Por RENAN SOMOGYI RODRIGUES DA SILVA*
Comentário sobre o livro organizado por Luiz Bernardo Pericás
Julio Antonio Mella foi uma figura política de grande importância para o movimento comunista latino-americano. Um dos precursores do marxismo no subcontinente, Mella nasceu em Cuba e atuou ativamente ao lado de operários, camponeses e estudantes na luta por uma educação emancipadora, contra o governo repressivo de Gerardo Machado e contra o imperialismo estadunidense. Apesar de tamanha importância, tanto em termos teóricos quanto práticos – Julio Antonio Mella não foi somente um grande agitador político, mas escreveu diversos textos pioneiros utilizando o marxismo como ferramenta de análise conjuntural e histórica de Cuba –, o militante foi pouco estudado fora de seu país de origem, sendo relegado a um papel secundário nas pesquisas sobre o marxismo latino-americano.
No Brasil, seja pela não aceitação da centralidade da personagem na história do movimento comunista latino-americano, seja pelo desconhecimento de seu pensamento, nunca haviam sido publicadas antologias com os textos de Julio Antonio Mella e nem mesmo traduções de suas biografias (em sua maioria, escritas em língua espanhola). É baseado nesses livros sobre a vida do cubano (entre vários outros) que Luiz Bernardo Pericás, historiador, professor da Universidade de São Paulo e pesquisador do marxismo na América Latina, escreve o prefácio desta coletânea.
Vale destacar que esta é a primeira vez que os textos de Julio Antonio Mella foram traduzidos e editados em uma obra exclusivamente sua no Brasil. A introdução traça a trajetória política de Julio Antonio Mella, desde sua militância juvenil até sua atividade no momento antecedente à sua morte, capacitando o leitor que desconhece a personagem a compreender e situar os artigos do marxista em seu contexto de engajamento e disputa política, facilitando e enriquecendo a leitura.
Como muitos dos marxistas latino-americanos pioneiros, responsáveis que eram pela criação e estruturação dos respectivos partidos comunistas da região e suas organizações associadas, Julio Antonio Mella foi um homem de ação, ainda que não rejeitasse a teoria de forma alguma. Empenhado nas atividades práticas e burocráticas, todavia, o cubano não escreveu nenhuma obra teórica de maior fôlego, o que reduz sua produção, em grande medida, a excertos dispersos – ainda que interligados pelo sentido lógico e ideológico de seu pensamento. El Machete, Aurora, Nueva Luz, Juventud, Lucha de Classes, Alma Mater são algumas das publicações em que Julio Antonio colaborou e das quais Pericás retira boa parte dos escritos que compõem o livro.
Os textos selecionados também elucidam algumas bases ideológicas de Julio Antonio Mella. Diferentemente de boa parte dos militantes dos Partidos Comunistas ligados à Internacional Comunista, Mella não possuía em seu arcabouço teórico e ideológico somente ideias provenientes da União Soviética e de seus líderes, tais como Lênin e Trotsky. Estes são reconhecidos, sem dúvida, como pensadores estruturantes de seu pensamento, mas outros, de diferentes lugares e extrações políticas, também aparecem nessa lista, como José Martí e Carlos Baliño.
O primeiro é conhecido por muitos como o último “libertador” das Américas, cujo nacionalismo e valorização da cultura e do potencial cubano (e latino-americano no geral) fez frente ao nascente imperialismo dos Estados Unidos sobre a América Latina, referendado pela Doutrina Monroe. Tal ideário ressoou nas formulações de Julio Antonio Mella, engendrando em seu pensamento também o nacionalismo cubano, em que a cultura e as tradições do povo são valorizadas, o que ele chamava de “nacionalismo revolucionário”. Baliño, por sua vez, considerado um dos pioneiros do marxismo latino-americano, influi diretamente na vida de Mella ao ser, provavelmente – segundo o próprio organizador –, o primeiro cubano a fundir a teoria de Martí e de Marx na ilha, ajudando, em parte, na adesão de Julio Antonio ao marxismo (PERICÁS [org], 2022, p. 41-42).
O pensamento do jovem Julio Antonio Mella, diferentemente de muitos outros comunistas de sua época, não foi tributário das ideias de Joseph Stálin (Ibidem, p. 30-31). Este, que se tornou a figura maior do socialismo mundial após a tomada definitiva do poder no Partido Comunista da União Soviética e no Comintern em 1928, provavelmente não aprovaria a figura do martiano e marxista cubano. Julio Antonio Mella era demasiadamente heterodoxo em seu ideário e em suas ações políticas, sem dar indícios de que submeteria sua atividade, sem questionamentos, ao crivo do partido mundial da revolução.
Ao traduzir, organizar e disponibilizar os escritos do pensador, Luiz Bernardo Pericás incentiva os marxistas e – por que não? – até mesmo os bolivarianos que ainda sonham com uma América Latina independente dos imperialismos estadunidense e europeu a ampliar seus horizontes ideológicos, rompendo a barreira do dogmatismo, e a reavivar a luta por uma sociedade comunista e latino-americana para todos os que aqui habitam.
*Renan Somogyi Rodrigues da Silva é mestrando em história social na USP.
Referência
Luiz Bernardo Pericás (org.). Julio Antonio Mella: textos escolhidos. Marília, Lutas Anticapital, 2022, 218 págs.
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