Irmãos Koch, think tanks e coletivos juvenis

Blanca Alaníz, serie Casa Juan O´Gorman, Fotografía digital, Ciudad de México, 2018.
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Por KATYA BRAGHINI*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Carolina Rieger

Carolina Rieger conduziu sua investigação com uma inquietação bastante tensa e recente. O que seria a pós-verdade? O livro discute isso mostrando as ideias circulantes e diz que a “pós-verdade” surge como derivativo de “pós-moderno”. É um termo globalizado que se apresenta centro de um tipo de pensamento político produzido por uma miríade intelectual que se interessa por estética, estudos sociais e estudos culturais. Diante da história, se colocam em um tempo posterior à modernidade e, segundo consta, são mais progressistas, passam a ideia de superação de um tempo e, por conseguinte, de suas representações. A sua primeira e grande imagem é a negação dos ideais Iluministas e a qualquer modelo social amparado por grandes categorias de análise, tais como “classe”, “civilização”, “estado”. Partem à defesa de um mundo vivido, dia após dia, apelando à experiência imediata dos sujeitos, indivíduos que devem ser exaltados isoladamente, já que as grandes categorias analíticas, inventadas, jogam sobre a coletividade, às promessas de um mundo melhor que, segundo essa visão, nunca chega.

Restou aos sujeitos, a sua individualidade, seus próprios corpos, e sua linguagem. No início do século XXI nos vemos diante do tal derivativo da pós-modernidade, a pós-verdade, um substantivo que ganhou muita relevância política, e que nos apresenta uma realidade pouco interessada em fatos objetivos, apegado às emoções, celebrando as crenças pessoais, preso em uma espécie de fanatismo comunicacional, em que o mais importante não é testar a veracidade das informações, atestá-la ou contestá-la.  A verdade neste presente momento teria importância secundária. Isso é a “pós-verdade”.

Agora imaginem, apenas imaginem, se essa ideia se transforma em uma arma intelectual para fins políticos?

Mas, Carolina, tendo constatado a estreita relação da expressão “pós-verdade” e o seu produto de comunicação mais famoso, as fake news, com o golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff em 2016, vindo principalmente da boca e dos atos de jovens ativistas de direita, alguns com atitudes francamente reacionárias, passou a outra inquietação: de onde surgiu essa juventude com tanta ânsia de moralização e por quais canais ela falava? À época, tudo parecia muito confuso. A explicação de que esse grupo de jovens seria apenas mais um dos grupos constituidores daquele movimento obscuro, as tais “Jornadas de Junho”, composto por defensores e negacionistas da Ditadura Militar; membros de classe média insatisfeitos com o valor do dólar; halterofilistas anticorrupção; e donzelas bebendo champagne da rua, não parecia aceitável. Principalmente porque essa tal juventude alimentava o movimento em prol do golpe de maneira acentuada e progressiva, com um acúmulo de desinformações que ecoavam por novas mídias (sites, blogs, vídeos, memes etc.).

Foi desse segundo incômodo que surgiu a possibilidade de estudar não as ideias que circulavam sobre a dita pós-verdade, mas, ao contrário, rastrear os agentes que a produziam, pois o fenômeno social interessante que acontecia sob nossos olhos naquele momento era a rápida circulação de mentiras colidindo com informações verdadeiras, não se importando se a mentira fosse convocada como o cerne do senso comum. Vamos lembrar que o senso comum é “comum”, não simplesmente porque seja “banal”, mas porque é um conhecimento compartilhado entre os sujeitos da relação social. O senso comum é um conhecimento que depende de uma interação, portanto, é interessante pensar tanto nos significados produzidos e compartilhados no momento de sua confecção, quanto no método de produção desses significados: quem os produz, motivados pelo quê?

Se a proposta originalmente era uma pergunta para a Filosofia, se voltou à História. Foi assim o encontro entre a autora e a história dos Irmãos Koch e suas relações com a educação e a juventude.

