Por LÍVIA PERES MILANI, LUCIANA WIETCHIKOSKI & ANA PENIDO*
Por que os militares “americanos” estão treinando na nossa Amazônia?
Anunciado com surpresa pela mídia brasileira em geral, entre os dias 6 e 16 de novembro, 294 militares do Exército dos Estados Unidos (EUA) passaram por Belém, Macapá e Oiapoque para um exercício conjunto de treinamento com 1200 homólogos brasileiros. Esta atividade faz parte de uma série denominada Combined Operation and Rotation Exercise (CORE), que visa à realização de exercícios conjuntos anuais até 2028, alternando o território brasileiro e estadunidense como sede. Mas afinal, o que eles querem por aqui? O que representa este episódio para a política de defesa brasileira?
Cooperação ou hegemonia?
As interações entre os militares dos EUA e do Brasil remetem especialmente ao período anterior à Segunda Guerra Mundial. Desde então, é comum o envio de oficiais brasileiros para cursos de curta duração e especialização naquele país, assim como a participação brasileira em exercícios multilaterais regionais organizados pelos Estados Unidos. Apesar de ambos exércitos destacarem o caráter cooperativo destas atividades, na realidade, elas integram uma dinâmica intrinsicamente assimétrica.
As parcerias e programas militares estadunidenses correspondem, corretamente, aos seus interesses nacionais e aos parâmetros estabelecidos em sua documentação normativa de defesa. As iniciativas de caráter educacional por eles levadas a cabo na América Latina são planejadas e coordenadas pelo Comando Sul. Em outras palavras, as atividades que envolvem financiamento e participação estadunidense na região refletem diretamente os problemas, ameaças e soluções de defesa elaborados pelos EUA.
Aquele país descreve o episódio que originou este texto como um exercício “planejado e dirigido pelo Exército dos Estados Unidos, patrocinado pelo Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM), nos níveis operacional e tático com o objetivo de aumentar a interoperabilidade das forças de EUA e Brasil”. A interoperabilidade – aumento da capacidade para a atuação de forma conjunta – remete a uma noção de horizontalidade que não se expressa nem mesmo no texto, pois fica explícita a direção estadunidense, cabendo aos brasileiros a implementação. Na prática, introduzindo e treinando militares de outras nações a partir de uma perspectiva específica, em essência, os EUA exercem, por meio do fortalecimento dos consensos estratégico, tático e operacional, a sua hegemonia regional. São, portanto, relações verticais, com caráter de subordinação.
A escolha do território onde o exercício foi promovido também reflete interesses prioritários dos Estados Unidos. Para o Departamento de Defesa, treinar na Amazônia é uma importante oportunidade para adquirir conhecimento do terreno e para ampliar suas capacidades de combate em selva.
Esse interesse estadunidense não é novo, mas se intensificou nestes últimos anos, sobretudo no contexto da expressão regional, predominantemente econômica, das disputas globais entre EUA e China; na ampliação das relações entre Venezuela e Rússia, inclusive de natureza militar; e com o aumento da relevância dos temas relacionados a clima e meio-ambiente a partir do governo de Joe Biden.
Como resposta ao percebido desafio a sua hegemonia, os EUA têm mobilizado notadamente o instrumento militar. O Departamento de Defesa – e o Comando Sul, a ele subordinado – tem se destacado na formulação e na discussão pública sobre a estratégia do país para a região, como exemplificado pelo aumento das aparições públicas da comandante Laura Richardson na mídia e nos think tanks. Garantir o acesso aos recursos naturais fundamentais na atualidade é prioridade máxima no Comando Sul. Em entrevista ao think tank CSIS, a comandante indica que a América Latina é de grande importância para a segurança nacional dos Estados Unidos não apenas em razão da proximidade geopolítica, mas também dos recursos naturais.
A general cita como exemplos as terras raras, o lítio, o cobre, o ouro e outros minérios presentes na região. Muitos dos recursos estão na região amazônica compartilhada por oito países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Venezuela e Suriname. Entre seus planos de ação para garantir a influência na região, a general destaca a importância das “parcerias” entre os militares. De acordo com ela, conferências e exercícios são relevantes, sendo que a cooperação em segurança é o principal instrumento para alavancar a presença regional.
A política externa brasileira e as interações internacionais em defesa
Para analisar o significado do exercício bilateral conjunto é necessário entender também a perspectiva brasileira. Cabe pontuar que a aproximação entre os militares dos dois países ocorre em um momento de retomada de uma política externa que se pretende assertiva. Desde a posse de Lula para o terceiro mandato presidencial existe uma orientação geral voltada para diversificação de parcerias e aumento das relações com o Sul global.
Não há, necessariamente, afastamento dos Estados Unidos, como mostra a escolha do país como terceiro destino presidencial – após visitas a Argentina e ao Uruguai – e primeira viagem para além da América do Sul. O governo atual, contudo, espera gerar maior equilíbrio nas relações com parceiros tradicionais e com parceiros mais recentes, como é o caso dos países que compõem os BRICs: Rússia, China, Índia e África do Sul.
O objetivo de equilibrar as relações com potências do status quo e potências ascendentes, no entanto, enfrenta dificuldades no campo da Defesa. Há empecilhos para superar a dependência que existe em relação aos EUA, de onde vêm grande parte do equipamento, do treinamento, e da própria doutrina. As iniciativas de aproximação com a China são discretas, o que reflete a tendência dos militares brasileiros em preferir a cooperação com a potência já tradicional, e a já destacada ênfase dos EUA em usar o instrumento militar com fator para a manutenção da hegemonia regional.
A necessidade de interação com potências emergentes não parece internalizada ou desejada pelas forças armadas brasileiras. Apesar do convite extemporâneo aos chineses para a participação em evento oferecido pelo exército que contava com a presença de oficiais de diversas nacionalidades, e ida de oficiais brasileiros à China para tratar do tema, as interações em Defesa ainda são esparsas em comparação ao que ocorre com os EUA e seus parceiros da OTAN na Europa.
Pensar nossa soberania
A mudança da configuração de forças no âmbito global tem efeitos práticos e evidentes para o Brasil, cujo mais relevante foi a firmação da China como principal parceiro comercial, além de parceiro político importante para a consecução de objetivos comuns no âmbito internacional através dos BRICs +. Este desenvolvimento político-econômico contrasta, no entanto, com a permanência e intensificação de velhas dependências no âmbito da Defesa, exatamente em um momento no qual os Estados Unidos buscam instrumentalizar este campo para reafirmar sua hegemonia.
Para a consecução de uma política externa pautada na busca pela autonomia e na construção de relações de cooperação com o Sul global, o Palácio do Planalto precisa ir além do Itamaraty, transformando os marcos da política de defesa, o que só é possível com uma efetiva condução civil sobre o Ministério da Defesa.
*Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado no Programa San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP), autora de Argentina e o Brasil frente aos Estados Unidos (2003 – 2015): entre a autonomia e a subordinação (Appris), 2012. [https://amzn.to/47S7Vpv]
*Luciana Wietchikoski é pesquisadora de pós-doutorado na UFSC.
*Ana Penido é pesquisadora de pós-doutorado no Programa San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP), autora de Ninguém regula a América (Expressão Popular), 2021. [https://amzn.to/47SiEA7]
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