Por Valerio Arcary*
Estamos diante do paradoxo do “bombeiro louco”, ou seja, aquele que desesperado com o incêndio, e acossado pela escassez de água, decide apagá-lo com gasolina
A cegueira irracional da fração burguesa que apoia Bolsonaro diante da catástrofe sanitária que se aproxima é perturbadora. Como é possível diminuir o impacto destrutivo de, pelo menos, dezenas de milhares de mortos em algumas semanas? Como é possível desconsiderar a crise social que o colapso iminente do sistema hospitalar irá provocar? Como é possível subestimar o perigo político que representa uma liderança neofascista que ameaça as liberdades democráticas com um projeto bonapartista de autogolpe?
Estamos diante do paradoxo do “bombeiro louco”, ou seja, aquele que desesperado com o incêndio, e acossado pela escassez de água, decide apagá-lo com gasolina. Ao defenderem seus interesses mais imediatos sacrificam, levianamente, seus interesses históricos. E ameaçam arrastar toda a sociedade para um abismo de decadência.
Alguns poderiam argumentar que não seria muito distinto da miopia das frações burguesas que nos EUA, ou até mesmo na Europa, desconsideram, há décadas, o perigo apocalíptico colocado pelo aquecimento global. A diferença é que uma ameaça em décadas é diferente de um perigo real e imediato em poucos meses. A escala faz a diferença. Como explicar esta inércia política reacionária tão obtusa? Acontece que estas perigosas apostas estratégicas, em perspectiva histórica, não são tão incomuns.
Ninguém pode, evidentemente, prever o que vai acontecer no mundo pós-pandemia. Estamos diante de uma calamidade sanitária sem precedentes, nos últimos cem anos. Ela já transbordou em uma catástrofe econômica só comparável com a depressão dos anos trinta. Tudo isso no contexto da disputa geopolítica entre EUA e China, a mais séria desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Não fosse o bastante, depois de trinta anos de agravamento constante da desigualdade social, em escala mundial. A destruição está sendo, e deverá continuar sendo muito grande, sem que tenhamos ideia da escala da regressão que virá.
Não é possível construir um modelo teórico útil para fazer o cálculo de probabilidades do que virá, minimamente, realista, com tantas variáveis incertas. Qualquer exercício intelectual sério não é possível. Seria ccc arriscar a construção de cenários. Sabemos, somente, que as consequências serão muito graves. Mas podemos antecipar que no Brasil vai ser pior. Será a mais grave depressão da nossa história e, talvez, uma regressão histórica.
Vejamos um exemplo interessante de como Marx estava atento ao tema das regressões históricas: “O exemplo dos Fenícios mostra-nos até que ponto, as forças produtivas desenvolvidas mesmo com um comércio relativamente pouco vasto, são susceptíveis de uma destruição total, pois as suas invenções desapareceram na sua maior parte, pelo fato de a nação ser eliminada do comércio e conquistada por Alexandre, o que provocou a sua decadência… a duração das forças produtivas adquiridas só é assegurada quando o comércio adquire uma extensão mundial que tem por base a grande indústria e quando todas as nações são arrastadas para a luta da concorrência” (MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã)
O tema merece atenção, em uma situação como a que vivemos, em que se admite que o Brasil está diante de mais uma década “perdida”. A generalização do uso deste conceito de décadas perdidas, agora estendeu-se ao perigo de um “século perdido” considerando a tendência de estagnação de longa duração do capitalismo contemporâneo. O que nos convida a pensar sobre outros processos de regressão histórica.
É sugestivo o exemplo do Império Romano que, embora tivesse disponível um imenso volume de conhecimentos desprezou boa parte das aplicações tecnológicas que representariam um importante aumento de produtividade, em função da abundância de mão de obra escrava disponível. Sobre a tendência ao crescimento das forças produtivas, que seria uma das leis históricas reveladas por Marx, existe uma interessante discussão teórica.
