Juçara Marçal – luto e redenção

Barbara Hepworth, Vermelho em Tensão, 1941
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Por VITOR MORAIS GRAZIANI*

Comentário sobre o disco “Delta Estácio Blues”

“Não diga que estamos morrendo / Hoje não”: assim se inicia a canção Velho amarelo (Rodrigo Campos), a qual abre o disco Encarnado de Juçara Marçal e que foi lançado naquele tão distante e próximo 2014. Para alguns críticos, Encarnado é o atestado de óbito, que veio antes da morte escancarada em 2016 diga-se, de um projeto de país que ficou pelo caminho.

Carregado de lirismo potente, Encarnado atestava a falência das ilusões desenvolvimentistas dos governos petistas em um momento ainda de euforia, daí que embora a morte seja eminente, se a negue, como bem ilustram os versos supracitados. “Quero morrer num dia breve / Quero morrer num dia azul / Quero morrer na América do Sul”, confirma a canção. A morte se torna ato de resistência – e a linguagem que vê 2016 como um golpe só reforça esta versão da História recente de nosso país. “A ferida se abriu: nunca mais estancou”, como diz Ciranda do aborto (Kiko Dinucci), outra canção de Encarnado. Tempos do fim.

Pois anos depois, em momento de nova emoção eufórica, desta vez projetada ao futuro quase que sebastianista que ronda as eleições de 2022, Juçara nos brinda com o provocativo disco Delta Estácio Blues, lançado em setembro último. Ali, é possível dizer, há uma elegia às fraturas deste novo tempo que já se anunciou, bem como uma glosa das ruínas que o sonho pretérito deixou. Em outras palavras, o que o lulismo (e a cultura política que o permeia) ficou devendo ao Brasil e o que se deve reivindicar neste novo amanhã.

O nome do título, emprestado de uma das canções do disco, fruto de parceria de Juçara com Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, reflete bem este esquema: ao estabelecer uma ponte entre o Delta Blues Mississipi de Robert Johnson e os malandros do Estácio, Juçara tenciona aquela clássica “linha evolutiva” da modernidade musical brasileira que o Tropicalismo nos fez aclimatar. Ora, ao tratar o Estácio e seus bambas como pagãos, a canção, em sintonia com o discurso moderno brasileiro, aponta para a exclusão destes autores. “Alguns anos no breu / E reapareceu / Delta Blues Mississipi / Cultua um novo Deus”.

A modernidade musical brasileira, que encontra seu maior exemplo na batida do violão instituída por João Gilberto, fez parte de um acordo tácito entre este ente e a modernidade político-econômica brasileira, que por sua vez encontrava seu correspondente máximo na Brasília de Juscelino Kubitscheck. Sempre excludente e depois de 1964 autoritária, esta noção de modernidade seria corroborada, autenticada, pelo movimento tropicalista, o qual se incorporaria ao novo tempo do mundo gestado pelo golpe civil-militar de 31 de março. Os bambas do Estácio, por sua vez, tiveram seu material artístico expropriado por aqueles que o reafirmaram enquanto mercadoria.

Daí que a grande genialidade de João Gilberto resida na incorporação destes diversos autores – “Bide, Baiaco, Ismael” – em um discurso de internacionalização de sua obra, e não da de seus autores originais. Ao recuperar os malandros do Estácio, já embutidos na dinâmica deste mundo sem culpa, para falar com Antonio Candido, que sublevou o Brasil ao messianismo que aí está, Juçara aponta que, deste, pode sair também nossa redenção, como aliás também apontou Candido. Ela por ela, fruto de um ululante apagamento histórico, este por sua vez base fundacional de nossa modernidade – como se nosso mito de criação fosse, ele por ele, um roubo da História.

Toda esta noção de luto e redenção tem orbitado a obra de Juçara Marçal. Um sentimento de liberdade libertária, com o perdão do pleonasmo, emula também um ar de revolta pelos anos de espoliação. Este sentimento de caminhar por si próprio atinge seu ápice, por exemplo, na canção que abre Delta Estácio Blues, “Vi de Relance a Coroa” (Siba Veloso): a Coroa dos Reis Malunguinho é vista de relance, mas é vista e se constrói uma identificação pujante, ela própria elemento de reafirmação. Todavia não há cais (“Sem Cais” – Negro Leo/Juçara Marçal/Kiko Dinucci) e não se sabe aonde o barco irá parar. Há, aí também, uma necessidade de autoexistência.

Todo este processo culmina na interpretação que Juçara vem fazendo da célebre canção de Ismael Silva, “Antonico”, nos shows ao vivo de lançamento do disco. “Antonico”, recuperada pelos tropicalistas em Gal FA-TAL (1971), em sintonia com a noção de “linha evolutiva” da música popular brasileira, é o exemplo máximo desta sociedade de favores em que, estando as ideias fora do lugar, só resta a dialética da malandragem, para falar novamente com Antonio Candido.

Acredito, ainda nesta toada, que a sequência fragmentária apresentada nos shows de lançamento “Oi, Cat” (Tantão e Os Fita); “Lembranças que Guardei” (Fernando Catatau/Juçara Marçal/Kiko Dinucci) e; “Crash” (Rodrigo Ogí), produzem um efeito de percurso histórico muito singular. Em “Oi, Cat”, há a lembrança do exato momento em que, diante um horizonte de expectativas elevado, se ousa lutar (e vencer) por direitos básicos que aquela modernidade de que falei acima via como um entrave para a efetiva modernização. Ao cantar Eu não tenho casa, entra de imediato (e sampleado) o histórico discurso de Jango na Central do Brasil em 13 de março de 1964 em que, às vésperas e sob a pressão do dia 31 daquele mesmo mês, o então presidente anunciava as Reformas de Base. “O que você quer / Eu quero também”. Tempos de esperança – e luta.