***

O livro Democracy in Chains: The Deep History of the Radical Right’s Stealth Plan for America da historiadora Nancy MacLean conta a história de um amplo relacionamento entre o economista James McGill Buchanan e o bilionário estadunidense Charles Koch. A autora nos diz que a Universidade George Mason, em Virgínia, local onde Buchanan trabalhava, recebeu vultosas somas de dinheiro para o desenvolvimento de uma ideia que, ao final, foi entendida como um projeto de supressão da democracia em favor dos milionários. E não se trata de teoria da conspiração, muito embora, seus criadores não se incomodem que ela seja circulada dessa forma. Este livro mostra o relacionamento de magnatas com intelectuais promovendo uma redefinição política nos Estados Unidos, e que ela pudesse dar total liberdade aos proprietários de fazerem uso de sua propriedade, sem que haja qualquer limitação da parte de qualquer instituição.

Esse talvez seja o núcleo da doutrina do “libertarianismo”. A história sobre a supremacia do indivíduo, o único que, por si mesmo, poderia criar impedimentos para o seu próprio sucesso. Segundo essa teoria, conhecida por “teoria da escolha pública”, as pessoas muito ricas são a prova cabal da preeminência da vontade, ou seja, ter o desejo de desejar ganhar maiores bônus por seus méritos. Por essa linha de pensamento, o estado de bem estar-social é uma espécie de assalto às conquistas individuais, e associações como sindicatos, clubes de concernidos, são a maior representação do fracasso alheio agindo de maneira discriminatória para com aqueles que obtiveram sucesso.

Não se trata de uma conspiração, porque é fato histórico, principalmente quando sabemos o envolvimento direto de Buchanan, amparado por ideias de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, com o Gal. Augusto Pinochet. Essa relação resultou na já conhecida arrancada neoliberal que fez do Chile um laboratório de privatizações, atestando que esse governo ditatorial abriu caminho para facilitar ações programáticas, tais como, austeridade econômica, desregulamentação trabalhista, punição aos movimentos sociais etc. No ano de 2020 o que vimos no Chile foi um levante generalizado, de todo um país, contra esse mesmo plano iniciado nos anos 1970 na América Latina, para depois, se fazer sentir na Inglaterra (Margaret Tatcher) e Estados Unidos (Ronald Reagan).

Longe de parecer uma continuidade do Liberalismo, as vestes novas desse Neoliberalismo, e essa vertente libertarianista, não tem por prerrogativa seguir o contrato social estabelecido entre a sociedade e o Estado. Neste caso, trata-se de ação conservadora não apenas contrariada, mas desresponsabilizada, com o seu oposto social, a quem normalmente chamamos de povo.

Pensemos o Brasil. É possível definir o neoconservadorismo brasileiro como um movimento político e social que estabeleceu acima de tudo o ideário privatista, ao defender o predomínio do poder privado tanto corporativo, quanto familiar, na ordem social. Detecta-se claramente a ideia de estado punitivo, principalmente no plano da moralidade e, ao mesmo tempo, o desmonte do estado de bem-estar social, alterando-o à meritocracia individualista, pilar da tal racionalidade neoliberal (Lacerda, 2017)[i].   O que se observa é um complexo relacionamento de agentes que pauta uma agenda tanto neoliberal, quanto de evangelismo da direita cristã, cujos vasos comunicantes, já consolidados, em uma ofensiva de caráter transnacional, se estabeleceu como a nova direita no Brasil.

Essa fusão de interesses, algumas vezes desconexos, enxerga no ensino público, por um lado, um ambiente de teses para processos de privatização dos mais variados tipos e, por outro, um ambiente que, por sua atual configuração, deve ser “destruído” pois segue pautas voltadas à diversidade social. E “destruído” parece ser bola palavra, diante do bordão de Jair Bolsonaro: “vamos acabar com tudo isso aí”. Independentemente do ponto, a democracia não necessariamente é um elemento fundante.

Por um lado, a escola passa a ser espaço de livre mercado e accountability, dando ênfase às ideias de empreendedorismo e competição; traçado por um movimento mundial de reforma educacional transformando-a em instituição rentável, pelas designações de instituições já conhecidas, e outras, nem tanto, tais como: a Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Banco Mundial, consultorias financeiras, empresas de novas tecnologias de informação e comunicação, fundações diversas, lobbies empresariais, think tanks intelectuais e operativas, e diferentes aparelhos que pregam a dita doutrina do libertarianismo atrelada à educação. Todas enxergam a escola pública, não apenas como veículo de ganhos, mas, a entendem como tecnologia fundante da subjetividade neoliberal.