Vejamos como é apresentada, por Hobsbawm, no ensaio “Marx e a História”: “Há uma tendência evolutiva inevitável das forças produtivas materiais da sociedade que, dessa forma entram em contradição com as relações produtivas existentes e suas expressões superestruturais relativamente inflexíveis, que, então, precisam recuar”.
Hobsbawn desenvolve aqui a ideia da “lei da tendência intrínseca” como um dos movimentos mais gerais das forças motrizes que impulsionam a história. A operação desta tendência é uma das mais importantes conclusões de Marx, mas se presta a perigosas interpretações. O processo de impulso das forças produtivas é muito desigual: períodos de rápida aceleração são sucedidos por fases de estagnação prolongada. Diferentes modos de produção estimularam ou bloquearam, de maneira muito desigual, o impulso evolutivo das forças produtivas.
A discussão teórica sobre o progresso é indissociável da polêmica sobre a tendência “intrínseca”. O principal impulso para o desenvolvimento das forças produtivos é a luta da humanidade pela satisfação de suas necessidades. A ampliação das necessidades é o próprio conteúdo do progresso, e a substância da história.
O impulso de crescimento das forças produtivas foi, contudo, não só desigual ao longo da história, mas se manifestou em proporções muito diferentes. Em algumas civilizações, foi mais intensamente procurado, e em outras bloqueado. Porque assim como opera a tendencia à ampliação e complexificação das necessidades materiais e culturais, manifestam-se, também, contratendencias de inércia política e social, os mais variados fatores culturais, religiosos e ideológicos que podem impedir a expansão do progresso.
Seria mesmo necessário identificar o problema da “excepção” de civilizações orientais, como a Índia e, mais complexo, a China, onde ela pareceria quase não se manifestar, pela permanência de longos períodos seculares de estagnação e inércia.
Na verdade, a questão oriental é mais complexa. Braudel sustenta em Civilização material, Economia e Capitalismo, que uma comparação entre a China e a Europa nos séculos XIII ou XIV, dificilmente, teria permitido prever a superioridade e maior dinâmica do Ocidente sobre o Oriente, senão o contrário: os fluxos, invariavelmente, desfavoráveis de metais preciosos do Ocidente para o Oriente, uma sangria, verdadeiramente, hemorrágica, durante séculos, seriam uma das evidências do maior desenvolvimento das civilizações orientais, assim como a assombrosa diferença de expansão demográfica.
Aparentemente, a conquista dos oceanos, e em função deste domínio, o papel hegemônico das potências europeias no mercado mundial, teria, a partir daí, decidido a crescente desigualdade, e, finalmente, a posterior colonização do Oriente. Por quê a China teria abandonado as rotas comerciais que explorava em Malaca, na Índia até Ormuz e o Golfo Pérsico, garantindo para os seus juncos um intenso tráfico comercial? Por quê teria renunciado às prometedoras perspectivas comerciais com o Islã e a Índia? Segundo Braudel, o encerramento da China sobre si mesma nos séculos seguintes, se explica pela necessidade prioritária de defesa das suas fronteiras no norte contra as vagas de invasão, um flagelo milenar que oprimiu o Império do Meio, de forma crônica, e levou à construção, da maior obra de defesa da história pré-capitalista, a Grande Muralha.
A prioridade defensiva do Império, a preservação da unidade territorial, teria inibido as tendências comerciais que se ampliavam com a prosperidade das rotas comerciais com o Islã e com a Índia, e bloqueado uma possibilidade evolutiva distinta. A aposta na segurança teria interiorizado o Império, e a unidade estatal, ao contrário da Europa, pulverizada em inúmeros Estados, com impulso a e processos diferentes, teria sido um fator de bloqueio ao desenvolvimento da expansão comercial e a disputa do controle dos oceanos.
