Por AFRÂNIO CATANI*
O músico que uniu jazz com música latina
Cantou Donato em seu último álbum :“A cabeça no ar/e os pés no chão”
Uma dor muito grande, a morte de João Donato. Tenho quase todos os seus álbuns, a maioria em CDs e é raro o dia em que não escuto suas músicas.
A Folha de S. Paulo de 18 de julho de 2023 apresentou excelentes artigos de Gustavo Zeitel, Leonardo Lichote, Lucas Brêda, Renato Contente e Lucas Nobile que mapeiam os mais de 70 anos da carreira de João Donato, enquanto O Estado de S. Paulo, mais comedido, lhe dedicou um correto obituário – não tive a oportunidade de ler outros jornais a respeito.
O conjunto de artigos fala do princípio da carreira profissional do artista, das amizades cariocas na juventude, da aproximação com a bossa nova, da pouca receptividade de sua música no Brasil no final dos anos 1950, obrigando-o a viajar aos Estados Unidos, onde se impressionou com a música caribenha, levando-o a operar a fusão do mambo com a bossa nova. Apresentou-se com seu amigo João Gilberto, tocou com Chet Baker, Johnny Martínez, Mongo Santamaría, Eddie Palmieri, dentre outros.
Lucas Brêda escreveu que no começo de sua permanência nos Estados Unidos, João Donato “se viu num limbo – era jazzístico demais para tocar música brasileira, mas brasileiro demais para tocar jazz,” Em seus altos e baixos, idas e vindas entre os EUA e o Brasil, tocou, cantou, compôs, além dos nomes mencionados no parágrafo anterior, com Eumir Deodato, Marcos Valle, Sérgio Mendes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Rosinha de Valença, Luiz Melodia, Jards Macalé, Paulo Moura, Marcelo D2, Chucho Valdés, Tuti Moreno, Céu, Robertinho Silva, Joyce Moreno, Tulipa Ruiz, Jorge Helder, Lilian Carmona, Luiz Alves, Luiz Melodia…
João Donato experimentou muitas frustrações. Mesmo após gravar Lugar Comum, em 1975, contendo “Emoriô”, “Bananeira”, “Lugar Comum”, “Deixei Recado”, “Naturalmente”, canções que depois se tornaram verdadeiros clássicos, o disco não obteve o retorno comercial que a gravadora esperava. Ele acabou ficando sem gravar por 10 anos, optando em seguida por gravadoras estadunidenses e outras brasileiras pequenas, quase independentes. Sua carreira acabou por engrenar com vigor e, entre 1996 e 2022, lançou 25 álbuns.
Uma declaração de João Donato, recuperada por Leonardo Lichote (“João Donato, aos 88 anos, ainda era um menino de alma e mente”, Folha de S. Paulo, 18.07.2023), acho que ajuda a compreender a personalidade do músico, que falou no depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som, em 2009, que “o relógio para mim não tem números. É um círculo que gira em torno de si mesmo, como a Terra, como o Sol”; ou seja, os números têm um significado bastante relativo para ele.
No final de 1972 ou início de 1973, em momento de incertezas quanto aos rumos a seguir, João Donato ouviu do cantor e compositor Agostinho dos Santos (1932-1973) um conselho que se tornaria precioso: precisava de um letrista, de alguém que colocasse letras em suas canções. Ele, Agostinho, iria viajar, realizar uma turnê e, na volta, gostaria de fazer parcerias com o acreano João Donato. Infelizmente, Agostinho morreu no acidente do voo Varig 820 em 12 de julho de 1973, em Orly, aos 41 anos. O músico seguiu o conselho, e seus letristas, em geral, foram de primeira linha: Paulo César Pinheiro, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Lysias Ênio, seu irmão mais novo, apenas para nomear alguns.
Até hoje, 50 anos depois, a menção a Agostinho dos Santos me emociona. Em 11 de julho de 1973, juntamente com minha namorada, fui ao Aeroporto de Congonhas me despedir de uma grande amiga dela, nossa colega na Getúlio Vargas, casada com um engenheiro de computação francês que trabalhava no Brasil; era mãe de um garotinho de colo e estavam indo para a França passar vinte dias de férias. À entrada da sala de embarque Agostinho, sorridente, dava entrevista. Foi a última vez que os vimos.
Lucas Nobile (“Tal qual Sócrates e Maradona no futebol, o articulista pairou acima de estilos e gêneros”, Folha de S. Paulo, 18.07.2023), com felicidade, escreveu que João Donato “não era pianista virtuoso, mas gravou com os instrumentistas mais respeitados do país. Seu piano economizava em notas, mas tinha balanço como poucos”.
Em 2022, João Donato lançou Serotonina, seu álbum derradeiro. Em uma das faixas, “Órbita”, talvez tenha cantado a síntese do que esperava da vida:
A cabeça no ar
E os pés no chão
Na terra, mar e ar
Imensidão
Eu gosto mais de sim
Do que de não
Com a paz de Oxalá
No coração
*Afrânio Catani é professor titular sênior aposentado da Faculdade de Educação da USP. Atualmente é professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.
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