 institutos federais, sem cuidar dos que existem’. Depois, o caramelo disse que iria consultar o pica-pau, pra saber que lógica é essa. O pica-pau, que o caramelo mencionou, é o cara de pau que criou 100 institutos, tendo abandonado os outros. A natureza brasileira é hilária, mas é perversa. Por isso prefere-se o caramelo, exatamente, porque não tem síndrome de vira-latas. Não há caramelo no mundo que aguente esse desaforo”.
Esse projeto condena a ciência e a pesquisa no Brasil, feita por brasileiros e brasileiras que vivem no Brasil, nos coloca em segundo plano, como cientistas de segunda categoria. Certamente, essa é a pior percepção de quem pensa a ciência no país ou, dizendo de outro modo, não é cientista ou é e se pôs a serviço de alguma empreitada nada republicana, pautada em bases ilógicas, irracionais, desproporcionais.
Sim, muitos princípios são violados neste projeto, a começar pelos princípios da isonomia e da proporcionalidade – o que não é nada razoável, então, o princípio da razoabilidade também é ferido no ato da autoria dessa ideia nefasta de alguma “mente brilhante”…
*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), autor, entre outros livros, de Bolsonarismo. Alguns Aspectos Político-Jurídico e Psicossociais (APGIQ). [https://amzn.to/4aBmwH6]
*Tainá Reis é doutora em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Notas
[i] Essas bolsas terão duração de 48 meses (prorrogáveis por mais doze). A pergunta que não quer calar é: e depois? Esses cérebros repatriados se somarão aos doutores desempregados?
[ii] É preciso lembrar que os pesquisadores no Brasil não são reconhecidos como trabalhadores (eles “só estudam”, afinal), por isso não tem recolhimento algum ao INSS, o que fatalmente adia ainda mais a perspectiva da aposentadoria.
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