O fim desta História, contudo, é sabido. A contrarrevolução iniciada com a quartelada de 31 de março de 1964 – uma rebelião militar vertida em Golpe de Estado – remodelou o país. Desenvolvimentista, a Ditadura não poupou esforços em fazer com que o país reencontrasse seu fundo regressivo, na acertada expressão recém cunhada por Roberto Schwarz, e varrer-se, não para debaixo do tapete, mas para dentro de cada uma das autoconsciências, qualquer lastro daquele tempo do mundo pretérito, quer via execução, quer via sabotagem assimilacionista.

Contudo, há aqueles que escolheram resistir – como Bide, Baiaco e Ismael, aliás. E é a esses que a belíssima “Lembranças que Guardei” se destina. A canção é clara e enigmática ao mesmo tempo: “Eu e minha casa / Minha casa abandonada” – a casa é sua, mas está abandonada, ninguém a habita. “Eu e minha alma / Minha alma revoltada” – da revolta pode nascer a redenção. “Lembranças que Guardei” entra em uma espiral crescente de um ser angustiado – “Procurando respostas tão profundas / Tive medo de nunca mais voltar”.

As respostas para o fim do sonho representado pelos anos que vão de 1930 a 1964 são profundas porque lacunares e normativas, bem como o medo da resposta real: a de que este tempo realmente nunca mais voltará. A canção toda se estrutura de forma brilhante e desemboca em um frenesí que dialoga com “Crash”: “Sim, aqui estou eu de novo / Sentindo o coração / Procurando respostas / Ou uma sensação / Que me traga de volta / Lembranças que eu guardei / Se realmente importam / Que venham outra vez”. Ainda que mortas, porque o sonho morreu em 1964 – e (re)morreu com 2016 –, o coração pulsa, é sentido. E é preciso que as recordações deste tempo utópico, imaginado, ainda que real e irreal, posto que findo, se mantenham vivas para manter algum horizonte de expectativas (revolucionárias) despertado.

O final da canção é tocante justamente por reafirmar isto, como que numa ode à vida no momento de maior dor possível (a casa abandonada, as lembranças que não se sabe se importam…): “Trazendo a brisa leve / Ou outros furacões / Que eu possa encontrar / Algumas soluções / E se eu trouxer de volta / Lembranças que guardei / Mesmo que estejam mortas / Que eu saiba onde deixei”.

E é esta presença do morto, ciente de sua condição de morta porém não inanimada, posto que se sabe onde estão, que acendem a luz para a revolta no novo tempo do mundo (a brisa leve e os furacões). Não à toa que “Crash” seja fruto do rapper Rodrigo Ogí. Em um mundo pós pós-modernidade de um capitalismo gangrenante (pós-tardio) – muito bem representado como espaço de vivência e sociabilidade, pulsão de vida em hora de pulsão de morte em “Corpus Christi” (Douglas Germano/Juçara Marçal/Kiko Dinucci) – e em erupção, cataclismas e catastrofismos como ordens do dia, só a raiva e ódio libertam. “O mequetrefe atacou / Todo seu ódio em mim / Se fosse um tempo atrás / Seria meu fim”. Mas não o é mais. O mequetrefe continua a vilipendiar a existência das práticas de sociabilidade, mas agora “Vacilão cai no chão / E eu continuo a sessão”. Como “todo documento de cultura é também documento de barbárie”, citando Benjamin, aqui temos um exemplo da barbárie positiva, que este desenvolve em seu incendiário ensaio “Experiência e pobreza”. A barbárie positiva choca, agride, e justamente por isso, salva. A redenção da raiva como forma de ódio.

É impossível analisar “Crash” em tão pouco espaço pois ela abre espaço para outros mil horizontes. É uma canção de raiva e libertação (é, aliás, uma canção?). Sua construção entra em um crescente de ódio e é ele que o justifica, todavia, não é em vão: “A minha ira é um câncer que não te deixa livre”, “Tem água na minha casa mas me banho no sangue”, “Me chama pra dançar e agora não quer que eu sambe”.

São todas elas tentativas de não só justificar a guerra (revolucionária, frisa-se) como sublimar a violência (revolucionária) como o único caminho que restou para legitimar as lembranças (de formação) que foram guardadas. “Eu faço tudo pra não entrar numa guerra / Mas se entrar não vou parar de guerrear / Ninguém mandou você vir me aperrear / Vai tomar maderada!”. Não se aceita nada passivamente, tão pouco se deixa levar pelo cansaço que paralisa, antes o contrário, é ele que mobiliza. “É a volta do cipó de aroeira / No lombo de quem mandou dar” (“Aroeira” – Geraldo Vandré), mais de cinquenta anos depois, no novo tempo do mundo, para falar com Paulo Arantes, cujas ideias inspiraram todo este texto.[i]

*Vitor Morais Graziani é graduando em história na Universidade de São Paulo (USP).

 

Nota


[i] Agradeço a leitura preliminar e os comentários de Julio D’Ávila e Sheyla Diniz. Friso as limitações de uma análise como a que segue, fundamentada nas letras e que ignora a sonoridade peculiar da obra de Juçara Marçal – um som “industrial”, como se referiu Julio, pelo que agradeço a ótima expressão. Arrisco, de maneira muito preliminar, o palpite de que este som “industrial” se encontra intimamente ligada à uma noção de “modernidade revolucionária”, que atingiria seu ápice em “Crash” (Rodrigo Ogí).

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