Já o movimento da direita cristã, em um esforço político de restabelecer um controle religioso e parental na formação dos indivíduos, posicionados como sujeitos proeminentes da ação partidária nas casas legislativas, parte em defesa da família patriarcal e o criacionismo. Tomou a educação como campo de batalha, em contrariedade às pautas de gênero, orientação sexual, racial, no plano das políticas públicas, da cultura escolar, da composição de materiais didáticos.  Interferiram no Plano Nacional da Educação, no Estatuto da Família opuseram-se ao “Programa Escola sem Homofobia”, impulsionaram a “Escola sem Partido” e são favoráveis ao homeschooling. Vemos a ação pró-família, principalmente pela mão de evangélicos, como reação direta aos movimentos feministas e LGBT+.

Há vários trabalhos interessantes que procuram nos explicar o atual momento político no Brasil e posicionam o significado da educação neste contexto. Aqui, destaco dois. O primeiro, é o trabalho de Lacerda (2019), que mostra o eixo privatizador da linguagem neoconservadora, tendo por hipótese a existência de uma capilaridade entre os movimentos neoconservadores do Brasil e dos Estados Unidos, fomentados a partir dos anos 1990 e que, intrinsecamente, tem a escola como objeto primordial de disputa. Também é importante a pesquisa de Duarte (2019) para o projeto global Democracy Undone: The Authoritarian’s Playbook, do TheGroundTruth Project, porque nos apresenta Olavo de Carvalho, não apenas como mentor intelectual do governo Bolsonaro, mas como articulador de uma ampla rede de militantes da “guerra cultural” que tem por cerne a “destruição” ao que chamam de “comuno-esquerdismo”, representado pelas universidades, pela  produção científica, o ensino público, os movimentos sociais de base. Esse grupo segue a doutrina do “tradicionalismo” segundo o filósofo italiano Julius Evola, e defendem um sistema de castas sociais com predominância de homens brancos; visam a ocupação de novos espaços de difusão cultural; celebram o reacionarismo. Tem por mote político o delírio, constituem tradições por fake news e são revisionistas históricos.

E agora, de maneira afiada, soma-se ao debate este livro. Ele mostra a difusão de um ideário neoliberal, cristão e racista, atuando sobre os encaminhamentos políticos de países latino-americanos, por meio da ação de variados think tanks difusores do ideal libertarianista, com o tal ideal da superioridade do indivíduo sobre o coletivo.

Segundo o livro os irmãos Charles e David Koch como sócios geraram uma fortuna individual, acumulada para cada um, em 42,9 bilhões de dólares. Fazem parte de uma aristocracia bilionária e orgulhosa por manterem o “sonho americano”. Nasceram milionários, filhos de Fred Chase Koch (1900-1967), ultradireitista, empresário do petróleo, que em 1958 fundou a John Birch Society, entidade composta por milionários e intelectuais anticomunistas com planos à educação, buscando o desenvolvimento do indivíduo responsável, cristão e autônomo. Para alguns estudiosos, o grupo era uma organização racista, que se opunha aos movimentos pelos direitos civis com vertentes francamente paranoicas.

A documentação levantada permite percorrer, desde esta célula parental, até o presente momento, mostrando as relações sociais firmadas entre as inúmeras instituições fundadas pelos Irmãos Koch e os grupos que atuaram no golpe parlamentar acontecido no Brasil.

De acordo com a pesquisa, há uma rede multidimensional de instituições e grupos políticos que difundem o ideário “libertariano” pelo mundo, mas principalmente pela América Latina, e que atua diretamente na formação de uma elite política juvenil. Atualmente, grande parte dos financiamentos é distribuído por duas grandes instituições, a mega think tank chamada Atlas Network e a organização estudantil denominada Students for Liberty, com a missão de “educar, desenvolver e empoderar a próxima geração de líderes da liberdade”, num modelo único de educação.