Polêmica, mas muita sugestiva, esta hipótese nos permite analisar, por todo um ângulo diferente a desigualdade do desenvolvimento entre Ocidente e Oriente nos últimos quinhentos anos. A principal conclusão de Braudel, de natureza política, é que a permanência da unidade política estatal na China, destruída na Europa com o desmoronamento do Império Romano, teria sido o obstáculo para uma dinâmica de expansão comercial pelo Índico, que teria permitido uma disputa de hegemonia pelo mercado mundial em formação.
Mas a questão central poderia ser explicitada, talvez, de outra forma: antes da constituição de um mercado mundial, o desenvolvimento desigual teria tal primazia que a humanidade, em seus diferentes polos civilizatórios teria convivido, durante milênios, com recorrentes períodos de estagnação prolongada, ou até regressões.
Este tortuoso, multifacetado, irregular, e, sobretudo, desigual processo de desenvolvimento histórico, não anula a conclusão, de que na longa duração, o desenvolvimento das forças produtivas, tem na ciência e na tecnologia, o mais importante fator de impulso histórico.
Mas, este impulso nunca foi exterior ao processo da luta de classes: a usura, a ganância e a cobiça, ou seja, tudo aquilo que faz a vulgaridade e a mesquinhez do capitalismo, definem o “espírito” de uma época, e são parte inseparável das suas convulsões internas e dos seus limites.
Ou seja, existem na história contra-fatores sociais e políticos que podem anular a tendência ao crescimento das forças produtivas. O impulso de progresso não é constante. Os graus de liberdade exercidos pela vontade humana vêm aumentando com a crescente importância da política.
Só essa nova centralidade da política é que nos permite explicar que, por certos períodos, ainda que, historicamente, efêmeros, as classes, não somente os indivíduos, mas as classes, podem agir contra o que seriam os seus interesses mais imediatos. Entre os seus interesses imediatos e os seus interesses mais estratégicos, as classes sociais em luta, enfrentam dilemas, dramaticamente, difíceis, e hesitam, e nem sempre encontram uma solução simples e uma escolha fácil.
Por isso, as mediações subjetivas são tão importantes e tão complexas. Não é incomum, todavia, que análises históricas se esqueçam do ABC do marxismo que explica que, em última análise, é porque agem, na maioria das circunstâncias, apesar dos seus interesses, ou até, contra os seus interesses, que as classes subalternas suportam, ou toleram as condições brutais de exploração a que estão submetidas, sem se rebelar, ou adiando a rebelião. Não o fazem, é claro, porque ignorem quais são os seus interesses, mas porque duvidam se suas próprias forças.
Mais complexo, porém, tão fascinante, é o fenômeno inverso. Inúmeros exemplos poderiam ser lembrados, de classes dominantes que, pelas mais diferentes razões, agiram contra os seus interesses históricos, enquanto classe, porque se defendiam a si mesmos. Isso ocorre quando, por conservadorismo, se recusam a aceitar as mais elementares mudanças que a realidade impõe, e insistem em preservar privilégios que se tornaram obsoletos e intoleráveis: a nobreza francesa e o regime absolutista no final do XVIII, a aristocracia russa e o czarismo no início do XX, são os dois mais célebres exemplos.
Há também muitas situações híbridas pela terrível incerteza das opções, como o exemplo da revolta da pequena nobreza em Portugal diante da revolução de 1383, quando a maioria da aristocracia defendia a adesão à reivindicação de Castela pelo trono, a solução medieval mais favorável, e a rebelião do Mestre de Avis, tendo ao seu lado o Condestável Nuno Alvarez Pereira, e o apoio da burguesia mercadora de Lisboa, permitiu a defesa da independência.
Finalmente, o signo pode ser oposto também: o desajuste e não correspondência entre ação e interesse de classe, não pela cegueira reacionária diante da transformação, mas pela lucidez da antecipação. Esse seria o exemplo das classes burguesas na Europa que aceitaram, sob a pressão de um poderoso movimento operário nos anos do pós-guerra, os fundos públicos, e as respectivas políticas fiscais extremamente severas, especialmente na Escandinávia, que explicam o pacto social “fordista”.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de As esquinas perigosas da história (Xamã).