Mas, a teia formativa dos Koch não se resume a essas instituições. Eles financiam pesquisas em diferentes áreas do conhecimento, mantém pesquisadores sob sua égide, pagam pela circulação de nomes e amplificação de citações acadêmicas, financiam universidades parceiras, possuem laboratórios de inovações sociais etc.  Partiram à “guerra cultural” para fomentar a desconfiança quanto ao funcionamento do Estado, gerar suspeitas quanto as instituições públicas, e agir pela educação passou a ser um dos principais caminhos do programa. Por isso os jovens são vistos como novas lideranças empreendedoras, perfeitos na operação de modificações estruturais na sociedade. Não se trata de formar “um homem novo”, mas modelar crianças novas.

O livro é a história escalonar de uma família, conta sobre o aumento de seu patrimônio financeiro, a difusão ideológica de suas ideias, concentrando esforços no sentido de moldar a mentalidade social.  O livro mapeia a ação dessa rede de instituições e grupos políticos e a incorporação de discursos empresariais, moralizadores e privatistas na rede de ensino, inclusive apontando para o caráter segregador axiomático na gênese das escolas charters e do sistema de vouchers, conjuntos aplicados no Chile, com resultados de evidentes fracassos, e que são fruto do relacionamento do grupo de Buchanan com os magnatas. Esses novos tipos de escolas visavam frustrar as tentativas de superação da segregação racial no sistema escolar público do sul dos EUA. Cabe ler o livro para saber mais informações sobre essa história.

Para fazer esse trabalho a autora procurou e analisou uma documentação bastante variada, fazendo o percurso pelas redes de interesse por seus sites oficiais e, a partir deles, ampliou o circuito de relação dos grupos diretamente ligados aos Koch ou financiados por eles. Foram, portanto, analisados, os conteúdos dos sites, pesquisas e conteúdos acadêmicos, acervos digitalizados, livros, propagandas, fotografias, filmes e conteúdos de revistas e reportagens que os tinham como foco. Mesmo as redes sociais, páginas de Facebook, foram vasculhadas. Trata-se, então, de uma análise contemporânea, pela chave histórica.

Não é de se estranhar, ao final, que a pesquisa aponte a ação do Movimento Brasil Livre (MBL) como expoente na produção de pós-verdade do tipo “libertariana”, muito embora não seja o único grupo juvenil brasileiro desta categoria. Durante o processo de golpe de estado replicaram de maneira extasiada as pautas neoliberais difundidas pelas redes dos Koch. No campo educativo, procuram desmontar o ideário de formação de cidadãos da escola republicana, no esforço de alterar sua função social. No campo político, são porta vozes do neoliberalismo individualista, empreendedor, pelo mote “ser empresa de si mesmo”.  No plano econômico, lutam pelas alterações das leis de seguridade social e trabalhistas.  O livro mostra, ao final, que um dos grandes remates da ideologia dos Koch é financiar, direta ou indiretamente, os movimentos juvenis para interferirem no campo social de seus países. A pesquisa de Carolina, mostra outros exemplos.

O livro é recomendado a qualquer pessoa interessada na história recente de nosso país. Serve aos defensores da democracia, querendo conhecimento sobre o engendramento dos grupos conservadores na reordenação de seu poder diante do Estado. Diz respeito aos educadores, pois dá subsídios para compreender a interferência de grupos de interesses bilionários, na tentativa de tornar a escola pública um espaço empresarial. É interessante aos latino-americanistas pela visão das amplas redes de domínio capitalista e cristão estadunidense, que revigorou a velha política do “destino manifesto” sobre este vasto território. Formativo aos jovens, para que eles saibam que se pode passar vergonha em qualquer idade da vida. Segundo o livro, a democracia é dispensável. O libertarianismo quer poupar o capitalismo da democracia.

*Katya Braghini é professora de história da educação na Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP).

Referência


Carolina Rieger Massetti Schiavon. Irmãos Koch, think tanks e coletivos juvenis: A atuação da rede libertariana sobre a educação. Lisboa, edições 70, 2021, 270 págs.

Nota


[i] LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019.

 

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